O homem invisível

A sacudidora de palavras


Tudo nessa vida pode ser piorado, caro leitor. Creio que isso você já saiba, já tenha ao menos deduzido. Deve estar se perguntando por que estou tocando nesse assunto no momento, então eu lhe respondo que é exatamente aqui que começamos mais um mero capítulo de luta do nosso amado e tão lutador homem invisível. Se você acha que a vida de nosso judeu já está ruim o suficiente até aqui, sinto em lhe informar que tudo pode piorar, principalmente se você é um judeu no auge da Alemanha Nazista. Se isso o deixou curioso, então venha comigo, deixe tudo que está fazendo e me acompanhe, vamos dar uma caminhada em meio a muitas outras pessoas nessa maravilhosa e idolatrada Marcha da Morte.

Nosso homem invisível, ainda imerso em seus pensamentos, sente o trem parar bruscamente, corpos caem, já sem vida, com o impacto. O cadáver feminino ainda está apoiado sobre seu ombro, um odor mortal, misturado ao cheiro de sangue judeu. Max Vandenburg sente que está cada vez mais próximo de se tornar um daqueles cadáveres, nosso homem invisível sabe que jamais poderá cumprir a promessa que fez a Liesel, de que ela não o iria perder. Com os olhos fechados, sentiu seu coração judeu se despedaçando aos poucos, as lágrimas escorrendo por seu rosto, misturando-se ao sangue de suas feridas faciais abertas, o ardor provando ao nosso lutador judeu que ele ainda estava vivo. Um grito do verdadeiro soldado da morte corta todo o local, quebra o silêncio e faz nosso homem invisível despertar de sua quase desistência total, bem no fundo de seu ser, o lutador judeu teve a vontade incontrolável de se entregar para a morte, desistir, reencontrar sua família e todos que perdeu em sua vida.

O grito do soldado da morte ordenava a todos que se retirassem imediatamente do trem. Caro leitor, você não pensou que tudo seria tão simples e confortável, com apenas uma viagem de trem, não é mesmo? O sofrimento está apenas começando, tudo que aconteceu até agora não passa de um mero aquecimento. Sim, Adolf Hitler é um dos maiores vilões de toda a história, mas nenhum jamais ganhará do que nosso homem invisível está prestes a enfrentar, o frio extremo. Esse vilão em questão faz vitimas até os dias de hoje. Se duvida, basta andar pelas ruas das grandes cidades e notar os corpos caídos nos cantos escuros da urbanização, cadáveres levados pela brisa do vento mais gelado que o próprio gelo.

Os corpos sem vida, aqueles que obviamente não tinham meios de descer do trem da tropa heróica, foram jogados sem piedade alguma sobre a neve, fazendo tudo parecer um imenso tapete humano. Até mesmo nosso carregador de sonhos foi retirado do veículo desse modo cortês e gentil, a neve não amorteceu sua queda, Max Vandenburg sentiu cada osso de seu corpo se partindo ao encontrar o imenso tapete branco. Seu pulmão se contraiu, uma imensa falta de ar o fez tossir incontrolavelmente por um bom tempo, enquanto mais corpos eram atirados de cima do imenso trem. Gotículas de sangue escapavam por sua boca, conforme ia tossindo, nosso homem invisível sabia que aquilo era um sinal de seu corpo de que seu tempo estava chegando ao fim. Ainda deitado ao chão, lembrou-se das várias lutas que já teve com o amado Führer, viu a face de seu inimigo cuspindo e rindo ao mesmo tempo sobre seu rosto, lembrou-se das vezes em que estava sozinho no porão dos Hubermann e fazia inúmeras flexões para uma futura e decisiva luta contra o autor de “Mein Kampf”, o livro de sua vida, que no momento servia como presente e lembrança para Liesel. O som de mais corpos caindo sobre a neve invadiu seus ouvidos, uma onda repentina de ódio possuiu cada ligamento de seu corpo, nosso lutador judeu percebeu que a ideia de desistir não fazia sentido, ele sabia que era isso que o Führer queria, e não daria esse gosto de vitória ao seu maior inimigo. “Só mais algumas flexões, Max” , pensou o nosso lutador judeu. Obviamente, as flexões se referiam a tudo que ele ainda teria que aguentar, nosso homem invisível sabia que aquilo era o inicio de uma longa e mortal caminhada, inúmeras flexões ainda estavam por vir. Pensando isso, lentamente nosso Max Vandenburg foi conseguindo se levantar, sentindo cada milímetro de seu corpo reclamar com tal acontecimento. Suas pernas já não agüentavam mais, sua caixa torácica doía desumanamente, todo seu rosto ardia e era humanamente impossível continuar, mas nosso homem invisível continuou de pé, não porque queria, mas sim por ter uma motivação ainda maior: A raiva de tudo que fizeram a sua família, ao seu povo; e para cumprir a promessa que fez a Liesel antes de partir, a de que ela jamais o perderia.

