O Legado - Nova Ordem

Capítulo 6: Alerta


Capítulo 6a

Uma profusão de vozes ecoava em sua mente, como uma multidão que não tinha boca. Vozes mais baixas, mais altas, graves ou tímidas, gritos e sussurros se juntavam numa guerra de opiniões sem rosto. A multidão era extenuante e teria ensurdecido os seus ouvidos se não estivessem em sua mente. A confusão era tanta que poderia enlouquecer àqueles de mentes mais fracas, o que não era o caso de Eragon, que ao longo dos anos acostumara-se com várias compartilhando a sua.

Os eldunarí estavam inquietos, isto Eragon podia claramente perceber. Mas a confusão da conversa impedia que ele compreendesse plenamente os motivos da apreensão. Saphira igualmente parecia confusa, embora não admitisse. Eles ainda não conseguiam participar ativamente da conversa enquanto os velhos dragões compartilhavam das suas inquietações. Só conseguia captar pequenos fragmentos da conversa enquanto tentava se concentrar em um tópico.

“Isto é incomum...”

“Nunca antes vimos esta quantidade...”

“Algo se aproxima.”

“Os tempos estão mudando...”

“Mais um acaba de nascer...”

A multidão de vozes só fora interrompida quando a pesada porta do salão dos eldunarí fora aberta repentinamente. Contra a luminosidade do exterior do ambiente estava um elfo de cabelos negros e curtos, pele branca e olhos negros. Apesar de seus olhos não transmitirem emoção, as sobrancelhas estavam franzidas – o que deixou Eragon ainda mais consternado com a sua entrada. Ele segurava um espelho em sua mão e se aproximou.

- Nate. – Eragon chamou, suspirando, ignorando a profusão de vozes em sua mente que também estavam consternados com a intromissão do jovem elfo.

- Mestre. – ele lhe respondeu, lhe fazendo uma pequena reverência com a cabeça.

- Nate, eu pedi que não interrompesse esta reunião...

- Perdoe-me. – o elfo o cortou antes que Eragon pudesse prosseguir com a sua repreensão. – É uma mensagem urgente.

Os eldunarí ainda assim não concordaram com a sua intromissão, reclamando veementemente da presença do jovem elfo no salão. Eragon tentou acalmá-los com a sua mente, mas os dragões reclamavam que o assunto ainda não havia sido encerrado. O cavaleiro rolou os olhos, passando a ignorar as reclamações e virando-se novamente para Nate, que permanecia impassível segurando o espelho.

- Diga-me o que há de tão urgente. – ele perguntou, um tanto impaciente.

- É a Rainha Arya. – ele responde rapidamente – É relacionado aos ovos de dragão.

Estranhamente as vozes dos eldunarí se aquietaram em sua mente, talvez compreendendo o tópico do assunto com Arya. Saphira partilhava da preocupação dos dragões, não precisando dizer nada para Eragon perceber. A situação já parecia estranhamente anormal, pois os dragões não desistiam de se fazer ouvidos facilmente, até Umaroth lhe falar:

Ouça o que Arya tem a lhe dizer.

Eragon concordou com o velho dragão mentalmente e se virou para o jovem elfo que segurava o espelho e assentiu para ele, estendendo a sua mão para pegar o espelho. O elfo lhe passou o espelho e depois se afastou do cavaleiro, apesar de permanecer no salão.

Assim que Eragon levantou o espelho à altura dos seus olhos ao invés de ver o seu reflexo viu o rosto de Arya. A sua aparência pouco mudara nos dezoito anos em que estiveram separados. Ela tinha os mesmo cabelos negros, pele iluminada, olhos verdes e dentes brancos que se lembrava, a não ser por um olhar mais duro e altivo que normalmente portara – provavelmente pelo fato de se tornado rainha dos elfos e ter se tornado mais séria. Mas ainda sim lhe confortava o fato de Arya ainda ser a mesma elfa pela qual se apaixonara à anos atrás.

- Alteza. – lhe chamou sério, mas com um tom de brincadeira lá no fundo que só Arya e Saphira poderiam perceber.

- Eragon. – ela lhe chamou com um tom mais repreensor do que em cumprimento. Ele lhe sorriu de volta achando graça de sua reação, esquecendo-se momentaneamente da seriedade da reunião com os eldunarí e a interrupção de Nate. Ela, porém, não pareceu se esquecer do tópico da conversa.

