Oitava Fileira

E as coisas continuam a piorar


Quando finalmente pude abrir os olhos, tudo que vi foram chamas. Eu estava pegando fogo.

Deus do céu, qualquer coisa menos isso! Tentei me mover, não consegui sair do lugar. Fiz mais força, tinha que fugir dali de algum jeito. Não conseguia respirar, gritar, afundado como estava no meu pior pesadelo. As amarras, correntes, o que quer que fossem, cederam só um pouco. As chamas estalavam nos meus ouvidos e podia ouvir a voz de Cássio, mas não entendia nada.

Por que eu não morro logo, porra? Alguma coisa forçou minha cabeça pra trás e ouvi dentro da minha cabeça.

“Para, Xavier. Eu sinto muito, foi o único jeito.” Soava como a minha namorada, e parecia cheio de tristeza. Denise tinha feito isso comigo? O choque me ajudou a pensar de novo. E a perceber que eu não queimava. Estava envolto em chamas, mas não sentia qualquer dor. E o que me segurava era um Cássio um tanto mal-humorado.

Tudo dentro do círculo estava em chamas, e erguida no centro como uma Fênix ruiva estava a minha garota, invocando um encantamento estranho que nunca a vi fazer. Quando meus olhos se acostumaram com toda a luz, pude ver uma dezena de vultos escuros com olhos em brasa, rodeando o círculo frustrados.

— Eduardo odeia mesmo vocês, não é? Tá me ouvindo agora?

Acenei com a cabeça.

— Posso te soltar? Estamos seguros aqui dentro. — Levantou a cabeça, alerta. — Fique abaixado. Essa foi só a tropa de choque.

Caminhou até o lado de Denise e curvou a cabeça. Meus ouvidos doeram, como se eu estivesse subindo uma montanha, e a sensação sumiu. Fui abaixado até Mauro, sentado um pouco atrás dos dois em pé.

— Não fale com o Mau agora, Xavier. Deixa o cara se concentrar. Pronto, esses não matam mais ninguém.

Um a um, os vultos incendiaram e desapareceram, chiando e rosnando. Quando o último se foi, ela correu pra mim. Estava com os olhos marejados, a respiração irregular como se tivesse corrido por quilômetros.

— Me perdoa, amor! Quando acordei, eles já estavam em cima de nós, e nada do que Mauro fez adiantou, e você não respirava... E eu precisava de luz, mas as lanternas não funcionavam... Nunca mais faço isso, prometo. E-

Eu a abracei, e juro que não sei quem precisava mais disso, se ela ou eu. — Então você salvou minha vida, e está prometendo não fazer isso de novo? Entendi certo?

Lógico que ela começou a me bater, alternando os tapas com xingamentos até cansar e encostar no meu peito.

— Brincar numa hora dessas... Você é uma besta...

— Eu te amo, Denise. Do jeito que você é. Obrigado — respondi o mais baixo que pude, e mesmo assim ela ficou sem jeito.

— Estou tentando não chorar aqui, seu... Seu... — a voz quase desapareceu — Também te amo. Não me assusta assim nunca mais, tá?

— Farei o meu melhor pra não morrer mais nessa viagem.

— Você é impossível! — Ela tentou fazer cara feia, mas estava aliviada demais pra conseguir.

— Denise, essas chamas foram excepcionais — Mauro admitiu, com um respeito relutante. E pra Cássio, aborrecido. — Porra, povo das sombras. Ou ele sabe o que podemos fazer, ou tem uma maldita sorte. Temos que continuar.

Devo ter olhado pra Mauro com uma expressão retardada, porque ele se virou pra explicar:

— Sabe quando você acorda, e sabe que tem alguém no quarto, mas tudo que vê é um vulto com o canto do olho? São eles. Às vezes causam paralisia do sono, de vez em quando matam. Mas nunca vi tantos juntos. Tenho pouca influência sobre eles, não há um corpo físico pro Cas destruir. Normalmente nós dois não precisamos nos preocupar com isso, mas vocês... Se a Denise não tivesse esse feitiço de purificação, você teria morrido.

— Cacete, então aquela sensação horrível de agora há pouco eram eles?

— Eram. Não podemos ficar parados aqui. Quem sabe o que mais o puto do Nero mandou atrás de nós?

— Você tem razão, Mauro. Dê, tudo bem?

— Vamos continuar. Eu consigo. — Foi pegar sua mochila, mas nós sabíamos que mais uma noite em claro caminhando seria muito difícil, principalmente depois dela usar tanta magia. Consigo levá-la nas costas, mas não por sete ou oito horas.

Desde que Nero me prendeu num daqueles malditos postes, eu ficava doente de medo e raiva de fogo. Confiava na Dê, e quase não tinha problemas com ela manipulando chamas, mas essa noite ferrou minha cabeça de jeitos que nem quero saber. Preferia ir correndo até a casa de Lady Shih a dormir tão cedo.

A menos que Mauro faça mais uma mandraquice impossível e invoque um javali gigante convenientemente puxando uma carroça. Estava tão atordoado que pensei que Denise estava chorando de estresse.