A idolatrada marcha enfim teve seu início. Lhe informo que não pareciam seres humanos caminhando, e sim verdadeiros cadáveres, zumbis, no estilo morto vivo que os cinemas de Hollywood vivem retratando. Nosso homem invisível se sentia cada vez mais cansado, a cada passo dado parecia o último, todo seu corpo tremia, o frio, a neve, lhe cortava a pele, os gritos ensurdecedores dos heróis nazistas mandando todos continuar, fazia os tímpanos de Max Vandenburg doer. Corpos caem constantemente ao seu redor, choros abafados pelo medo também é parte da trilha sonora deslumbrante do local. Uma criança caminha ao seu lado, um garoto solitário, é dele que vem o choro abafado, daquela pequena alma que exala todo o sofrimento. Nosso homem invisível se vê tentado a ajudá-lo, mas sabe que se o fizesse, seria o fim de ambos. Caro leitor, estamos falando de Max Vandenburg, temos que lembrar que ele não suporta a realidade em que vive, logicamente, não suporta a ideia de uma pequena criança ter que passar por tudo isso. Nosso homem invisível não consegue entender a que ponto o mundo chegou, não consegue compreender como um ser humano pode ser capaz de fazer isso com outro ser humano, ainda mais com um ser tão frágil como uma criança, que aparentemente não tem mais ninguém de sua família. Por alguns meros segundos, Max Vandenburg se vê no garoto a sua frente, ele enxerga a si mesmo, completamente perdido, sozinho e procurando algum sentido para continuar.

– Só mais alguns passos... – nosso homem invisível sussurra, se aproximando um pouco mais do garoto, que entende o que o lutador judeu quer dizer. Um esboço de sorriso surge nos lábios da criança. Max nota que seu rosto está completamente desconfigurado por tantas surras e maus tratos já sofridos; seus lábios partidos e com um tom azulado faz os pulmões de nosso homem invisível quase parar. Desviou os olhos, os fechou e uma espécie de filme passou por sua mente. Viu o rosto de toda sua família, viu sua mãe sorrindo e o abraçando, ainda guardava em sua mente a lembrança da noite em que a deixou, uma lembrança que o atormentaria até o último minuto de sua vida. Sentiu seu coração doer mais uma vez, como se aos poucos fossem se desprendendo cada pedacinho dele. Um estrondo ao seu lado, o fez abrir os olhos, e a cena que viu a seguir juntou-se as coisas que ele jamais irá esquecer. A criança deitada ao chão, praticamente desmaiada, a chegada de um herói nazista, o estrondo de um tiro pairando por todo o local, a neve se misturando a tonalidade vermelha do sangue judeu.

Nosso homem invisível parou, se sentiu morrer junto com aquele ser inocente. Todos continuavam sua caminhada, cadáveres desgovernados trombando um ao outro. Olhando a frente, o lutador judeu avistou uma coisa que fez seu coração, por alguns segundos, saltar mais do que jamais havia saltado em sua vida. Sim, caro leitor, Max Vandenburg reconheceu onde estava, nosso homem invisível estava a apenas alguns passos de, quem sabe, reencontrar sua irmã mais nova, a sacudidora de palavras, Liesel Meminger. Ainda sem se mover, olhou para o chão ao seu lado, para aquele pequeno corpo sem vida, e sua vontade era a de carregá-lo, mesmo sabendo que seria em vão, apenas não poderia deixá-lo. Sente alguém o empurrando, na verdade, não alguém, e sim algo bem semelhante a um cano de fuzil nazista. Nosso lutador judeu sabe que se não continuar, sua vida acaba. Se vê tentado a não continuar, a desistir e cair ao lado daquele pequeno e frágil corpo, mas ao olhar para frente, lembra-se de sua promessa e algo muito mais forte que ele, o obriga a continuar andando.

Seu coração dispara a cada passo que dá rumo a Rua Himmel, a nostalgia que a lembrança lhe causa, faz seu coração pular e doer aos mesmo tempo. É como se já pudesse sentir o cheiro do porão escuro e úmido que passava os dias, a sopa de Rosa Hubermann, que para muitos era horrível, mas que nosso homem invisível daria de tudo para provar novamente. As lembranças do primeiro e único Natal que teve, do boneco de neve, lembrança do dia em que saiu escondido a noite, enquanto todos estavam escondidos do bombardeio, e as estrela do céu queimaram seus olhos. Por um instante, Max Vandenburg se esqueceu de todo o terror a sua volta, as lembranças o tomaram de tal forma que não existe mais nada além de um lutador judeu e a Rua Himmel. Lembranças como a vez em que ele estava prestes a desistir de tudo no porão dos Hubermann e Liesel apareceu com neve nas mãos como modo de mostrar a seu irmão judeu como estava o tempo do lado de fora.

