Oitava Fileira

Hello Murphy, my old friend


Vou admitir: pensei que seria mais simples. Que a parte complicada seria convencer o Cebola. Então ele usaria a força, acabaria com os planos do Nero, da irmãzinha tirana e das gêmeas doidas. A essa hora eu estaria a caminho de uma praia no Nordeste. Águas azuis, um coco fresquinho… Eu sei que mereço.

Bom, ao invés disso fui arrastada, explodida e lutei sem parar por dias, e no fim não consegui nada, além de outra pilha de pessoas mortas. Xavier andava calado, e eu o amava por isso. No lugar dele, eu estaria gritando “eu te avisei” tão alto que seria ouvida na China.

Estava pensando nisso quando ouvi o trovão. Era só o que faltava, uma chuva clichê pra combinar com minha derrota. Ao invés disso, fui soprada como uma folha seca e saí rolando pelo caminho até trombar num arbusto. Caminhei de volta e encontrei o Xavier caído. Merda!

— Xavier! Xaveco, acorda!

Eu vi desespero... Eu ouvi os gritos... Nós não conseguimos impedir. Agora tudo está em silêncio...

Gente, tinha alguma coisa muito errada acontecendo. Algo estava falando através do Xaveco, e eu deveria parar aquilo. Devia mesmo, naquela hora. Mas não pude, porque reconheci aquela voz.

Meu namorado foi erguido como uma marionete, falando palavras que não eram dele. — Vocês todos irão morrer. E se não encontrarem um meio, se não criarem um caminho, o mundo inteiro cairá com vocês.

Porta-voz?

Xaveco abriu os olhos, um tanto confuso.

— Dê... o que aconteceu? Tive um sonho estranho pra cacete com um monstro com cara de esqueleto... Por que você tá chorando, amor?

Passei a mão no rosto, estava molhado. Lembro dos olhos do Louco, da tristeza na expressão da Sarah, e agora o Porta-Voz. Não importa o que eu faça, parece que não tenho como ganhar esse jogo. Isso tudo é injusto demais. Sem saber o que fazer, Xaveco me abraçou, e eu não queria. De alguma forma, eu causaria a morte dele, não merecia ser consolada.

Esfreguei o rosto. Respira fundo, Denise, e segue o jogo.

***

— Ok, chega. Não tenho ideia de onde estamos.

— Ah, sério? Sabe que nem percebi?

— Seus feitiços também não adiantaram, e a bússola tá maluca. O que você quer que eu faça? Pare alguma anta pra pedir informação?

Grunhiu, a mão na testa. — Olha, tá quente, estamos com fome, essa droga de lugar tá mexendo com a nossa cabeça. Vamos achar algum abrigo, descansar uns minutos e aí, sei lá, subo numa árvore e procuro uma direção.

Desfranzi a testa. — Tem razão, lindo. Tá muito quente pra brigar. Mas não vamos parar agora, ainda estamos muito perto da cidade.

— Tudo bem. Podemos tentar aquele lado. — Concordei, e seguimos.

Não levou muito tempo até que ouvíssemos alguém. Num segundo reconheci os palavrões do nosso mago psicopata favorito.

— Levanta logo, seu porco cretino! Para de palhaçada e fecha logo essa porra!

Nos olhamos curiosos. Tá, aceito que eles são o não-casal mais bizarro do mundo, mas o que diabos tava acontecendo? Fomos devagarinho, afinal cautela preserva a pele (meus dentes já são lindos, obrigada)

Encontramos um Mauro possesso no centro de uma clareira que não existia antes. A seus pés, estava o corpo do Cas.

***

Xavier parou a um metro da cena, e como sempre, abordou a situação com tato e delicadeza:

— O que caralhos aconteceu aqui, Mauro? Quem matou o Cas?

O doido só revirou os olhos, como se tivesse que explicar algo pela milésima vez:

— Esse babaca não tá morto, Xavier. Só tá de frescura. Já pedi desculpas, mas pelo visto esse imbecil prepotente só vai se regenerar quando eu fizer uma droga de dogeza por querer cuidar dele.

— Filho, estou sem Gúgol Tradutor no celular há uns nove anos. Facilita?

— Reverência com as mãos no chão. Um jeito formal e japonês de dizer: Sinto muito mesmo. — Virou-se pro defunto. — E se é isso que você tá esperando, seu palerma, vai ficar aí até o Cristo Redentor congelar!

Xavier olhou pra mim e pro sujeito no chão, como quem diz: Eu não estou louco, né? Você tá vendo a mesma coisa que eu?

Levantou as mãos e falou devagar e com cuidado, escolhendo cada palavra dessa vez:

— Mauro, odeio de verdade te dizer isso, mas o Cas está morto.

— Não, não está, Xavier. Essa mula idealista não pode morrer.

— Tem buracos aqui do tamanho do meu punho, Mauro. O cara parece atingido por uma porra de raio. Por mais forte que ele fosse, ele ainda precisava ter um coração aqui, não é?