— O que foi, Dê? — Ah, ela estava morrendo de rir. Tremendo, apontou pro javali. O bicho vinha até com arreios, embora parecesse mal-humorado por ter sido invocado a essa hora da noite, até que ele falou.

— Seu mandrako de quinta, não era disso que eu estava falando. — O sorriso do mago era malicioso quando bateu de leve no flanco do Cássio javali.

— Deixe de resmungos, assim nenhum de nós gasta muito poder, e viajamos depressa. Ou você vai fazer a Denise aqui correr a noite toda depois de gastar tanta magia?

Já viram um javali revirar os olhos? Não dá pra controlar a risada. — Subam logo. E os dois paspalhos aí, continuem a rir e dou um jeito de passar com essa tranqueira por cima de vocês.

Pusemos (e amarramos) tudo na carroça. Denise me amarrou no lugar, e pareceu um pouco de exagero, quando ela sentava e se prendia com nó atrás de nó. O bicho virou pra Mauro, o olhar cego faiscando de raiva, enquanto o mago transformava a si mesmo num lobo gigante, quase invisível no meio das sombras das árvores.

— Você está muito fodido quando me transformar de volta, seu cachorro pilantra.

— Boa sorte com isso. Posso manter transformações por muito tempo, quer ver?

— Seu filho da... — Cas queria dizer tantos xingamentos ao mesmo tempo que tudo se misturou num ronco meio rugido.

— Ah, anda logo, reclamão. Temos um império maligno pra derrubar.

***

Foram as quatro horas mais longas da minha vida.

O javali correu a uns oitenta por hora, e carroças invocadas do além não têm amortecedor. Sacudimos lá atrás como vaqueiro de rodeio, quase sendo jogados pra fora a cada pedra ou curva, eu me segurando com toda a força, a corda quase cortando a minha pele. Toda a floresta passou num borrão escuro, até que ele parou de repente, por pouco não nos arrebentamos contra a proteção de madeira. Estava moído quando finalmente descemos, enquanto os dois pareciam felizes com o exercício.

— É o mais longe que podemos chegar sem ser notados. Mauro, você consegue burlar essa barreira?

— Não, precisaria ser destruída com um ataque maciço, e isso alertaria até os mortos. Preciso de tempo pra estudar esse sistema, nunca vi nada parecido. Cadê o pessoal que vai nos ajudar a entrar?

Todos nós olhamos pra Denise, que estudava os arredores com um binóculo. Ela tinha os olhos fixos no topo do muro da cidade, as lágrimas caindo em silêncio, o binóculo esquecido na mão.

— Deus, não… — Ela me encarou, em choque. — Não vem ninguém, Mauro.

Peguei o binóculo e comecei a procurar no muro o que diabos ela tinha visto, ela tocou no meu rosto. Era como se ela quisesse me poupar, mas estava me assustando pra caralho. — Não olha, Xavier. Só…— A voz sumiu. Comecei a procurar freneticamente o que raios a tinha deixado abalada naquele nível.

Enforcados. Vários deles, em fileira, e pelo pouco que podia ver, estavam ali há alguns dias, os urubus fazendo uma festa. Nunca tinha visto tantos, mesmo que…

PUTA. MERDA.

Com o estômago cada vez mais revolto, reconheci um cabelo aqui, uma camisa ali… eram os rebeldes da outra Denise, quase todos os que eu conhecia, até alguns que nunca tinha visto.

E pendurados no ponto mais alto, havia uma mulher de cabelos coloridos e um homem loiro de armadura. Eu reconheceria aquela maldita armadura em qualquer lugar… porque aquela porra era minha. Eram a Denise do futuro e o Xavecão.

Ela tinha razão, era tarde demais. Lady Shih tinha vencido.

***

Nos segundos que Mauro levou pra explicar pro Cássio a cena do inferno acima dos muros e transformar todo mundo de volta, Denise tinha recolhido suas coisas e amarrava as minhas num pacote. As lágrimas continuavam, como se tivessem ganhado independência, não importava o quanto ela amaldiçoava e esfregava o rosto. Cheguei perto, sem saber o que dizer, “sinto muito” parecia vazio.

Já era horrível olhar pro Xavecão, e ele já estava tão mal da cabeça que duvido que tenha entendido o que lhe aconteceu. Mas olhar pro que foi a Denise do futuro… ver uma pessoa idêntica à garota que eu amava pendurada como lixo era perturbador demais.

— Dê…

— Pega suas coisas, Xavier. Estamos indo embora.

— Mas… E a Carmem?

— Acabou, Xavier. A piranha venceu. Não posso ajudar a Carmem. Na verdade, nem sei como nos ajudar. Ainda temos algum tempo até amanhecer, vamos sair daqui.

Eu queria concordar com ela. Qualquer coisa parecia melhor: Procurar outro lugar pra viver, passar uns meses no quintal de Mauro e Cássio, ou mesmo voltar à floresta do Boitatá. Mas meu instinto dizia que Lady Shih precisava ser detida, ou nós passaríamos o resto da vida com medo da própria sombra. E tinha alguma coisa estranha, algo que me incomodava mas eu não sabia o que era.

