O Legado - Nova Ordem

Capítulo 1: Ismira


Cap.1: Ismira

A garota não conseguia parar de mexer nos seus cabelos cor de bronze. Sabia que assim poderia desarrumar o penteado que custou tanto tempo para fazer, mas não via outra maneira de acalmá-la se não puxando e acariciando as suas tranças. Ao mesmo tempo mordia o lábio inferior quase a ponto de feri-lo e balançava os pés contra o chão. Nada funcionava. Por mais que o seu corpo insistisse em se agitar, não passava a ansiedade que sentia para a sua vez na cerimônia.

A outra garota que se postava atrás dela já se mostrava irritada com a sua agitação. Não que Ismira se importasse com ela, só não gostava de chamar atenção desnecessária. Se bem, mais do que chamava atualmente ela julgava ser impossível; isto porque ela era filha de Roran, o Martelo Forte – um dos heróis da guerra contra Galbatorix, que por sua bravura e habilidade estratégica não só venceu a guerra como também conquistou o título de Conde de Palancar. O seu pai, como senhor soberano do condado do Vale Palancar, reconstruiu toda Carvahall, outrora uma pequena vila ao norte do vale, agora uma grande cidade que não parava de crescer no coração da Espinha.

Não bastava o seu pai ser o Conde do Vale Palancar, ela ainda tinha um parentesco ainda mais impressionante: o primo de seu pai era Eragon Matador de Rei. O primeiro Cavaleiro a surgir após a Queda, ele e seu poderoso dragão Saphira lutaram contra o Império, recuperaram dezenas de ovos de dragão, e ainda mataram o rei tirano que dominava Alagaësia a vinte anos atrás.

Eragon atualmente morava em terras além de Alagaësia cuidando dos ovos de dragão e treinando os novos cavaleiros que surgiam. Ismira prendeu a respiração ao pensar no seu “tio” Eragon. Fazia anos que não o via. Lembrava-se de quando pequena brincar com o espelho encantado do seu pai que não refletia o seu rosto mas sim o do seu tio; recordava-se das feições do seu rosto, que era fino e com as orelhas pontudas como um elfo, apesar de ser humano. A cor dos cabelos era parecida com do seu pai, cor de palha brilhante, mas fora isso eram completamente diferentes. Vira algumas vezes o seu dragão Saphira, que tinha escamas azuis como várias pequenas pedras preciosas encaixadas sobre a sua pele; e o Cavaleiro costumava a cantar para ela quando pequena. Mas isso fora há muito tempo. Agora Ismira tinha dezoito anos, quase dez que não tinha o deslumbre do rosto do tio.

Mesmo que não o visse há muitos anos, não deixava de se sentir pressionada para se tornar uma Cavaleira de Dragão. Ela sabia que era um golpe de sorte que o ovo chocasse. Os dragões não escolhiam o seu companheiro por uma habilidade especial, mas sim pela sincronia de sentimentos – ou pelo menos era assim que ela pensava. Já tinha dezoito anos e esta seria a sua última cerimônia, depois disso nunca mais teria contato com um ovo de dragão para que pudesse ser escolhida, por isso tanto nervosismo.

Não conseguia parar de pensar no que o seu amigo Marco – que era dois anos mais velho que Ismira, e por quem ela era secretamente apaixonada – lhe dissera:

“As chances de você não ser escolhida é muito maior que a chance de ser. Por isso não precisa ficar nervosa, ninguém está te pressionando.”

Bem, era verdade que a ideia de se tornar uma cavaleira não agradava nada os seus pais, pois achava uma profissão muito perigosa, mas podia sentir o olhar das outras pessoas sobre ela. Todos esperavam que ela ingressasse na Nova Ordem de cavaleiros, por isso, mesmo sendo uma garota, se esforçava para melhorar a habilidade com a espada. Marco vinha lhe ajudando a treinar. Não queria ser frustrada e jogar todo o esforço para aprender a lutar para o alto, recusava-se veementemente a seguir o destino que a sua mãe traçou para ela. Só em pensar nisso lhe deixava nauseada.

