O lobo a levou

Capítulo 1 - Há muito tempo atrás


Há muito tempo atrás, quando homens velhos reuniam-se em volta de uma fogueira para contar histórias para crianças e quando as casas ainda eram feitas de madeira e pedra, existia um enorme vilarejo. Localizado além das montanhas e entre as florestas, o vilarejo abrigava mais ou menos 100 famílias com um número razoável de filhos. As tradições reinavam desde que os primeiros morados chegaram àquelas terras e construíram seus lares com seu sangue e suor, mesmo com o perigo iminente da noite, sob as árvores e a escuridão da floresta, o fogo e sua ambição eram seus únicos incentivos para continuar, sonhando no dia que aquele lugar se tornaria seu lar. E deu certo, mesmo depois de décadas, as famílias ali continuavam a seguir com seu cotidiano e tradições. Os filhos quando se tornavam "homenzinhos", aos seus onze ou doze anos, eram levados para passar alguns dias na floresta com os pais, para aprender a cortar o tronco das árvores, pescar e caçar, sempre visando trazer sustendo ao lar. As filhas quando se tornavam moças, eram ensinadas a costurar e recolher frutas nos arbustos, claro sempre estando atentas ao que era ou não venenoso. Só alguns anos mais tarde eram ensinadas a cozinhar e cuidar da casa.
Dentre tantos casais e famílias felizes, existia ali, no centro do vilarejo, um casal. Há muitos anos tentavam ter um herdeiro, uma criança que iluminaria suas vidas e seguiria sua linhagem, mas sem sucesso. Em uma tarde de inverno, costurando um rasgo da roupa do marido à janela, a ponta da agulha furou o dedo da mulher. Uma única gota de sangue pingou e coloriu a neve branca. Olhando para o céu cinzento e suspirando, a mulher cochichou.
— Se eu pudesse fazer um único desejo... - Pensou. - Seria ter uma filha. Seu cabelo seria preto como ébano, seus lábios vermelhos rubro...e sua pele branca como a neve.
Sem ter noção que as palavras poderiam ter tanto efeito, como os velhos ditados diziam, ela se recolheu para dentro. Nas próximas semanas a mulher sentiu fortes enjoos e tonturas. Com seu período atrasado, foi constatado que ela estava grávida. O marido e a mulher não podiam estar mais felizes, celebraram com o melhor assado de porco que o marido caçou. Após os nove meses de espera, nasceu Branca. Recebeu esse nome do pai, como um provocamento pelo que a esposa contara sobre o pedido que fizera naquele dia nevado. Branca cresceu e se tornou uma bela moça, exatamente como a mãe havia desejado. Seus cabelos negros formavam uma cachoeira que descia até a cintura. Os lábios sempre avermelhados, rubros naturalmente. E sua pele claro, tão pálida como a neve. Era uma das beldades do vilarejo, sempre encantando a todos quando passava pelas ruas, abaixando a cabeça timidamente.


— Lá vem nossa Branca de Neve. - Era como apelidavam carinhosamente.


Aos treze anos, quando Branca se tornou mocinha, sentiu felicidades. Finalmente sentia que não era mais uma criancinha boba, que estava sempre caindo e ralando os joelhos. Mas sentiu medo, a responsabilidade sobre seus ombros começava a pesar mais.
Cerca de uma semana depois, foi chamada na cozinha por sua mãe. Havia uma visita, a avó de Branca, mãe de sua mãe. A velha e sorridente senhora morava em uma vilarejo mais distante, além da floresta, que demorava quase um dia inteiro para chegar. Branca sentia que aquela visita era importante.
— Minha doce e bela neta. - Disse a senhora, a mão enrugada acariciando a face jovem da neta. - Faz tanto tempo que não a vejo. Olhe como cresceu.


De um saco de pano velho, a senhora retirou uma capa vermelha, tão vermelha e reluzente quanto os lábios de Branca. Ela tocou o tecido, maravilhada com a capa que protegia desde a cabeça com uma capuz e estendia-se como uma calda até o calcanhar.
— Fiz este presente para você, meu doce. - Constatou a velhinha, ficando feliz com a reação da neta.
Desde aquela tarde que a avó viera lhe visitar, Branca passou a usar a capa todos os dias e todas as horas. Sinceramente, a capa destacava ainda mais sua aparência. Os comentários na vila aumentavam, alguns até brincavam dizendo que ela era mais bela que a princesa do reino.


— Olhe aí a Branca de Neve de novo. - comentou um homem da janela de sua casa.
— Agora não seria a Chapéu Vermelho? - a esposa riu, divertindo-se.