Saphira, que acompanha toda a discussão sentada num canto do salão, aproximou-se do seu companheiro. Eragon levantou o espelho de maneira que Arya pudesse enxerga-la também. Saphira fez uma leve mesura com a cabeça, pois o contato através do espelho impossibilitava que ela tocasse os pensamentos da Rainha Elfa e lhe falasse diretamente. Arya lhe respondeu com outra reverência.

- Saphira Bjartskular, é um prazer revê-la. – Eragon sabia que Saphira tinha milhões de perguntas à fazer sobre Fírnen, por isso cortou antes que ela quisesse iniciar uma conversa.

- O que há de tão urgente? – ele lhe perguntou.

Ela manteve o tom sério:

- Um ovo acaba de chocar aqui em Ellésmera. Temos um mais novo Shur’turgal com sangue élfico. Este é o quarto no período de um mês em toda Alagaësia e o segundo em um ano em Du Weldenvarden.

Eragon imediatamente entendeu a quietude dos eldunarí. Os velhos dragões podiam sentir quando um ovo era desperto, embora não soubessem exatamente para quem ele fora designado. Ao contrário dos eldunarí, Eragon não conseguia prever quando cada ovo despertaria, por isso ficou surpreso ao ouvir a notícia da boca de Arya. Nunca antes esta quantidade de ovos de dragão havia chocado em tão pouco tempo. Desde que ele começara a enviar os ovos para percorrer Alagaësia – dois para os elfos, dois para os humanos, um para os anões e um para os urgals – somente um dos seis nascia à cada ano. Não podia deixar de sentir-se intrigado, assim como Saphira que parecia tão surpresa quanto ele.

Eragon lançou um olhar de apreensão para as gemas brilhantes dos Eldunarí que compunham o salão circular em que se encontrava. Apesar dos Eldunarí não poder enxergar diretamente, ele sentiu o leve toque dos dragões, sinalizando que partilhavam da sua preocupação.

- Irnael, o jovem cavaleiro, na verdade, é um híbrido: um meio elfo, o que não estamos acostumados a ver aqui em Du Weldenvarden. O dragão que nasceu, de nome Fireheart, é da linhagem de um dos Inomináveis Renegados. Eu mesma estou instruindo este jovem antes de enviá-lo à Nova Ordem. Mas confesso que estou surpresa pela quantidade de cavaleiros surgidos neste curto espaço de tempo. – Arya então notou que Eragon olhava para outro ponto e parecia anormalmente preocupado. – Eragon?

- Arya. – ele despertou de seus pensamentos – Eu e o conselho de eldunarí discutíamos sobre isto. Confesso que estamos mais preocupado do que felizes com esta informação. Nunca antes tivemos um cavaleiro urgal ou híbrido, e o fato de muitos surgirem neste curto período nos intriga.

“Eragon” Umaratoh disse-lhe em sua mente, partilhando os seus pensamentos com os outros habitantes da sala. – Arya Drottning só confirmou o que prevíamos, o surgimento de um novo cavaleiro.

- Era o que tentava nos avisar, Umaroth-Elda?

Não, ele lhe respondeu. O surgimento de muitos jovens cavaleiros não nos preocupa e sim o significado por trás disto. Nós sentimos, Eragon-finiarel. Algo grande se aproxima. Mas não conseguimos ver o que é. Tememos que o surgimento destes novos cavaleiros seja um sinal dos tempos que estão por vir. Uma sombra encobre nossa visão e nubla as nossas mentes.

Glaedr pela primeira vez se manifestou fora da confusão de vozes. – Eragon, é de suma importância que estes jovens sejam trazidos o mais rápido possível para nós. São ainda filhotes e despreparados. Algo ronda Alagaësia e não sabemos a sua natureza. Para que eles possam proteger Alagaësia primeiro devem aprender a se proteger. Não podemos permitir que corram este risco.

Os dois têm razão, Eragon. A voz suave de Saphira também lhe falou. Eu também sinto algo, embora não saiba o que é, e temo pelos filhotes que acabam de nascer.

Eragon assentiu, compreendendo o tom de urgência dos dragões. Virou-se novamente para Arya que aguardava pacientemente – presumindo que os dragões estivessem falando em sua mente - que ele se pronunciasse. Quando virou novamente para ela, os seus olhos se acenderam de ansiedade.

- Os eldunarí desejam que os jovens cavaleiros e seus dragões sejam trazidos o mais rápido possível. Estão preocupados com a aproximação de algo de natureza desconhecida. Se possível, pedirei que um dos meus alunos os escolte a partir de Hedarth. Alguma notícia dos três cavaleiros de Alagaësia?

Arya se retesou, a preocupação também pensando em seus ombros.

