O lobo a levou

Capítulo 3 - Lobos e cartolas


Crianças eram tolas, é verdade, mas Branca com certeza era a mais tola de todas. Agora ela se arrependia por não ter pego o outro caminho, por não ter escutado o conselho de sua mãe. Se tivesse feito o que lhe foi dito desde o início, jamais teria que ter testemunhado aquela cena grotesca.
Os cadáveres de cerca de seis homens estavam espalhados sobre a superfície congelada do lago, o sangue se espalhava rapidamente e dava a neve branca um tom carmesim, a mesma cor de seus fluídos sanguíneos. Mas o mais impressionante -na verdade, o mais assustador- era o jovem rapaz parado ali, entre aquela pilha de corpos. Ele usava um casaco de couro totalmente desgastado, que agora estava úmido pela neve que caia. As botinas que usava estavam cobertas de sangue na sola devido aquelas numerosas poças de sangue.
Aquele rapaz havia matado os cortadores de gelo com as próprias mãos? Pensou Branca. Ou os matou com as serras?
Cada ideia daquele homicídio fazia seu estômago se revirar e a garganta formar um nó. Queria correr dali, voltar para seu vilarejo e esconder-se debaixo das cobertas de sua cama, queria mais do que nunca chorar como se não houvesse amanhã. Mas nada acontecia, seus corpo não respondia à sua vontade de se mexer e sua voz não saía. Estava em uma profunda situação de pânico, tal como seu corpo paralisou. Mas ainda sim, o que mais apavorava era a figura daquele rapaz imóvel. Ele apenas olhava para sua frente sem dizer nada, observando um dos cadáveres, totalmente imóvel. Mesmo que ele estivesse sobre o gelo e a metros de distância, ela tinha certeza de que se tentasse correr seria ouvida e perseguida, certamente poderia ter até o mesmo fim que aqueles homens. Não conseguia pensar, e certamente o som de seus batimentos cardíacos ecoando não a ajudavam muito. Com o pouco de consciência que restava, usou seus joelhos para arrastar-se para trás, totalmente apavorada com a possibilidade daquela pessoa virar-se e a ver. Um assassino jamais deixaria um testemunha viva, ela tinha certeza disso.
Ele vai me ver. Pensou. Eu não quero morrer, não agora e nem aqui.
Branca piscou tantas e tantas vezes por seu desespero que sua mente se afastava cada vez mais dali, somente seu corpo parecia estar presente. A mente totalmente focada em instintos de sobrevivência. Ela fechou os olhos com força quando uma rajada de neve bateu contra seu rosto, a cegando por segundo. Quando abriu novamente os olhos não havia mais rapaz nenhum ali, somente um lobo. Um gigante lobo de pelos castanho avermelhados. Não era um lobo comum, deveria ter o dobro do tamanho de um. Mas aquilo estava longe de ser um alívio ou bela visão. Só serviu para apavorar ainda mais Branca, fosse por alucinação ou estar frente a frente de um dos carnívoros mais perigosos da floresta. Já não importava mais quem ou o que era aquilo.

Ela só queria correr e chorar, implorando por socorro. Por um minuto sentiu que sua bexiga queria esvaziar, mas segurou com todas as forças. Controlando cada movimento de seu corpo.
Era tarde quando ela tentou fazer o primeiro movimento para se levantar. O enorme e forte lobo virou-se, com a cabeça mirada exatamente na direção dela. Os olhos de cor de gelo, um brilho misterioso naquelas orbes que chegava a ser assustador. Aqueles mesmos olhos focaram nela e oscilaram, compreendendo sua existência e analisando cada parte do corpo dela. Branca sentiu-se devorada por aqueles olhos gigantes, parecia encurralada. E realmente estava. O animal rosnou brevemente, abaixando sua cabeça. As patas movimentando-se e o corpo mexendo-se em sua direção, pisoteando as poças de sangue e manchando seu pelo. Mesmo o gelo escorregadio não deixava um passo daquele majestoso animal falhar.