Ao finalmente adentrar na Rua Himmel, uma pequena multidão de pessoas já se aglomera para ver o desfile de cadáveres zumbis. O som de corpos caindo ao chão não cessa, mas o som mais forte no momento é o de um coração, o coração do nosso homem invisível. Em algum lugar em meio a multidão, um garota de cabelos loiros, bochechas rosadas e uma coragem sem igual, também procura por seu irmão judeu, o nome dela é Liesel Meminger.

Nosso homem invisível estuda lentamente toda a multidão, olha para cada um com muito cuidado, não se intimida com os comentários, apenas procura por ela, a sacudidora de palavras. “O que ele está fazendo?” e “Quem esse judeu pensa que é para andar com a cabeça tão erguida assim?” é o que o lutador judeu mais ouve, mas logicamente ele pouco se importa. Os cadáveres se aglomeram um pouco mais para conseguir passar pelas ruas estreitas, isso torna tudo uma grande confusão de braços e pernas, dificultando o trabalho de nosso homem invisível. Tudo parece perdido, nosso homem invisível desiste, não há como encontrá-la, no fundo ele já sabia que seria impossível. Mas sua esperança retorna ao peito quando repentinamente um grito corta a multidão. Obviamente, quase ninguém ouviu esse clamor, mas nosso homem invisível , sim, ele ouviu nitidamente a sacudidora de palavras clamar seu nome. Se virou para ver de onde vinha tal grito, poderia muito bem ser obra de sua mente, mas não era, lá estava ela, uma sacudidora de palavras se espremendo em meio aos cadáveres judeus, indo diretamente ao encontro do nosso amado carregador de sonhos.

– Max, eu estou aqui! – disse a garota loira assim que finalmente conseguiu chegar ao lutador judeu, o abraçando de modo apertado, causando até mesmo dor em nosso fraco homem invisível. – Eu nunca esqueci você, Max. – a multidão sem fim de cadáveres judeus passa por eles, corpos se esbarram, mas no momento, nada mais importa para nosso Max Vandenburg.

– Nem acredito... – sussurra nosso homem invisível, tentando fazer com que Liesel se solte dele, pois o medo o domina. Nosso carregador de sonhos sabe que se a pegarem, pode ser o fim para a sacudidora de palavras. – Veja só como você cresceu. – lágrimas escorrem pelo rosto de nosso homem invisível, seu coração se despedaça um pouco mais a cada segundo. – Liesel, você precisa me soltar. – ele tenta sair de seus braços, mas qualquer tentativa se torna sem sentido. O mar de cadáveres estava chegando ao seu fim, nosso homem invisível sabia que logo após eles, os heróis nazistas chegariam.

– Max, é você? – Liesel o soltou e passou a mão por seu rosto, sobre cada ferida, causando-lhe um grande ardor. – “Era uma vez, um homenzinho estranho, mas havia também, uma sacudidora de palavras... “– a garota recitou um pequeno trecho do que Max havia escrito a ela no livro que havia lhe dado de presente. Livro que a principio se tratava do diário do próprio Führer, exatamente aquele que ainda peço-lhe, caro leitor, que procure para se informar sobre o que nosso homem invisível está enfrentando. Um grito nazista percorreu a rua, um herói pedindo que a sacudidora de palavras soltasse seu homenzinho estranho.

– Sim, Liesel, sou eu. – nosso homem invisível segurou a mão da garota em seu rosto e chorou em seus dedos. Ignorou o ardor que aquilo lhe causava, deixou as lágrimas escorrerem até a chegada do grupo heróico de soldados e puxar a garota bruscamente de seus braços.

Nosso homem invisível foi lançado ao chão e chicotes começaram a cantar sobre seu corpo. A sacudidora de palavras havia sido jogada na sarjeta, levado algumas chicotadas também, mas nada comparado ao que nosso homem invisível é obrigado a suportar. Chicotadas, chutes, socos, mais chicotadas, mais socos, um ciclo sem fim. Sente seu sangue escorrer mais do que nunca em todas partes de seu corpo. Um grito com seu nome entra por seus ouvidos novamente, nosso lutador judeu sabe de quem é o grito, mas não pode se dar ao luxo de olhar, nem ao menos tentar.

– Anda, judeu imundo e imbecil, levanta,não acabou ainda não. – grita o soldado, cuspindo em seu rosto.

“Só mais algumas flexões, Max” pensa novamente nosso homem invisível, dificilmente se colocando de pé. Só mais algumas flexões rumo ao desconhecido, mais algumas flexões rumo a sua própria morte. Sente-se tentado a olhar para trás, mas um herói nazista o empurra e obriga-o a cambalear para frente. Logo atrás dele, uma sacudidora de palavras ainda está na sarjeta, com os olhos marejados, começando a ter uma certeza fixa de que nosso homem invisível não conseguirá cumprir sua promessa.