- Eles ainda não chegaram aos limites de Du Weldenvarden, mas estão sendo escoltados pelos elfos embaixadores. Blödgharm me informou que em breve chegarão à Ellesméra.

- Muito bem. – Eragon mais uma vez assentiu, sentindo-se seguro de ter Blödgharm junto aos jovens para protegê-los.

Ele virou-se para a porta, sabendo que o jovem elfo de cabelos escuros assistia toda a discussão. Eragon o repreenderia em outras ocasiões, tanto por interromper uma reunião, quanto por insistir em continuar observando. Mas neste momento lhe foi muito útil que o seu jovem aprendiz permanecesse ali.

- Nate. – ele lhe chamou, acendendo um brilho nos olhos do jovem elfo por se sentir útil.

- Sim, mestre? – ele respondeu tentando repreender o orgulho e excitação.

- Preciso que você contate Scarlet, Faraniel e Storbokk. Precisamos alertar a Nova Ordem.

A porta mais uma vez se abriu, havendo um estrondo com o som da porta de madeira sendo arrastada sobre o chão de pedra. A luminosidade novamente invadiu o local, e desta vez quem virou-se com raiva pela interrupção foi Saphira, que lançou pequenos tufos de fumaça pelo nariz e rosnou para a figura que se aproximava.

Desta vez era uma garota. Ao se notar pelo seu porte físico era uma humana, com os cabelos longos e castanhos e olhos escuros, a pele branca do seu rosto estava levemente corada e sua respiração ofegante. Eragon revirou os olhos ao perceber que era a sua pupila mais velha, e Saphira rosnou novamente para intimidar a garota, que se encolheu pela ameaça dragão.

- De novo? – Eragon ralhou, esquecendo-se da presença de Arya no espelho em suas mãos – O que foi agora, Isteir?

A garota de cabelos castanhos pausou por um momento para respirar. Ela viera correndo, ele notou. Isteir usava as suas roupas para montar: calças cinzas, botas de couro e uma túnica verde para lhe proteger do frio.

- Perdoe-me, Eragon-Ebrithil, Saphira-Ebrithil – ela disse ainda ofegante.

Diga logo o que quer, aprendiz, não vê que interrompeu uma reunião importante? Saphira também ralhou com a jovem.

- Perdoe-me novamente. – em um canto, Nate pareceu rir do seu constrangimento, mas ela ignorou. – Há uma mensagem urgente dos elfos embaixadores.

Eragon então percebeu que ela também trazia um espelho em formato oval em suas mãos, assim como aquele em que falava com Arya. No mesmo instante esqueceu-se de sua raiva por ter a reunião interrompida mais vez e o sentimento de preocupação logo subiu em sua boca. Era tantos eventos ocorrendo ao mesmo tempo que mal conseguia disciplinar os seus alunos – ele sabia que receberia uma repreensão de Glaedr por isso posteriormente. Ignorou toda cerimônia de repreensão da jovem e estendeu o espelho em que conversava com Arya para Nate, que o aceitou de bom grado. Em seguida, pegou o espelho das mãos de Isteir, que se se afastou de Eragon e recolheu-se ao lado de Nate.

Neste segundo espelho reconheceu na hora as feições selvagens e olhos amarelos de Blödgharm. Ele tinha as sobrancelhas franzidas, num ângulo de preocupação que Eragon raramente via ele fazer.

- Blödgharm. – ele o cumprimentou rapidamente.

- Eragon. Algo estranho aconteceu. Não posso me demorar muito, por isso vou direto ao assunto. – ele assentiu, sinalizando que prestava atenção – Um dos cavaleiros sofreu uma tentativa de assassinato.

Antes que ele mesmo pudesse reagir, os eldunarí novamente se sobressaltaram, levantando as suas vozes em seu mente incrédulos com o que acabaram de ouvir. Muitos falavam palavras desconexas de indignação e alerta. Glaedr e Umaroth participavam do burbúrio instaurado entre os velhos dragões ensandecidos com a notícia.

- Esperem! – Eragon pediu, quase implorando, para a confusão em sua mente se acalmar. – O que aconteceu, Blödgharm? Que foi?

- A Stra. Ismira quase foi acertada por uma flecha amaldiçoada. Não sabemos de onde veio ou quem lançou a flecha. Vasculhamos com a nossa mente, mas não achamos nada. Os jovens dragões estão enfurecidos e querem procurar o assassino por conta própria.

Mas isto é terrível! Saphira gritou em sua mente. Eragon, diga à Blödgharm que não permita que os filhotes se arrisquem à tanto.