Eu acredito na Fera. Ela pensou, sua mente berrando. Eu acredito na Fera! Eu acredito na Fera!


O nome de todos os Deuses passaram pela mente de Branca, enquanto ela implorava e chamavam pela ajuda de qualquer um. Estava arrependida de ter desobedecido a mãe, estava arrependida de ter pego o atalho, estava arrependida de não ter ficado mais tempo observando a mamãe faisão com seus filhotes. Estava arrependida de cada ato de sua inútil e tola existência. As lágrimas quentes caiam por seu rosto, sem ela conseguir mais se conter, enquanto o lobo se aproxima cada vez mais, com o olhar fixo à ela, acelerando os passos firmemente, já sobre o chão sólido, ainda coberto de neve. Branca pensou quanto tempo demorariam para encontrar seu corpo, se seria soterrada pela neve do brusco inverno e somente seria encontrada na primavera. Quem daria por sua falta primeiro, quem buscaria por ela primeiro, quem choraria por sua ausência primeiro. Estava com medo, estava com medo como nunca esteve antes. Seu coração batia tanto quanto um tambor, enquanto os olhos só conseguiam focar nas presas a mostrar daquele animal, agora somente a poucos metros de distância dela. O lobo parou, parecendo cheirar o ar, cheirar a essência daquela mera humana que ousou cruzar seu caminho. Ele certamente a devoraria, Branca não tinha dúvidas.
- Não me mate.
Era a única coisa que Branca conseguiu murmurar, ninguém mais além dela e o lobo estavam ali. Tinha certeza de que como qualquer animal, ele não entenderia, ela havia falado aquilo por impulso e calor do momento, pela sede de sobrevivência, mesmo sendo estúpido. Mas então...por que parecia que, mesmo que por segundos, os olhos daquele lobo se tornaram menos ferozes? O animal escondeu as presas, mas não deixava de ter uma postura de guarda levantada, as orelhas erguidas com toda sua atenção. Por um momento, o medo de Branca diminuiu só um pouquinho. Ela ouvira uma vez que animais só atacavam quando sentiam-se ameaçados, era preciso manter-se calmo e não fazer movimentos bruscos. Quis tentar falar outra coisa, mas não sabia bem o que e nem como. Era só um lobo, mesmo que a alucinação de um ser humano de antes. Ela não sabia o que era pior. O animal não parecia ter a intenção de ir embora, nem mesmo de voltar às carcaças dos cortadores de gelo. Não, ele estava com toda sua atenção voltada a ela, a garota de capa vermelha que se aventurou na floresta e teve o azar de cruzar seu caminho. Pobre garotinha. Com sua última coragem, e talvez sanidade, Branca estendeu seu fino braço em direção ao animal, sentindo o focinho gelado encontrar-se com a palma de sua mão. Branca sentiu a respiração quente dele em sua pele, farejando seu odor. Ela encontrou-se com aqueles olhos azuis, azuis gélidos. Claros como o gelo refletido, em um azul pálido e glacial. Branca explorou aqueles olhos profundos, decifrando cada emoção que transmitiam. Medo. Raiva. Calma. Impaciência. Tormento.
Abriu e fechou a boca repetidas vezes, mas não disse nada. Parecendo capturar a atenção do animal. Ele afastou-se, dando passos para trás sem afastar o olhar com a garota. Ele abaixou a cabeça e levantou as orelhas, piscando os olhos lentamente. Branca não entendeu, não tinha como entender um animal. Mas aquilo foi o suficiente para o lobo sair em retirada, as patas esmagando a neve e metendo-se entre as árvores, agitando os galhos dos pinheiros. Branca não moveu um músculo até notar que os passos do animal não podiam ser mais ouvidos, mas apenas um uivo soar, muito muito longe.
Sem saber direito o que fazer, levantou-se cambaleando, a neve derretendo sobre a saia do vestido e a capa. Os braços trêmulos agitando a cesta que carregava. Branca olhou de relance para os corpos estirados sobre o lago. Então correu, correu como nunca, correu como uma louca, os passos dizendo que sua vida dependia daquilo. Os pulmões a todo vapor e a respiração falhando, não sabia direito para onde estava indo, mesmo tendo o senso de direção. Os galhos batiam e machucavam seu rosto, os pássaros agitados e voando pelo ar para não serem esmagados pelos passos atormentados e sem controle. Lágrimas quentes caíam sobre sua face, a respiração pesada e sem saber o que pensar. Por que ela tocou naquele animal repugnante? Deveria ter enfiado sua faca no pescoço dele e corrido como fazia agora, era luta pela sobrevivência. Agora sentia-se uma menininha que foge para o colo da mamãe. Mas naquele momento, ela já nem lembrava o caminho de casa. Branca foi obrigada a parar quando tropeçou em um pedregulho e rolou um pequeno deslizamento de não mais que três metros, por sortes a neve era fofa e parecia amortecer e impedir sua roupa de ficar -ainda mais- suja. Ela apoiou-se sobre as mãos, encarando o chão borrado pelo choro, fungando e tentando controlar a respiração. Estava apavorada, sem saber o que fazer. Tinha testemunhado o que podia ser o genocídio executado pela fera. Ela poderia estar entre as vítimas, mas não estava, e não entendia mais o que acontecia. Toda sua sanidade havia ficado para atrás, só seu corpo estava ali.

