Sinto o toque macio do lençol de 95% algodão tocando minha pele. Sinto o leve cheiro de mofo. Ouço o zumbido baixo e irritante da tubulação de ar pelo comodo. Estico meus pés. Sinto o final do colchão, mas não da cama. A única explicação é que estou em uma maca, coberta por algo plastico, no qual apenas meu rosto encontrasse descoberto.

Abro os olhos, mas não há nada para ver. Tudo está escuro e pesado. Não há mais nada aqui. Apenas um zumbido monótono e minha respiração rápida e curta. Apenas uma maca com uma garota recém acordada deitada.

Aos poucos, minha respiração se acalma. Relaxe. Se concentre! Quem é você? Puxe suas memórias! Puxe! Tento me concentrar, forço minha memória ao máximo, mas parece que ela não funciona bem sob pressão. Então fecho meus olhos e me concentro em tudo. Me concentro no zumbido, na minha respiração lenta e na sensação do plástico contra minha pele. Me deixo levar por essas coisas pequenas, mas que são a única coisa concreta de que estou mesmo aqui.

Abro os olhos, surpresa e ansiosa.

Eu me chamo Um. Codinome Hanna. Sou loriena. Fui morta aos quatorze anos por uma equipe mogadoriana. Eles vão matar todos nós, da mesma forma que matou Hilde. Mas eu voltei. Voltei porque meu último legado surgiu.

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Minha memória se torna concreta a cada segundo que se passa. As coisas se tornam cristalinas como o fundo de um rio. Isso me dá força o suficiente para rasgar o plástico que me envolve. Jogo minhas pernas para fora, mas a queda é de apenas alguns centímetros. O chão está frio e eu também, mas aos poucos sinto minha pele se aquecer. Eu estou viva!

Dou um passo a frente, sentindo a leveza com que ando. Dou outro e mais outro. Até que meu pé encontra um obstaculo e sinto uma pequena dor. Não é nada grave, mas mesmo assim me curvo e massageio meus dedos. Está um pouco dolorido, e só. Tateio o que me interceptou, e me deparo com uma outra maca. Subo as mãos lentamente, até que encontro o inesperado: há alguém ali... Alguém envolto no plástico. Meu coração falha uma batida, então respiro fundo, porque não estou pronta para morrer novamente.

Numa curiosidade louca que apenas eu tenho, saio do caminho da maca e estendo os braços, andando fervorosamente pelo quarto a procura de um interruptor que me traga a visão. Mil e uma possibilidades se passam em minha cabeça sobre quem mais está comigo. Isso me assusta e me excita ao mesmo tempo. Okay, mais excitação que medo.

Encontro o interruptor em um canto do quarto. Foi mais rápido do que havia pensado. Aperto. Duas luzes acendem, uma após outra. Ambas brilhantes e cegantes. Mato minha curiosidade, que agora se torna remorso. Há duas macas ali. Dois corpos envoltos de plásticos escuros. O mesmo plástico que eu estava coberta. Alguém mais está morto. Duas outras pessoas.

Novamente, a curiosidade me atiça. Agora, sinto mais medo e remorso do que excitação. Parte de mim sabe quem são eles, mas não quer aceitar. Dou passos longos, firmes e pacientes em direção as macas. Um de cada vez, abro o saco mortuário. Há um garoto que parece ter, no máximo, treze anos. Número Três, algo em minha mente grita. No outro, perto a minha maca, há uma garota com algo entre onze e doze anos. Número Dois. Não duvido que sejam eles, está muito obvio. Meu coração se aperta e por alguns minutos paro até mesmo de respirar.

Eles estão mortos também. E tudo por minha causa. Um, a sortuda. A primeira a morrer. Aquela que deu o poder aos mogs para matar esses dois.

Cerro os punhos. Minhas unhas estão perfeitamente cortadas, porque foi uma das últimas coisas que fiz quando estava vagando pela Malásia com a Hilde. Porque eu gostava de estar bonita. Agora, isso pouco importa. Tudo o que importa é que estou viva, e que, possivelmente, posso trazer Dois e Três de volta. E de alguma forma, isso me anima, porque sei que posso. Mas algo me impede de descobrir como. Mas não é qualquer coisa, é um espelho. Um grande espelho que ocupa o comprimento da parede toda, e um terço da largura.

Eu dou pequenos passos para a frente do espelho. Primeiro, coloco o pé direito, pois é uma superstição humana boba que adoro. Deslizo um pouco mais e vejo a bainha do meu vestido branco de hospital batendo na altura das canelas. Então, pulo para a frente do espelho, mas não tenho surpresa nenhuma, e, provavelmente, nem deveria ter. Continuo a mesma de quando morri, o que faz muito sentido. O mesmo cabelo loiro que está no meio das costas, agora despenteados. Os mesmos olhos verdes-azulados cheios de mistério, firmeza e superioridade. A mesma boca rosada que distribuía sorrisos envolventes e encantava as pessoas por onde passava. A pele, fora a única que mudará. Anos morta e presa neste lugar fizeram meu bronzeado esvair-se, retornando a pele branca e rosada original.

Eu me dou um sorriso. Meus olhos sorriem também. Me encho de coragem para sair dali, e aos poucos, minha mente começa a bolar um plano louco, desesperado e clichê.

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Chego a conclusão que neste minuto está acontecendo uma guerra. Parte de mim sabe que os outros estão vivos, e me pergunto como sei. Pittacus Lore. Evito pensar nele, então balanço a cabeça e afasto o pensamento, me concentrando novamente no que estou fazendo.