Eragon bufou em sinal de impaciência. A situação estava se desdobrando em algo que ele não conseguia controlar. A vontade que tinha era ele voltar à Alagaësia pessoalmente e investigar os estranhos acontecimentos, mas sabia que seria mais útil usando a sua experiência para controlar a situação de onde estava.

- Mudei de ideia. – ele disse, devolvendo o seu espelho à garota – Nate, deixa que Hazel contatará a Nova Ordem. Você e Isteir irão se preparar agora para partir rumo à Du Weldenvarden para escolta-los.

Isteir quase deixou o espelho cair à ouvir a notícia, enquanto Nate mostrava uma expressão de desprezo enquanto lançava os olhos para a garota ao seu lado. Os dois não ficaram nenhum pouco felizes ao saber que viajariam juntos, nublando a empolgação de receber uma missão do próprio Eragon. Por isso Nate limpou a garganta e começou:

- Mas, mestre, por que eu tenho que viajar com ela?

Isteir revirou os olhos ao ouvir o seu nome ser pronunciado com desprezo.

- Não reclame, Nate, você sabe por quê. – ele lançou um olhar cortante para o jovem elfo, que se sentiu constrangido ao recebe-lo – Agora vão arrumar as suas coisas, pois irão seguir o curso do Rio Elda em Alagaësia.

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Há uma semana a comitiva rumava para o norte. Agora percorriam as margens da floresta encantada de Du Weldenvarden. Mesmo ainda percorrendo as planícies verdes que margeavam o Deserto Hadarac, era possível ver nitidamente a magnitude das árvores que formavam a densa floresta. Muito maiores as que nasciam sob a planície de Alagaësia, muito mais grossas que àquelas que habitavam a Espinha, e muito mais misteriosas que as antigas árvores que formavam os pântanos. Uma nuvem de escuridão impedia que qualquer um visse o que se passava por entre os seus galhos, como se a floresta se protegesse de alguma forma, o que causava ainda mais arrepios entre os três cavaleiros e os seus dragões quando se preparavam para dormir.

Apesar do receio pela floresta, os três se mostravam ansiosos para adentrar na terra dos elfos, embora Blödgharm e Agalad concordassem que viajar pelas planícies seria muito mais rápido. Assim que chegassem ao sul da capital Ellesméra finalmente viajariam através da misteriosa floresta.

Barbara se mostrava a mais ansiosa para chegar na capital dos elfos, embora não verbalizasse. Godric, seu dragão prateado agora media um metro de envergadura e tentava acalantar a sua ansiedade. As primeiras palavras do dragão surgiram em sua mente havia poucos dias, e mesmo que ele ainda pronunciasse pouco, a confortava finalmente poder saber o que o seu dragão pensava.

Ismira e Dimith desfrutavam do mesmo avanço, embora Dimith não tivesse crescido tanto quanto o esperado. O pequeno dragão cor de jade media metade da envergadura de Godric, porém as suas patas afiadas permitia que ele conseguisse caçar animais até duas vezes maior que o próprio. A sua consciência despertara antes de Godric, e agora Ismira podia sentir a sua personalidade divertida e seus pensamentos, embora ela mesma não conseguisse lhe tocar diretamente à mente.

Narbog e Deloi não tiveram tanta sorte. Deloi também crescera bastante, e assustava os cavalos quando tentava bater as suas asas para voar. Mas pouco falava à mente de Narbog, embora o urgal tentasse. Ele mesmo ainda se sentia confuso com o elo mental. Narbog ainda tinha aulas da língua comum com o seu mestre Erudhir e pouco falava com as duas garotas, por medo de se comunicar errado.

Apesar da timidez de Narbog, os três dragões acabaram se dando muito bem. Dimith aprendera a caçar animais como pequenos cervos imitando os movimentos de Godric e Deloi. Às vezes eles brincavam de morder ou tentar voar, e mesmo que o pequeno Dimith sempre levasse desvantagem, nunca deixava de participar das brincadeiras.

Ismira e Barbara também se davam muito bem, apesar das de ambas as personalidades terem um gênio forte. Mas talvez pelo fato das duas serem garotas da mesma idade contribuiu para conversas mais fluidas e soltas, embora Barbara não estivesse acostumada a ter uma “amiga” da sua idadade.

- Você já reparou? – Barbara perguntou para Ismira enquanto elas montavam acampamento e seus dragões haviam saído para caçar. Ela tinha os olhos atentos à Blödgharm, que checava o terreno com as suas garras.