Branca engoliu o choro que subiu pela garganta, fazendo o máximo para respirar profundamente. O ar gélido que penetrou em seus pulmões permitiu que pouco a pouco sua mente clareasse, a sanidade voltando e conseguindo processar cada acontecimento com uma visão mais lúcida. Olhou para a mão trêmula que havia tocado o lobo, mesmo agora não conseguia entender porque havia feito aquilo. Mas estava viva, era apenas isso que ela se importava. Não queria passar mais nenhum segundo naquela floresta, com medo de uma alcateia de lobos gigantes aparecer. Levantou-se com dificuldade, arrastando-se por uma estrada aberta pela neve, com leves pedregulhos surgindo. Deveria ser uma estrada para algum vilarejo que a neve havia escondido, mas ainda era nítido as pedrinhas surgindo na camada branca, marcando a trilha.
As botas arrastaram-se e chutaram a neve, caminhando cautelosa por aquele ambiente que tudo parecia ser igual. Ela evitava ao máximo encarar algum monte de neve ou um laguinho congelado de surgisse, pois quanto mais tempo olhasse, aquilo parecia ganhar uma cor vermelha. A lembrança ainda muito fresca em sua mente, algo que não esqueceria tão fácil ou tão cedo.

Branca aliviou-se quando notou luzes amareladas e brancas surgindo abaixo, ao longe da pequena colina que estava. Era o vilarejo de sua avó, com casas de madeiras com a pintura variando entre marrom, vermelho e branco. Comparado ao vilarejo de Branca onde só usavam lenhas das árvores, aquele vilarejo tinha uma aparência muito mais feliz e moderna, talvez porque estivesse mais perto de outras cidades comerciantes. Branca desceu o caminho nevado, atravessando uma ponte de pedras onde um fino riacho passava por baixo, um caminho que ela não sabia ao certo onde terminava. Algumas barracas de frutas e peles de animal ainda estavam estendidas, mesmo que faltasse minutos para o pôr do sol. As crianças caminhavam alegre, os meninos usando gravetos para brincar de espada e as meninas exibindo suas bonecas de porcelana, uma mais bonita que a outra, com cabelos que parecia reais e vestidos de seda coloridos. Branca se sentia bem com aquele cenário tão feliz, algo que seu vilarejo não tinha há algum tempo. Parou em frente à uma casa pintada de amarelo claro, com uma porta de madeira decorada com vasos de flores ao redor. Branca deu três batidas, quando uma voz ecoou do lado de dentro.