Branca apenas deu um breve aceno com a cabeça, ao mesmo tempo que vinham elogios, sentia que zombavam dela sem perceberem. Puxando o gorro ainda mais contra a cabeça, acelerou os passos sobre o caminho de terra entre as casas. Estava à cinco metros dos portões do vilarejo. Mesmo ao longe, reconheceu um robusto homem que ajeitava uma mochila feita de pele sobre as costas, a barba por fazer e o cabelo bagunçado pareciam familiares. Ao seu lado, uma criança que não deveria ter mais que treze anos, falava alegremente com o mais velho.
Oh, sim. Constatou Branca. É o lenhador Tom e seu filho mais velho.
Branca aproximou-se por trás da criança e ajeitou seu gorro de lã que estava torto na cabeça, o jovem virou-se assustado, mas logo um sorriso largo e com dentinhos tortos apareceu.
— Bom dia, Branca! - A criança disse, com o nariz entupido.
— Bom dia, Desmond. - A jovem disse calmamente, olhando para o homem mais velho. - Indo cortar lenha, Tom?
Tom apenas deu uma gargalhada forte, batendo na barriga.
— Não, não. - Disse entre risos, era sempre tão bem humorado. - Esse jovenzinho aqui não parou de me perturbar até que eu prometesse levá-lo para caçar um coelho.
— Não sente pena dos animaizinhos, Desmond? - Branca abaixou o olhar para a criança.
— É que minha mãe tá esperando outro irmãozinho meu. - A criança disse, com a maior inocência do mundo. - Quero fazer um guisado de coelho para ela melhorar.
— Entendo... - Branca sorriu gentilmente. - Se lembrar-se, pode me trazer um ramo de flores? Eu gosto muito dos ramos da floresta.
— Tudo bem! - A criança disse animadamente, com um tom de voz elevado.
Desmond tinha apenas nove anos, mas parecia ser mais inteligente para a idade, mesmo que ainda inocente. Tom deu um breve aceno feliz para Branca, ele e o filho se juntaram a mais quatro homens, um grupo de caça. Provavelmente só retornariam a noite, não se arriscariam a entrar muito profundamente da floresta, ainda mais com uma criança acompanhando. A floresta era cheia de mistérios para Branca. Não era todo mundo que podia sair e quando queria, haviam regras. A floresta tinha perigos desde que os primeiros e mais velhos moradores moravam lá. Boatos e lendas surgiram entre a fumaça da fogueira, as crianças sentiam medo e curiosidade. Maldições espreitavam aquela floresta como uma cobra espreita um rato, pronto para abater. Mas conforme os anos e a pessoas de novas gerações passavam a acreditar cada vez menos naquelas histórias, a floresta se tornava cade vez mais um cenário comum. Sem lendas ou boatos.
Branca recolheu algumas frutinhas que nasciam de arbustos no lado de fora do muro, era o mais longe que ela ia do vilarejo. As mulheres, o máximo que se afastavam, fosse por medo ou deveres, era no riacho para lavar as roupas. Branca logo recolheu-se para o interior dos muros novamente, retornando pelo mesmo caminho que viera.
Quando a noite caiu como um véu pelo céu, as risadas e flautas tocavam pelo centro da pracinha. Os moradores mais velhos já se acomodavam nos troncos ao redor da fogueira, pensando nas mais assustadoras histórias, tentando disciplinar um pouco os mais jovens com o medo. Branca apenas sentou-se na cadeira da cozinha, retirando com uma pequena faquinha, o talo das frutinhas que recolherá mais cedo. A mãe ria na janela, enquanto observava o marido pular ao redor da fogueira do lado de fora, tocando uma flauta e rindo, de vez em quando recebendo um xingamento por assustar um velho resmungão. Branca sentia-se confortável nessa atmosfera, sentia que podia ficar ali para sempre.
— Socorro!
De repente, ela pensou escutar um chiado ao fundo, algo que não combinava com aquele conforto e felicidade. Silenciou-se para escutar melhor. Não, não era nada. Talvez fosse apenas sua imaginação. Que criança tola ela ainda era.
— SOCORRO!
Dessa vez ela não teve dúvidas, as flautas e sons de risada pararam. Abandonou as frutas na cesta e correu para a janela. Sua mãe segurou seus ombros apreensiva, as mãos trêmulas buscando conforto.
A imagem era aterrorizante. Tom estava ensaguentado da cabeça aos pés, com diversos arranhões por seu corpo e feridas. Todos olhavam assustados, abismados, para aquela figura que um dia foi o homem sorridente e gentil que todos conheciam. Agora sua expressão estava assustada, sobre os ombros ele parecia carregar algo. Um corpo de criança. O coração de Branca pareceu pausar por um segundo. Desmond.
— O que aconteceu?! - Alguém ousou quebrar o silêncio.
— Uma fera. - Tom concluiu, em poucas palavras. - Cercou todos nós. Rasgando nossas peles e nos puxando para o escuro entre as árvores.
— Urso?
— Lobo?!
Tom apenas negou com a cabeça, colocando o pequeno corpo de criança no chão. Branca se aliviou quando percebeu que estava em pé, estava vivo. Desmond estava de cabeça baixa, segurando fortemente nas mãos um galho de roseira. Apertava tanto que os espinhos perfuravam suas pele e a faziam sangrar.
— Era um monstro terrível. - A criança concluíu, levantando a cabeça. Metade de seu rosto tinha um arranhão leve, com certeza cicatrizaria rápido. A criança virou de costas para todos, revelando uma única terrível marca de garra, com quatro unhas que rasgaram a pele das costas do menino.
— Meu filho foi o único que consegui salvar. - Tom concluiu. - Tentei mesmo ajudar os outros, mas um a um, meus amigos foram levados pela fera.
Aquela foi a última noite de paz que o vilarejo teve, homens trocavam de turno nos portões dos muros do vilarejo, a saída estava proibida exceto para caça de comida. As mulheres tinham que esperar a chuva com seus baldes para finalmente lavar a roupa suja acumulada. Os arranhões nas costas de Desmond se tornaram uma feia e profunda cicatriz. Toda vez que alguém questionava se a floresta era mesmo tão perigosa quanto diziam, eram lembrados sobre a marca nas costas do pobre garoto.

O pai de Desmond também guardava cicatrizes daquela noite, fossem físicas ou mentais. A família havia se tornado mais calada, o lenhador simpático agora conversava em murmúrios e suspiros, Desmond mal saía de casa, e quando fazia isso mal conversava ou olhava para as pessoas, parecia ter medo de tudo ao seu redor. Tudo por culpa da fera. A mesma fera que a cada dia cresciam mais boatos no vilarejo, como uma raíz venenosa vai afetando uma árvore. A mesma fera que aterrorizava os sonhos de Branca. Perguntou-se se um dia seu tão amado vilarejo se livraria daquele mal. Pobres crianças, nunca reconhecem ou pensam no destino que pode vir.