- No que? – Ismira perguntou sem entender ao que Barbara se referia.

- O seu mestre elfo, ele é... diferente. – Barbara lhe disse tentando escolher as palavras.

Ismira deu de ombros.

- Ele já me explicou o porquê desta forma “animalesca” apesar de não ter compreendido. Eu prefiro pensar que alguns elfos são muito ligados à natureza. Eu sei que é estranho, mas há muitas coisas estranhas nesse mundo e...

- Não é isso... – Barbara replicou. Parecia hesitante – É que... bem, como você consegue ficar perto dele? Ele tem... algo. Sabe? Me deixa nervosa. Esse... cheiro.

A ruiva virou-se para ela ainda sem compreender do que Barbara falava. Desde que adotara o estranho elfo Blödgharm como mestre todas as moças, inclusive a sua mãe, ficavam estranhas em sua presença. Mas Ismira nunca notou nada de diferente além da sua estranha aparência: os pelos negros, cabelo azulados, olhos amarelos e garras. Seria medo?

Ela balançou a cabeça negativamente.

- Não sinto nada de mais. Aconteceu alguma coisa? – a ruiva perguntou, arrumando a trouxa que usava como travesseiro.

Barbara suspirou. Seria só com ela? O elfo de olhos amarelos transmitia um cheiro tão forte e almíscarado, tão nitidamente masculino, que ela sentia as pernas bambas só em ficar próxima a ele. Algo despertava dentro dela que a fazia querer por a mão em sua pele e sentir se sua pelugem era tão macia quanto parecia. E só de pensar nisso, ela saía de perto do elfo o mais rápido possível. Porém Ismira parecia não sentir este efeito.

- Não, nada... – ela respondeu.

- Então tudo bem... – a ruiva novamente deu de ombros – E então, Barbara? Diga, você é parente de Agalad?

Barbara estranhou a pergunta de Ismira, que tinha os olhos grandes e brilhantes enquanto esperava a sua resposta. Ela aprendeu a rir do jeito ansioso da ruiva, por isso somente sorriu e levou na brincadeira:

- Não, claro que não... Da onde tirou essa ideia?

- Vocês são idênticos! Tirando o cabelo, é claro. Mas os olhos e o jeito... se parecem muito!

Barbara novamente riu da declaração de Ismira, mas algo dentro dela se sentiu um tanto perturbada. Agalad não tinha somente os mesmos olhos violetas e expressões duras, como a desconfiança em qualquer coisa viva que Barbara aprendera a cultivar. Além de o elfo lhe despertar algo em seu ser que ela não conseguia definir.

Apesar desta resposta não ter convencido Ismira, a ruiva não mais tocou no assunto.

As duas continuaram falando de assuntos mais amenos enquanto decidiram dar uma volta para pegar lenha. Os limites de Du Weldenvarden não estavam longe, por isso Barbara sugeriu que elas rondassem a borda da floresta para investigar o porquê elas pareciam tão sombrias e misteriosas. Ismira relutou em se aproximar, mas a morena estava obstinada em descobrir o mistério da floresta encantada. Por isso as duas se aproximaram perigosamente.

- Não é incrível? – a morena perguntou, percorrendo os seus olhos pela escuridão formada entre os troncos antigos e grossos.

Ismira franziu a testa.

- Parece tão selvagem quanto A Espinha. – ela respondeu, relutante por continuar se aproximando – Barbara, não estou gostando daqui. Deveríamos pedir para Narbog nos acompanhar.

- Narbog tremeria de medo. Ele é só um garoto. – a morena respondeu, enquanto tocava num dos troncos e sentia-se maravilhada pela sua altura.

- Pelo menos Dimith e Godric. – Ismira insistiu.

- Está com medo de uma floresta? – a morena lhe lançou um sorriso desafiador.

- Não seja ridícula, Barbara! Só não gosto de me meter no que eu não conheço. – a ruiva abraçou os próprios braços, sentindo um frio anormal invadir os seus ossos; e o que tudo lhe indicava que era a aproximação da floresta mágica.

A semi-elfa deu de ombros, virando-se novamente para o tronco.

- Se você não quer vir então fique aí, eu vou sozinha.

Sem ouvir os protestos da ruiva, ela seguiu em frente através dos primeiros troncos da floresta, decidida a descobrir o que havia naquela escuridão que lhe causava tanto arrepio.

Mas algo estranhou aconteceu.