- Quem é?
- Sou eu, vovó. - Branca respondeu. - Sua neta.
- Entre, meu bem. A porta não está trancada, só fechada.
Branca virou a maçaneta, escutando o ranger da porta a anunciando. O piso de madeira também era um convite, mas parecia se incomodar com a neve que escorria das botas, rangendo negativamente. Branca fechou a porta, não permitindo que a rajada fria de vento entrasse, o chalé estava aquecido pelo calor da lareira, que sua avó deixava acessa praticamente o inverno inteiro. A mais jovem colocou a cesta sobre uma pequena mesinha redonda, retirando a capa vermelha e pendurando em uma cabide. Por baixo Branca usava apenas um vestido que parecia mais uma camisola, branco rosado, feito de seda. Era o vestido que ela mais adorava, mesmo agora sendo um pouco pequeno e batendo na altura dos joelhos. Retirou as botas e colocou de lado, ficando apenas com suas meias feitas de renda. Confortavelmente sentou-se no tapete em frente a lareira, à sua avó atrás dela, sentada em uma cadeira de balanço. A avó usava apenas uma longa camisola e uma touca, com alguns fios que escapavam aqui e ali. Esboçou um sorriso.
- Fique à vontade. - A avó acariciou o ombro dela. - Como foi sua viagem?
Branca refletiu, mordendo o lábio inferior.
- Foi bem, eu acho.
A avó levantou uma das sobrancelhas, apertando um pouco o ombro da neta e se inclinando na cadeira.
- Está mentindo, querida. Seu tom de voz não está nada bem.
- É que...
Branca observou a avó, os olhos castanho escuros, a encarando. Branca reparou em cada detalhe da mais velha. Mesmo com traços de idade surgindo cada vez mais na face, a idosa ainda possuía um contorno nítido de um rosto oval, com lábios avermelhados e bochechas que (ainda) não estavam enrugadas. Cabelo castanho claro com cada vez mais fios brancos surgindo, mãos enrugadas, embora os braços e ombros, assim como quase todo o corpo ainda estivessem em certa conservação de meia idade. Ela era velha, mas não tanto. Ainda estava nos fins dos dias de uma quase juventude.
Branca negou com a cabeça suspirando, ela não queria preocupar a avó com aquilo, nem assusta-lá, já estava doente, não precisava de outra coisa para a preocupar. Mesmo que fosse egoísta ou totalmente estúpido, não tinha certeza como (ou se podia) contar o que viu na floresta. Nem ela mais sabia se aquilo havia sido real ou alucinação.
- Não é nada, apenas me perdi no caminho. Mas agora estou bem.
A avó abaixou o olhar tristemente sobre a neta, resolvendo não questionar mais nada. As mãos enrugadas acariciando seu cabelo e em uma tentativa de fazer uma trança sem prender, apenas para acalmar ou ocupar sua mente com outra coisa. As duas ficaram assim por alguns minutos, quietas sem dizer nada, apenas encarando o fogo, as labaredas estalando, enquanto a aqueciam. O barulho lá fora aumentava, com crianças brincando e casais de namorados trocando juras de amor. Aquilo fez a mente de Branca se afastar por um tempo de pensamentos perturbadores, com as cenas da floresta a rodeando. O rosto rubro e aquecido pelo fogo, com o som de pessoas alegres e sua a avó fazendo carinho em seu cabelo, era o suficiente para a acalmar. Depois de um tempo e já mais calma, decidiu quebrar o silêncio.
- Eu trouxe torta de maçã, feita pela minha mãe. Quer provar? Também tem chá e ervas medicinais.
- Eu iria adorar. - A avó respondeu, sorrindo docilmente.
As duas ficaram na cozinhas, sentadas na mesa enquanto Branca apreciava uma xícara de leite quente com mel, feito pela avó, saboreando um pedaço de torta. A morena olhou pela janela, o horizonte amarelado se transformando em azul e roxo, anunciando a noite que caía e fazia as crianças retornarem para suas casas, em busca de calor, comida e o carinho das mães. Branca levantou-se, caminhando até onde estavam suas botas, agora já secas, calçando uma de cada vez.