- Próximo candidato: Fioh, Filho de Heitor – a voz do elfo que se postava na porta do corredor onde estava a despertou dos seus pensamentos. O garoto que estava logo à frente dela se moveu em direção ao chamado do elfo. Isto significava que a sua vez seria logo em seguida, o que não contribuiu nem um pouco para o seu nervosismo.

Ouviu uma série de suspiros enquanto o próximo candidato se despedia da sala. Fioh era famoso na cidade por ser filho de um rico comerciante, além de ser dono de belos olhos azuis e cabelos castanhos. Ismira sabia que todas as garotas que conhecia eram apaixonadas por ele, Fioh também era conhecido pelo seu extremo carisma além da habilidade com a espada, e estava sendo cotado como provável próximo cavaleiro.

Ah, não... E se ele... ela tentou frear os seus sentimentos. Por que um dragão não o escolheria? Fioh era belo, simpático, honrado e habilidoso. Era muito mais provável que uma criatura tão imponente como um dragão fosse escolher alguém com tais características para traçar um laço eterno. A quem estou querendo enganar? Olha só para mim, achando que um dragão me escolheria só por ser sobrinha de um cavaleiro... Ela suspirou em pensamento, sentindo-se derrotada.

Por um segundo não queria ter parentesco com o seu pai e Eragon, gostaria de ser ela mesma e ser escolhida por quem ela era e não qual era a sua linhagem. Gostaria de sentir o toque da mente de um dragão sabendo que ele seria o seu parceiro de alma pelo resto de suas vidas, que o seu parceiro a recebesse por ver o seu espírito e não por coisas materiais. Queria tocar a mente dele e sentir o gosto da amizade eterna que nada neste mundo poderia quebrar. Se ao menos pudesse...

O seu corpo não tremia mais de nervosismo. Estava desistindo. Era impossível ignorar o seu parentesco e o seu status. Não havia motivos para continuar ali e se frustrar mais ainda por não ser escolhida. Ela levantou a barra da saia para se retirar da fila, mas subitamente parou para ouvi o chamado:

- Próxima: Ismira, filha de Katrina, de Carvahall. – um elfo de olhos amarelos e aparência selvagem, apesar de se portar sereno, chamou seu nome com a voz grave e olhava para ela fixamente com a expressão vazia. Ismira deu meia volta demorou um tempo para compreender que era a próxima a se apresentar para o ovo na cerimônia, mas quando entendeu, recomeçou a tremer quase instantaneamente.

Quer dizer que Fioh não havia sido escolhido. O maior pretendente a um ovo de dragão de todo Vale Palancar não fora escolhido! Só em ouvir esta informação algo cresceu em seu peito, e pela primeira vez suspirando de satisfação, Ismira levantou a cabeça e andou em direção ao elfo que se encontrava na porta.

Pela primeira vez se permitiu ouvir os comentários dos demais jovens que estavam no mesmo corredor, fazendo uma fila para entrar no salão da cerimônia. “Como o Fioh não foi escolhido?” “O que será que aconteceu?” “Será que esse ovo vai chocar para alguém?” era o que ela ouvia em meio aos cochichos dos jovens. Também estava surpresa por ele não ter sido escolhido, mas agora estava com a confiança renovava para se apresentar.

Quando estava com alguns palmos de distância do elfo, fez uma mesura com a saia do vestido verde esmeralda que usava. Durante a cerimônia, os jovens usavam as suas melhores roupas e joias, como se fossem se apresentar para a própria Rainha Nasuada. Ismira não era diferente, apesar de não se sentir confortável usando joias, trajava um vestido de veludo esmeralda com detalhes amarelos e mangas em formato de sino que a mãe mandara fazer só para esta cerimônia. A cabeleira cor de bronze controlada em uma longa trança que caía em frente ao seu corpo. A única joia que usava era um colar de esmeralda.

- Eu sou Ismira. – disse ainda fazendo mesura. Quando terminou, o elfo assentiu com a cabeça, os olhos inexpressivos.

- Acompanhe-me, senhorita. – ele respondeu.