Primeiro foi o grito feminino de pânico que veio de suas costas, para logo em seguida o som de baque de um corpo indo ao chão e levantando as folhas ao seu redor. Em milésimos de segundo, antes que Barbara pudesse virar a cabeça e para ver o que se passava, um projétil passou tão rápido por ela, tão rente à sua face que poderia tê-la cortado, que Barbara mal pôde ver do que se tratava, só sentiu o puro choque a congelar onde tinha parado o seu caminho. Assim que o projetil passou por ela, a morena levou vários segundo para compreender o que acontecia antes se virar o destino do objeto e do grito.

Barbara virou-se horrorizada para a amiga. Ismira estava jogada no chão, com os olhos vidrados em puro choque. O seu peito subia e descia descontroladamente, e ela gemia à cada suspiro que soltava ofegante. Os seus profusos cabelos ruivos estavam sujos de folhas e terra assim como as suas roupas.

Mas o que mais deixou Barbara intrigada não fora a ruiva caída no chão, mas sim o fato de outra garota estar ao seu lado ajoelhada. A garota tinha os cabelos negros e lisos, escorridos pelas suas costas e alcançando a cintura. Os seus olhos que mais pertubaram Barbara, pois também tinha um tom violeta próximo aos seus, mas os olhos da garota em grandes e arregalados, com uma cor que se destacava entre a sombra das copas das árvores. A pele era anormalmente branca e uma marca prateada em formato de estrela brilhava em sua testa. A estrela parecia reluzir, mas conforme Barbara a encarava a luz em sua testa diminuía.

E ao lado da garota, uma flecha com plumas negras estava fincada no chão.

- O que aconteceu? – estas palavras quiseram sair de sua boca, mas quem as pronunciara fora Narbog que surgiu entre os pequenos arbustos que beiravam a floresta.

O jovem urgal então direcionou os seus olhos para um ponto atrás de Barbara, o que fez que a morena se virasse também para o mesmo ponto. Além da escuridão anormal da floresta, ela viu que algo se movia por entre os troncos, como uma sombra. Dois pequenos brilhos, como olhos, passaram como um flash por entre eles, embora Barbara tenha percebido. A sombra não fazia nenhum barulho, mas ela sabia que estava lá por causa desta sutil movimentação no escuro. Mas não passou-se muito tempo até que a movimentação desaparecesse.

Barbara virou-se novamente para Ismira e a estranha, embora Narbog ainda mantivesse os olhos fixos na floresta.

- O que aconteceu? – ela repetiu a questão de Narbog.

- Eu... ela... – Ismira tentou dizer.

- Eu a salvei – a garota dos olhos violetas lhe disse, a voz parecendo muito mais autoritária e velha do que a sua aparência apresentava. – Disto. – então apontou para a flecha fincada no chão ao lado de Ismira.

- Você...

- Ela tem razão. – Narbog a cortou com o seu forte sotaque urgal. –Eu vi tudo.

Barbara assentiu, confiando no julgamento de Narbog. Ela então virou-se novamente para a flecha, intrigada com o objeto. Então o projetil que sentiu rente ao seu rosto fora mesmo uma flecha atirada por alguém dentro da floresta. Mas quem? E por que tentaria atirar nela ou em Ismira? Curiosa, ela aproximou-se da flecha com plumas negras e estendeu a sua mão para tocá-la, quando mais uma vez fora interrompida:

- Eu não tocaria nisso se fosse você. – uma voz divertida e feminina se fez ouvida à sua direita.

Ela novamente virou-se para descobrir a nova presença. Era uma mulher baixinha desta vez, com os cabelos cheios e cacheados, num tom de cor parecido com palha. Ela usava um estranho vestido de cor roxa e carregava uma bolsa em cada ombro.

- Quem são vocês? – Barbara rosnou, virando-se da garota para a mulher.

- Oh, francamente. Não tem questões mais importantes agora? – a mulher estalou a língua em sinal de repreensão. Ela largou as suas bolsas exatamente onde estava e se aproximou de Barbara, parando quando estava à pés da flecha. Olhou para baixo com estranho interesse na flecha negra, até finalmente abaixar-se para examiná-la melhor. Quando viu que o seu exame era satisfatório, ela levantou-se bruscamente.

- Eu sabia! – disse, encarando Barbara – Está amaldiçoada.

A semi-elfa surpreendeu-se com a informação e mais uma vez fixou na flecha de plumas negras. A situação era esquisita e ela estava morrendo para saber quem seria as duas mulheres que surgiram do nada, mas a flecha a deixava ainda mais confusa. Ela parecia emanar algo terrível, como uma energia negativa que a alcançava só de olhar. O seu pouco conhecimento em magia indicava que o objeto poderia estar realmente amaldiçoado, embora ainda não confiasse na mulher baixinha.