- Preciso voltar para o vilarejo antes que anoiteça por completo.
- Que bobagem! - Disse a avó - Por que não fica aqui? Tenho um quarto vago ao lado do meu, pode passar a noite.
- É melhor não, vovó. - Branca respondeu, caminhando até o cabide. - Aproveite a torta, e tome os remédios. Volto depois de amanhã.
Ela puxou a capa do cabide e vestiu, acobertando os ombros pela camada de frio que sabia a esperava, Branca abriu a porta com o vento quase a empurrando de volta para dentro, a neve cortando seu rosto. Quando chegou à metade da rua pedregosa, olhou para trás, onde a avó a encarava aflita com as mãos apoiadas no vão da porta. Branca apenas acenou e sussurrou um "Eu te amo" que foi silenciado pelo uivo do vento. Ela desceu a rua, agora sem mais ninguém e todos dentro de suas casas, com as luzes acessas para aproveitar o jantar. Branca acelerou os passos, sentindo seus joelhos gelados e segurando firmemente o capuz, a capa sendo agitada pelo vento. Quando chegou a ponta, Branca ficou com os olhos semicerrados, tentando encontrar o caminho por aonde veio, mas não havia muitas opções quando estava quase cega.


- Precisa de ajuda?


Ela apertou os olhos, encarando quem estava o seu lado. Um homem gordo e um pouco mais alto que ela, usando um longo casaco de pele e uma cartola furada. Os dentes amarelados esboçando um sorriso. O homem estava apoiado em uma carroça de madeira, que era guiada por uma única e jovem égua branca.
- Para onde quer ir? - O tom de voz áspero.
Ele puxou um cachimbo do bolso do casaco, acendendo. Perfeito, agora além do vento, Branca tinha uma fumaçada cinzenta atrapalhando sua visão e incomodando seus pulmões.
- Para o vilarejo Nightball, fica no meio da floresta. - Ela disse, tentando apontar para nem ela mais sabia se era a direção certa.
- Te levo lá por três moedas de prata.
Branca franziu o cenho. Um oportunista. Ela repensou em seguir o caminho sozinha, mas flashs de corpos sobre o gelo ameaçaram sua escolha, junto a pré-cegueira pelo vento e neve. Desse jeito, ela seria presa fácil até para um lobo do mesmo tamanho de uma boneca.
Acariciou o bolso da camisola, sentindo cinco moedas. Duas de prata e três de bronze. Ela puxou e esticou para o homem que agora ela mal conseguia ver, mesmo que estivesse à alguns centímetros dela.


- Feito! - Ele disse, puxando as moedas e enfiando em seu bolso.
Branca apoiou-se sobre uma das laterais da carroça, criando apoio com os pés e jogando-se sobre algo que parecia feno. Ela se acomodou um pouco longe de onde ele estava, agora como cocheiro e acendendo um lampião ao seu lado, ele puxou as rédeas e fez a égua branca seguir em frente pela ponte. Quando entraram pela floresta, as rodas esmagavam violentamente a neve. Branca agora não sentia que a floresta era tão apavorante, com o céu roxo do inverno sobre suas cabeças, agora já de noite.
Puxou os joelhos contra o peito, a capa vermelha cobrindo todo seu corpo exceto o rosto, ela agora ansiava por chegar em casa o mais cedo possível. Pelo ritmo da carroça demorariam uma hora ou uma hora e meia. Mas não estava mais tão preocupada, visto que chegaria mais rápido, e mesmo que não sendo das melhores, tinha companhia. Cada vez que ele tragava a fumaça, um odor forte vinha em seu rosto, a fazendo tossir. Após muitos minutos de viagem, o homem decidiu puxar conversa.