A coisa toda é muito simples. Arrasto-nos para fora do quarto, encontro nossos pertences e escapamos. Fácil.

Coloco Dois em cima de Três, os amarro com tiras que fiz do plástico de Dois e depois os prendo mais firme ainda na maca. Descubro como se faz para abaixar a maca e isso facilita tudo. Depois coloco o meu saco sobre eles e o amarro nos cantos da maca firmemente, deixando um espaço na lateral, para facilitar a parte dois do meu plano.

A porta do quarto, aparentemente, tem uma especie de sigilo, o que dificulta a entrada de muitas pessoas. Mas essa regra não se aplica para quem quer sair. Consigo deslizar a porta facilmente, e a mesma não faz nenhum barulho. Uau. Tiro minha cabeça para fora e olho para os dois lados. Tudo limpo. Tudo perfeito para uma escapada.

Puxo a maca comigo. Entro novamente. Apago a luz, fecho a porta e me mantenho atenta. Tudo está quieto demais, então chego a conclusão que é noite. A maioria dos mogs devem estar dormindo. Então vago despreocupada pelos corredores com minha maca carregada de mortos, esperando algum sinal. Encontro mais e mais portas brancas e metálicas, todas fechadas. Viro um, dois, três, quatro... Dezoito corredores e nada parecido com um esconderijo surge.

Por favor!

Eis que algo me chama a atenção. Entro no meu vigésimo corredor. Ele está mal iluminado. A única fonte de luz escapa através da porta entreaberta no fim do corredor. Parte de mim quer se afastar e continuar a procurar, mas algo dentro de mim diz que devo ir lá. Minha curiosidade. Ou Pittacus te guiando. Balanço a cabeça, o cabelo caindo ao redor do meu rosto. Decido ir até lá.

Encosto a maca ao lado da porta, que fica facilmente oculta com a mistura da escuridão do corredor e o saco mortuário. Olho através da fresta. E o que vejo é o que quero. Uma linda e alta estante negra, feita de madeira lustrosa, iluminada fracamente pela luz de monitores. Em cima de uma das prateleiras, um pouco mais alta que eu, há cinco lindas arcas loricas reluzentes. Todas em ordem numéricas. Um, dois, três, cinco e seis. Franzo a testa. Seis? Cinco? Balanço a cabeça. Não, não podem estar mortos.

Deslizo lentamente para dentro da sala, cuidando da minha guarda, que está desprotegida. Quase caio e me entrego quando vejo alguém na frente das telas, monitorando tudo. Quer dizer, quase isso. A tela em frente ao mog (chego a essa conclusão), está aberta em um jogo e em um calendário. A outra tem a maquete em 3D do lugar que estamos. Uma nave. Respiro fundo, voltando a atenção ao que interessa. O mog está deitado sob o teclado, e sua respiração suave afirma que ele está em um sono profundo. Dou alguns passos lentos em direção a prateleira e ergo minha mão esquerda, mantendo a outra firme na parede, para qualquer problema. Uma de cada vez, as arcas deslizam pelo ar e vem em minha direção. Uma a uma eu as agarro e coloco dentro do saco mortuário, amarrando-as firmemente aos braços de Dois e Três.

Depois de terminar, volto minha atenção para os monitores. Alguma câmera deve ter me pego. Pulo em direção aos monitores. Uso a telecinese para dar falha as filmagens, cortando minhas aparições, como se as câmeras tivessem falhado em algum momento e parado de funcionar. Olho para a outra tela, aquela em que o mog está com seu jogo aberto. Volto minha atenção para a maquete em 3D da nave. Estamos na Terra, em algum lugar da Califórnia, informa uma caixa de coordenadas de baixo da maquete. Estudo ela por inteira, anotando mentalmente o que é importante. Um corredor à esquerda e outro à direita - nela há uma tubulação grande o suficiente para uma maca que desce até a lixeira da nave. Lá, poderei entrar em uma das tubulações de lixo e deslizar para o lixão particular dos mogs.

Não é nada agradável, mas é um passo para fora daqui. Um passo para tomar continuidade ao meu posto. Um passo para tomar meu lugar como Pittacus Lore... Mesmo que a ideia não me agrade.

Evito pensar nisso e olho para o calendário na tela do jogo. É exatamente 03:05 da manhã. Lá fora faz um calor de 29ºC. Hoje é o dia que eu esperava. É 11 de junho. O dia do meu aniversário. Finalmente, meus 18 anos.

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Vago para fora da sala cuidadosamente. Enfio minha mão por baixo da maca e começo a andar conforme vi na maquete. Mais corredores mal iluminados aparecem. Um corredor já foi, falta apenas um.

Sinto meu tornozelo doer e minha canela queimar, mas é algo leve. Saio do corredor e entro no outro, mas sou surpreendida. Há um mogadoriano parado próximo a minha tubulação. Me preparo para lutar caso ele me veja e tente me impedir, mas continuo a ir em sua direção com minha maca enrolada em sacos. Quanto mais me aproximo, mais me sinto familiarizada com a pessoa. Então eu paro. Vejo que o conheço, então paro.

Magro, alto e branco. Cabeça raspada e tatuagens pelo couro cabeludo.

— Adam? — me atrevo, mas quando seu rosto volta para a minha direção e seu sorriso revela uma série de fileiras de dentes pontiagudos, sei que não é ele.

A raiva me enche. Um ódio incontrolável se apodera de mim. Ergo minha mão quando ele caminha em minha direção. Seus passos se tornam mais largos e rápidos. Minha telecinese entra em ação. — Morra! — e ele se atira em mim quando empurro minha maca carregada para o lado.