- Mas por que alguém faria isso? – ela perguntou, esquecendo-se da sua desconfiança original.

- Por vários motivos, quem sabe? O que importa é que ela não atingiu ninguém. Um raspão desta belezinha e sabe-se lá o que pode acontecer com você!

Narbog aproximou-se se Ismira para ajuda-la a se levantar, que aceitou de bom grado. Ela ajeitou as suas roupas e balançou o cabelo tentando se livrar da sujeira contida. A outra garota também se levantou sozinha. Os olhos sérios fixos em Ismira.

- Obrigada por isso. – Ismira lhe agradeceu, fazendo uma leve mesura como uma nobre faria. A garota ignorou os bons modos.

- Vocês correm perigo. Aqui não é seguro. Devem pedir a proteção dos elfos já. – e então ela se virou para Narbog e depois da Barbara – O mesmo digo para os seus dragões.

- Como voc...? – Ismira tentou começar mas foi cortada.

- É isso, devemos ir agora! – a mulher baixinha voltou para as suas bolsas e as colocou uma em cada ombro, mas não pareceu sentir o peso destas. – Solembum deve estar nos procurando. Vamos logo antes que aqueles elfos intrometidos venham nos tirar satisfações. Ande! Ande!

E assim como surgiram, as duas mulheres se recolheram – a mais baixa puxando a morena pelo antebraço – e sumiram por entre os espessos arbustos da planície. Barbara teve o ímpeto de segui-las, mas decidiu que o melhor a ser feito era deixar que estas duas almas salvadoras seguissem o seu rumo. Se elas tinham um motivo para não querer falar com os elfos, Barbara deixaria assim. Mas o mistério da flecha amaldiçoada ainda perdurava em sua mente. O que seria a sombra que vira entre os troncos da floresta?

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Irnael estava fascinado com a sua nova moradia. O palácio da Rainha dos elfos, onde estava instalado agora, suspirava algo ainda mais mágico e misterioso que a própria Ellesméra. As suas luzes pareciam se mover, e pequenas risadinhas, tão baixinhas, eram ouvidas pelos cantos. Esferas coloridas sobrevoavam as janelas e emitiam um ar estranho que o seduziam à tocá-los, embora nunca o fizesse.

Desde que o seu dragão com cor de fogo, o qual chamara de Fireheart, nascera para ele durante a Agaetí Shur’turgal a rainha os convidara para morar junto à ela no palácio, para que a Rainha, que também era uma Cavaleira, pudesse lhe dar as suas primeiras instruções como cavaleiro de dragão. Embora o seu pai parecesse relutante em lhe deixar morar com a rainha, ele não se opôs. Agora Irnael morava com Fireheart e parecia viver num sonho o qual ele se recusava a acordar.

Arya fazia o papel de seu mestre, assim como Fírnen assumira a instrução de Fireheart. Irnael não podia deixar de se sentir mais privilegiado, pois a sua mestra era simplesmente a Rainha dos elfos, a primeira cavaleira a surgir após a queda, e a guerreira que ajudou na derrubada do rei tirano que dominava Alagaësia. Mais sábia do que a sua mestra talvez somente o próprio Eragon. Ele poderia passar toda a sua vida morando no palácio encantado e ouvindo as histórias de Arya ao lado de Fireheart e Fírnen.

Mas apesar de tudo parecer estar dando certo em sua vida, ainda o entristecia fato de não conseguir contatar a sua amiga Ágata desde que se tornara cavaleiro. Imaginava em qual lugar de Alagaësia ela estaria e quais aventuras estaria vivendo. Desejava poder acompanha-la agora que Fireheart tinha um vínculo com ele.

- O que lhe preocupa, jovem cavaleiro? – Arya lhe perguntou. Irnael não percebera quando a elfa surgiu ao seu lado no batente da janela. Ela sorria com os cantos da boca e seus olhos verdes e brilhantes prestavam toda a atenção nele.

Ele sentiu as suas bochechas esquentarem e desviou o olhar, um tanto constrangido de ganhar um sorriso tão bonito da elfa.

- Não é nada. É que... – ele relutou, sentindo-se ainda mais envergonhado – Eu não consigo falar com Ágata. Ela é minha amiga. Pergunto-me por onde anda...

Arya suspirou, mas sem tirar o sorriso do rosto.