O melhor (talvez o único e o último) momento para enfrentá-la era agora, com Bianconero longe, e Lady Shih confiante que venceu a última oposição a ela. As gêmeas tinham uma posição militar, mas cuidavam da administração da cidade; não eram nem de longe tão destrutivas quanto Nero.

Na verdade, eu tinha passado uns meses como parte da guarda daquelas duas malucas. Elas eram eficientes, e mantinham tudo funcionando como um relógio suíço. Mas se preocupavam muito mais com os amassados do meu uniforme que com a minha frequência ao treinamento. Eu e os rapazes sempre comentávamos como elas tinham paranoia com organização, pontualidade e limpeza.

Uma a uma, as peças encaixaram num plano B péssimo, mas que tinha alguma chance de dar certo. Segurei o braço dela, tentando chamar sua atenção.

— Ainda tem um jeito. Tem uma pessoa que pode pôr vocês lá dentro.

Ou pode me juntar à fileira ali em cima, mas não comentei esse detalhe

— Vocês? — Ela me olhou sem entender. — Mas que diabos...?

— Aquela barreira ali é pra identificar e bloquear ataques mágicos e artilharia pesada, não é?

— Bem, é. — Ela ainda não via onde eu queria chegar. — Nenhum de nós consegue passar sem avisar até os mortos, Mauro acabou de dizer.

— O quanto você acredita que Carmem vai te ajudar?

— Ah, você sempre pode contar com um Frufru para o desprezo, ódio e vingança bem planejados. Depois que a Maria... Negativo, Xavier Ximenes! Você não vai entrar lá sozinho! Nem sei se a Carmem está viva! Nunca, em nenhum universo, ela arriscaria o pescoço por você! Aliás, você sequer passaria do portão! Eles identificam feitiços de ilusão, lembra?

— Tem uma coisa que eu posso fazer. Pode te deixar mais fraco, mas ninguém vai te reconhecer.

— Eu já disse que eles identificam magias de ilusão, Cas. Não dá.

— Não faço ilusões, Denise. Nenhuma magia detecta o que eu sou capaz de fazer se eu não quiser.

— Denise tem razão, Cas. Vamos embora.

— Inferno, Mau. Se eu a matar agora, ela vai parar no inferno. — Cássio murmurou, como se só se desse conta naquela hora.

— E é o que ela merece, divo do armagedon. — Denise retrucou, tentando disfarçar o choro — Aquilo é o que ela faz num dia bom. A garota não é mais a criança que você conheceu.

— Você não entende, Denise.

Eu não entendo? Você viu o que ela fez! O que ela deixa o sociopata do Nero fazer! Ela não vai parar até que o mundo inteiro seja dela! Ela é uma Cebola! Você lembra quantos futuros o irmãozinho dela fodeu naquela mania de dominar a droga do mundo?

Ela estava magoada pra cacete, eu até entendia, mas estava passando dos limites. Eu podia sentir meu instinto mandando correr, como a mudança de pressão antes de uma tempestade. Meu plano era só tirar a garota dali, até que ela recobrasse a razão, então a pressão sumiu. Puf. Simples assim, Cássio se controlou.

— Obrigado, Mau. — Então foi isso. — Denise, você e Xavier já terminaram aqui. Vão embora.

Mauro me olhou enfadado, como se dissesse: Dá pra tirar sua namorada louca daqui? Mesmo ali na mata, eu podia ver a testa dele brilhante de suor, os olhos refletindo a luz fraca da Lua. Mas quando a Dê começa uma briga, ela quer terminar. Às vezes parece que namoro a Mônica.

— Você vai me escutar, Cássio! Se você continuar a tratar a piranha como uma garotinha-

— Chega, humana. Ou você vai descobrir por que não gosto daquele lugar.

Cássio não levantou a voz, mas rosnou humana como se fosse a pior ofensa em que pudesse pensar.

— Para de falar, ok? Você tá certa, coberta de razão, nadando em razão, mas fica quieta ou vai matar nós dois. — Sussurrei enquanto a arrastava pra longe, ela ainda querendo briga.

Levou uns dois quilômetros pra minha namorada voltar a ter juízo. Quando ela se tocou, botou a mão na boca como se não acreditasse no que tinha falado.

— Xaveco do meu coração, fiz isso mesmo? Comecei a xingar o Cebola na frente do Cascão? Pai do céu, onde foi que eu deixei a cabeça?

— Deixa pra lá, Dê. Estamos vivos, vamos logo pra casa do Robson.

Que fodeu meus planos (até o Z, quanto mais o B ) e deixou mais seres poderosos com raiva da gente são apenas detalhes, não é? Lá vamos nós, com o rabo entre as pernas, fugir mais uma vez.

Ouvimos um estrondo, mas nem dava pra olhar pro céu, a copa das árvores era fechada demais. Será que vinha tempestade por aí? Pensei, antes da onda de choque atirar nós dois contra as árvores e me nocautear.