— Ele é incapaz de morrer, Xavier. Já foi incinerado, envenenado, umas mil maldições diferentes… Cinco anos atrás, explodiram o babaca com um lança granadas, e em algumas horas ele estava de volta, novinho em folha.

(Se novinho em folha quer dizer cego e com metade do corpo faltando…)

— Denise...

Tudo bem, parei de interromper.

— Quando vocês saíram, nós discutimos, ele disse as merdas de sempre, e eu perdi a cabeça. Droga, eu não devia ter usado magia.

Será que finalmente eu saberia a razão da TPM permanente do Grande Lobo Mau?

— Sabe que eu ainda posso ouvir sua mente, não é?

— Lindo, te adoro e sou tua fã, mas não faz a desentendida pra cima de mim, ok? Os dois estão mais tensos que gato em canil, e vocês não são assim. Vai, conta pra amiga aqui o que te aflige.

— Não vou discutir meus problemas com vocês, Denise — rosnou baixo, olhando pro Cas. — Foi um acidente. Às vezes acontece, alguém perde um pedaço, mas todo mundo se recupera. Porra, Cas, levanta logo! Não vou te carregar o caminho todo porque você tá com raivinha de mim!

Nos entreolhamos. Cas estava muito morto. Mauro podia estar em negação, em choque ou… aquela palavrinha com M, sabe? Já vi acontecer.

— Também não estou maluco, Denise. Por que vocês ainda estão aqui, não tem mais ninguém pra encher? Que… fiquem quietos, os dois.

Nós dois ficamos calados, ouvindo. Uns segundos depois, apareceu uma alcateia, um deles arrastando um lobo velho num estado deplorável, magro como um graveto. Alguns deles viram a gente e mostraram os dentes, até Mauro rosnar de volta.

De novo? Seth, eu já mandei vocês ficarem longe dos humanos. Do lixo deles também. Eles são egoístas, trapaceiros e gananciosos, acham que a porra do mundo é todo deles, não servem nem pra comida.

— Puxa, valeu pela parte que nos toca.

— Ah, Denise, menos hipocrisia. Se soubessem dessa alcateia, encheriam essa porra toda de armadilhas, caçadores ou os dois. Ninguém mais tem o direito de existir num lugar, se um humano aparece do inferno e diz que é o dono.

Fiquei calada depois disso. Eu conhecia essa raiva. Robson tinha, alguns seres da floresta também, e com razão. É exatamente o que o pessoal da cidade teria feito. Eu e Xav não éramos os monstros que ele descrevia, mas geralmente seres humanos ganham o prêmio Pior Vizinho por unanimidade.

— Droga, Ed, só abre a boca. — Ele simplesmente enfiou a mão na boca do lobo e puxou um pedaço enorme de plástico imundo, que esfarelou e sumiu. Mauro latiu e rosnou um baita sermão em lupinês, enquanto o lobo recuperado ficou tão encolhido de vergonha que o rabo quase encostava no focinho. Mauro sorriu cansado, e fez um cafuné no bicho.

— Você vai conseguir comer agora, Ed. Só cria juízo, cara. Escuta o Seth. Ei, Cléo, o que você achou no meu... — A loba puxou com os dentes um saquinho de tecido e o soltou no chão, abanando a cauda como se fosse uma bolinha, ou sei lá.

Mauro perdeu a cor, olhando pra sacolinha e pro Cas, e de novo pro saquinho como se fosse a coisa mais absurda imaginável (o defunto do lado não conta, pelo visto). Então desfiou uns palavrões tão sérios que tive vontade de proteger os ouvidos do lobo do meu lado.

— Puta merda, eu não usei! Só estava comigo, isso não seria suficiente pra… Meu Deus. Meu Deus. Cas, por favor, fala comigo.

Nada aconteceu. Total de zero pessoas (e lobos) surpresos.

Mauro sacudia de leve os ombros do Cas, prometendo uma pilha de coisas se voltasse, e é claro que ele não se mexeu, porque continuava, sabe... morto.

— Cas, foi um acidente, eu não quis, juro que não quis… Como você sobrevive a tudo aquilo e morre numa merda de discussão, caralho? Pelo amor de Deus, seu imbecil, volta pra mim.

Ver o Mauro falando com o Cas daquele jeito era de partir o coração, até que ele parou. Só ficou encarando o Cas quebrado. Olhei o Xaveco, e ele concordou. Nem ferrando deixaríamos o sujeito pirar de remorso. Até porque se o Mauro normal já era perigoso pra danar, nem imagino o que faria naquele estado.

— Sim, você sabe. Vou tentar uma vez, de todo o meu coração, por ele. E quando não der certo…

A dor e o ódio se misturavam, tão intensos que os olhos brilhavam. A destruição tinha um paladino, e ele sorria como um lobo faminto.

— Vou transformar Maria, Eduardo e qualquer um que tentar me impedir em nada. E vou gostar pra cacete disso.