- Qual seu nome? - O homem perguntou, a olhando por cima do ombro.
Branca podia sentir que aqueles olhos amarelados não eram de alguém gentil, podia notar uma malícia brilhando, aquelas íris a encarando por cima do casaco de pele.
Cobriu um pouco do rosto, olhando para o lado e apertando ainda mais os joelhos.
- Vanessa. - Mentiu. - Me chamo Vanessa.
- Vanessa. - A palavra dançou pela língua dele, apreciando. - E quanto anos você tem, Vanessa?
- Vinte e três.
Nunca que uma garota de dezesseis anos teria uma aparência de alguém oito anos mais velha, mas foi a única coisa que conseguiu pensar. Mentir parecia ser a melhor opção. O homem soltou um riso sarcástico no ar, deixando fumaça escapar pelos lábios quando retirou o cachimbo. Branca sabia que ele sabia que ela estava mentindo. Aquilo não era um bom sinal.
- Aqui está bom. - Ela disse, avistando que já haviam passado um pouco do lago com cadáveres. Eles pareciam uma melhor companhia que o homem.
- Não, não. - Ele disse. - Você me pagou para levá-la ao seu vilarejo, portanto vou te levar até lá.
- Pode ficar com o dinheiro, eu não ligo.


Branca apoiou-se no forro de feno da carroça, procurando impulso com os braços e tentando sair. Mas não teve sucesso, o homem agarrou seu pulso com força e a puxou, a mão dele era áspera e gelada. Com pressa, Branca puxou a faquinha de cozinha e fincou no antebraço dele, sentindo a pele cortar e os músculo rasgando contra a lâmina, era uma faca pequena, mas bem afiada e poderia fazer um estrago. Ela já havia entendido as intenções dele.
- Sua putinha! - Ele gritou de dor. - Eu vou te estrangular!


Branca pulou da carroça, puxando a capa e correndo entre os pinheiros. O homem da carroça desceu enfurecido, correndo atrás dela. Gotas de sangue pingavam do ferimento causado pela faca, enquanto ele apertava, correndo atrás da jovem. A capa vermelha carmesim era fácil para ele a encontrar naquele ambiente totalmente branco, se destacava bastante. Branca cerrou os olhos, com o vento nevado assoprando e atrapalhando até mesmo sua audição, ela esperava que o homem também estivesse em uma situação parecida ou pior, ou senão ela estaria em verdadeiro apuros. Ela não viu um enorme rochedo em seu caminho, tropeçando e caindo contra a neve gelada. Antes de se levantar, sua capa foi pisada, o capuz apertando em seu pescoço e a impossibilitando se fugir. Olhou para trás, encarando o olhar furioso do homem que agora a cartola havia sido levada pelo vento, revelando uma cabeça calva de fios negros. Ele pressionou o ferimento que gotejava pela neve vermelha, ainda com a faca presa.


- Gostou de me machucar né, sua vaca. - O homem pisou ainda mais na capa. - Agora eu é que vou te machucar.
Branca sentiu medo, sentiu medo pela segunda vez naquele dia. Pela segunda vez o destino parecia a odiar, parecia querer que tudo de ruim acontecesse com ela. Mas daquela vez não era um lobo que estava a sua frente, era algo muito pior. Era um ser humano mal intencionado. Algo muito mais difícil de lidar.
Branca tentou chutar o tornozelo dele, mas foi em vão. Com uma expressão de dor, o homem puxou a faquinha e jogou no chão, a neve ganhando um aspecto avermelhado que Branca odiava ver, agora com uma outra péssima recordação. O homem caminhou até ela, sorrindo. Branca sentiu medo, pavor, nojo. Fechando os olhos e sentindo lágrimas quentes escaparem pelas bochechas.
- Não chore, princesa. Eu vou ser-
Não teve tempo de executar aquela frase grotesca, algo pulou nos pinheiros e derrubou o homem, mordendo e puxando seu pescoço. Branca se contorceu de medo na neve com os gritos daquele homem, ela havia levado um susto, não sabia o que aquilo era. Mas podia escutar rosnados e o homem berrando por socorro, o sangue sendo espalhado pela neve e chicoteado pelo vento gélido. Garras se mexiam no ar, junto a presas brancas afiadas. Branca fez um esforço para ajoelhar-se e tentar enxergar o que acontecia.
A rajada de vento diminuiu, revelando um enorme e musculoso lobo de pelo acastanhado que agora as patas estavam manchadas de vermelho. A expressão do homem abaixo dele estava paralisada, marcada pelo eterno medo, a mesma expressão dos cortadores de gelo. A expressão de um cadáver. Tanto o cheiro quando a imagem traumatizaram Branca, que se jogou para o lado, deixando que vômito escapasse de sua boca, uma combinação do leite e da torta de mais cedo. Quando terminou e limpou a boca com o pulso, olhou novamente. O que estava ali não era mais um lobo, não.