- A cabeça de Ágata é confusa como um dragão adormecido. – ela desviou os olhos para janela, mirando a visão das luzes noturnas de Ellesméra – Mas tenho certeza que não aconteceu nada de preocupante para esta falta de contato. Eu sinto. Espero que em breve possamos revê-la.

Irnael virou-se novamente para a paisagem noturna da janela um pouco mais tranquilo. Confiava plenamente nas considerações de Arya sobre o paradeiro de Ágata, por isso o seu coração acalentou-se ao ouvir suas palavras e sentia-se bem mais leve. Ele suspirou, sentindo a suave brisa em seu rosto enquanto desfrutava da companhia da elfa.

Mas a sua tranquilidade fora interrompida pela grave voz de Fírnen falando em sua mente:

Arya, Irnael e Fireheart. Ele disse tocando ambas as mentes.

Sim, Fírnen? Ela respondeu abrindo os seus pensamentos para Irnael também.

Os nossos visitantes chegaram. Os três dragões e seus cavaleiros, juntamente com os seus mestres elfos, já estão em Ellesméra.

Irnael não esperara pela resposta de Arya antes de partir em disparada da sala onde estava. Chamou Fireheart com a sua mente, sem transmitir com palavras o que pretendia, só transmitindo o sentido de urgência que sentia ao correr em direção à clareira principal de Ellesméra. Ao sentir o seu chamado, o pequeno dragão vermelho se juntou à ele nas escadas incorporadas ao tronco das árvores que formavam o palácio. Os dois se juntaram numa corrida desenfreada até a varanda principal do palácio.

Os demais nobres que habitavam as redondezas do palácio da Rainha já pareciam saber sobre a chegada da comitiva, pois já estavam se organizando na mesma clareira da cerimônia dos ovos de dragão; talvez fosse a alerta dos encantos que envolviam Ellesméra. Ele ainda não conseguia enxergar onde estavam os novos cavaleiros, por isso numa outra corrida ele foi até a clareira se juntar aos nobres que se organizavam para recebe-los.

Enquanto corriam, Irnael viu que Arya e Fírnen sobrevoavam acima deles, chegando mais rápido na clareira principal. Fascinado pela visão da rainha nas costas de Fírnen, ele parou por um momento para apreciar a visão de Arya montada nas escamas esmeraldas de seu dragão. Mas logo foi apressado pelo pequeno Fireheart, que parecia tão ansioso quanto eles para conhecer os novos dragões.

Quando chegou à clareira, Arya já estava sentada em seu trono feito de ramos e flores brancas, com Fírnen deitado logo atrás e a sua cabeça postada na lateral do trono. Ele novamente se sentiu constrangido por estar tão exposto pelos belos nobres. Mas Arya fez um sinal para que ele se aproximasse e se postasse ao seu lado. Um tanto relutante, ele e Fireheart se postaram ao lado esquerdo da elfo, oposto onde estava a grande cabeça de Fírnen.

Irnael estranhou o fato de três elfos se aproximarem, não reconhecendo o rosto de nenhum deles. Onde estão os cavaleiros? Ele se perguntou. Mas então os três elfos tocaram os seus lábios e então fizeram uma grande mesura em direção à Rainha e os nobres, que responderam também com um toque nos lábios. Ele imitou o gesto dos nobres, mas sem esconder a ansiedade.

O estranho elfo de olhos amarelos e pelos negros, com longas garras como um lobo, então começou a falar, porém na língua comum, a qual Irnael pouco compreendia:

- Rainha Arya, Fírnen. – ele começou, dirigindo-se diretamente à Arya – Estes sãoos cavaleiros de dragão do reino humano de Alagaësia.

Os elfos abriram o caminho para revelar os três jovens e seus dragões. Os olhos de Irnael brilhando de ansiedade.

A primeira garota tinha o espesso cabelo ruivo e olhos grandes e verdes, tinha a esta franzida e olhava para o ambiente com estranheza. O dragão ao seu lado tinha escamas verde azuladas, mas numa cor clara como jade. Tinha o tamanho de Fireheart e seus olhos pareciam se divertir com as flores aos seus pés.

A segunda garota lhe causou um impacto de espanto. Algo nela o lembrava a si mesmo, e ele estranhou mais ainda o fato da garota de orelhas afiadas como elfo. Os seus cabelos eram negros e olhos num tom violáceo bonito e misterioso. O dragão ao seu lado era prateado como a luz da lua e parecia tão fascinado por estar ali quanto a garota.

Mas o terceiro cavaleiro fez o seu coração dar um pulo e uma onda de temor pecorrer o seu corpo.

Porque ao lado de um dragão cor de terra, estava um Urgal.