Era um rapaz alto, usando um casaco de couro que cobria uma única camisa branca desgastada. Os cabelos castanhos lisos e repicados, totalmente rebeldes. O tom castanho levemente ruivo, como carmesim. Olhos azuis brilhantes no escuro, como safiras pálidas, da mesma cor do gelo. Ela suspirou fracamente quando notou que as mãos dele estavam ensaguentadas até debaixo das unhas. Branca não tinha dúvidas que aquele rapaz era o mesmo que havia matado os cortadores de gelo. Mesmo com a pequena alfinetada de agradecimento poer ele ter a salvado de um homem que provavelmente arrancaria sua pureza e depois a mataria, ela sabia que aquele sentimento era errado e repulsivo, o agradecimento por um homicídio, mas não podia se controlar.
Paralisou quando notou aqueles olhos gélidos afiados a encarando. As botas de couro saíram de cima do peito do homem que agora estava morto, caminhando lentamente em direção a garota. Ela segurou um segundo vômito com o cheiro de sangue que vinha das mãos dele. Fechou os olhos quando ele se ajoelhou em frente a ela, empurrando o capuz que deslizou por sua nuca, revelando cabelos negros bem penteados que agora estavam cobertos por pequenos pedaços de granizo e gelo, trazido pelo vento. Os lábios avermelhados de Branca estava inchados e pálidos, provavelmente pelo medo e frio. Sentindo falta do calor da lareira da casa de sua avó.
- Não te matarei. - O estranho sussurrou.
A voz dele era profunda, mas doce de certa maneira. Hipnotizante era a melhor palavra. Branca abriu voluntariamente seus olhos, as pupilas refletindo as íris azuis claras que a encaravam de maneira penetrante, vasculhando sua alma e decifrando todas suas emoções. Os cabelos agitados pelos ventos,ficando mais bagunçados ainda, afastando-se e um pouco dela e ficando de pé, ele estendeu sua mão. Branca hesitou, antes de tocar nas mãos que o sangue já estava seco e gelado, mas ainda manchando sua palma e dedos. Ela limpou na capa, temendo aquele cheiro.
O rapaz caminhou até o homem, cutucando sua costela com os pés. Só para então pegar o homem e o jogar por cima dos ombros, os sangue espalhando-se pelas suas costas. Caminhou e jogou o homem ao lado dos pés da carroça, a égua evidentemente agitada. Ele olhou para trás, fincando o olhar em Branca, ela entendeu aquilo como um aviso para o seguir. Foi o que fez, antes de pegar sua pequena faquinha que estava jogada sobre a neve, a lâmina agora fria.
Ele separou a cela da égua e da carroça, deixando-a apenas com rédeas. Branca foi surpreendida com o rapaz envolvendo as mãos em sua cintura e a jogando sobre o lombo do animal, que bufou irritado e bateu um dos cascos na neve. Branca abaixou o olhar para o garoto, vendo de onde estava, ela podia notar a pele pálida em tom pêssego que ele tinha, um rubor natural.


- Quem passar por aqui vai pensar que ele foi roubado, um assalto é comum em estradas à noite.
Abaixou-se e vasculhou os bolsos do home, puxando moedas e as devolvendo para Branca, mas ela recusou.
- Não quero isso. Você o matou.
- Ele ia fazer o mesmo com você.
O rapaz observou o cadáver, estirado na neve. Pelo estado de seu corpo, com marcas de garras e mordidas pelo pescoço e braços, pensariam mais que foi um ataque de animal. Talvez até da...fera.
Branca observou bem o rapaz que ainda estava de costas para ela, encarando o cadáver. Poderia ser ele a famosa "Fera"? Um homem que se transforma em lobo, algo assim Branca nunca havia ouvido falar. As marcas de garras no homem eram um pouco menores que a marcas nas costas de Desmond, não pareciam pertencer ao mesmo ser. Mas aquilo não diminui as suspeitas de Branca, ela já havia visto o que aquilo era capaz de fazer, não tinha porque criar tantas dúvidas em sua cabeça. Ele podia não ser A Fera, mas era de fato uma.


- Esse homem era um estuprador e assassino em série. - Ele respondeu, fazendo Branca se assustar. - Duas garotas de um vilarejo próximo foram vítimas dele. Tinham doze e quinze anos.
- Você parece saber bem da vida das pessoas, e de seus vilarejos. - Branca abaixou o olhar, acariciando o pelo da égua.
Ela sentiu o olhar dele sobre si, mas não tinha nenhuma emoção. Ele era indiferente à ela agora. Mas aquilo não a incomodou, pelo contrário, sentia-se muito aliviada de não ter que se preocupar em um assassino ter laços sentimentais com ela.
- E como sabia quem ele era? - Branca perguntou.
O clima ao redor parecia tenso, uma camada pesada caindo sobre os dois. Branca escutava diversos uivos de lobos ao longe, aquilo fez a égua se agitar e bater os cascos ainda mais na neve, mas Branca puxou as rédeas para a controlar, ainda não tinha terminado sua "conversa".


Ele deu um riso seco, antes de responder.
— Tenho bons sentidos. - Ele apontou para seus ouvidos.
Branca engoliu em seco, o vento agitando seus cabelos e fazendo a neve cobrir um pouco de seu capuz. A égua estava agitada e irritada, mais um pouco e Branca tinha certeza que seria derrubada e deixada para trás pelo animal, os uivos pareciam se aproximar.
Espere um pouco. Pensou Branca. Seja mais paciente.
Os olhos dela se encontraram com os dele, as pupilas diminuindo em meio a cor azul claro, ficando um pouco mais cinzenta e esbranquiçada. Branca sentiu os fios das pernas se arrepiarem, mas não pelo frio. Ela se inclinou um pouco, os cabelos negros deslizando do capuz e escondendo um pouco de seu rosto pálido. A noite estava totalmente escura e com vento, a única coisa que permitia que ela o visse era o lampião acesso no banco do cocheiro, que desde o momento que foi acesso, permanecia intacto, mesmo que com a fuga e um assassinato.
- Os cortadores de gelo também eram estupradores e assassinos?
Ela perguntou, para a surpresa do rapaz, as íris dilataram, antes de diminuir novamente. Um pequeno brilho de surpresa pairando em suas pupilas. Branca não disse mais nada, batendo os calcanhares contra a barriga da égua, que saiu correndo sem parar. Corria tão rápido que toda a paisagem passava em flashs para Branca, o vento batendo contra seu rosto. Ela apertava os olhos para enxergar mais a frente, mas sabia que estava (mais ou menos) no caminho certo. Branca escapava dos uivos ao longe, escapava do rapaz e escapava do cheiro da morte que a perseguia.
Seu coração batia acelerado, sendo que até há pouco tempo parecia ter parado, pelo susto e adrenalina. Ela agora corria dos seus medos e pavores, literalmente.
Qualquer pessoa naquela estrada se assustaria com a imagem de uma garota de cabelos negros como ébano, vestindo uma capa vermelha que se agitava e estendia no vendo, sobre uma grande égua de cor branca como leite, correndo como se não houvesse amanhã. Qualquer pessoa diria que era um fantasma, uma lenda, uma maldição.
Mas era apenas Branca, correndo no frio noturno, escapando do seu segundo encontro com o Lobo. Escapando de duas quase mortes. Escapando do medo.