Não conhecia aquele elfo. Em quase todos os anos de cerimônia o elfo Uthinarë havia sido o diplomata que escoltava os ovos para o Vale Palancar, por isso estranha a presença daquele novo elfo ao mesmo tempo que sentia uma sensação incômoda que já o vira antes. Ele mantinha-se impassível, mesmo com aquela aparência selvagem que se assemelhava a um lobo, e a olhava com indiferença enquanto a guiava pelo salão.

Ficara tão distraída tentando adivinhar quem ele era que nem percebeu quando entrara no grande salão de pedra.

Skulblaka eld Virëm. Literalmente, a Sala do Dragão, como era conhecido o salão dentro do principal castelo da cidade específico para a cerimônia. Tinha o teto alto em formato de abóboda, como uma igreja, as paredes tinham um tom amarelado e enormes cortinas vermelhas foram posicionadas nas paredes ao longo da sala. Tochas iluminavam todo o salão, apesar da luz ser mais intensa no palco onde Ismira se encontrava, pois atrás dele havia uma enorme janela com um bonito vitral em azul com a forma retorcida de um dragão. Em frente ao palco, várias cadeiras de madeira eram lotadas por praticamente todos os cidadãos da cidade que vieram assistir a cerimônia. Não havia nenhuma música ou climatização, somente o som de sussurros vindos da enorme plateia a sua frente.

Ismira sentiu-se subitamente nauseada. Esquecia-se como essa cerimônia era excessivamente constrangedora e espalhafatosa. Odiava ter que se sujeitar àquela exposição, mesmo sendo por uma boa causa. Os habitantes da nova Carvahall sempre usavam aquele encontro como uma desculpa para poder falar dos vestidos e joias que as garotas usavam ou qual dos garotos era o melhor pretendente para as suas filhas. Aquele pensamento só a deixava mais nervosa e a fazia se esquecer do real objetivo de estar ali. Não fosse o elfo de feições selvagens lhe lançar um olhar de repreensão, ela seria capaz de sair correndo dali.

Engolindo à seco, aproximou-se do “altar” no meio do palco, os cochichos aumentando a cada passo. Não se atrevera a procurar os pais no meio da multidão. No meio da pesada mesa de pedra, estava um baú que estava aberto e tinha o fundo preto almofadado.

Ismira paralisou no momento que pôs os olhos no ovo. Era menor que os demais ovos de dragão que já tinha visto, mas a cor era hipnotizante. Era um misto de verde com azul, mas em um tom claro que se assemelhava a jade. A cor era tão fabulosa que por um momento não conseguia ouvir mais nada que se passava no salão. Completamente hipnotizada pela cor, ela se aproximou e encostou suavemente no ovo que mais parecia uma pedra preciosa. Acariciou levemente o ovo, sem conseguir conter a súbita vontade de acaricia-lo e abraça-lo. Era o ovo mais lindo que já vira em todos os seus dezoito anos. Parecia irradiar uma luz própria em tons azuis e verdes, e a sua solitária esmeralda em seu peito se sentiu constrangida tamanha era a majestade daquele ovo.

Não percebeu quando estava acariciando o sorrindo para o ovo, como uma mãe fascinada pelo filho. Mal percebeu o tempo passar. Sentia uma vontade quase incontrolável de pegá-lo no colo, e quando estava prestes a fazer, ouviu a voz grave do elfo atrás de si:

- Senhorita.

Um arrepio correu a sua espinha quando o encanto que o ovo fizera nela se quebrou. Levantou os olhos rapidamente para a plateia a sua frente e viu que as pessoas pareciam atordoadas, sem entender direito o que se passava.

Ignorando a plateia à sua frente, virou-se para o elfo já implorando:

- Por favor, me deixa ficar só mais um pou...

Um barulho de crack chegou aos seus ouvidos. Ismira ficou pálida ao ouvir o som. Não sabia se fora o suficiente para a plateia do salão ouvir, mas tinha certeza que o elfo tinha escutado ao ver a sua expressão.

Ela virou-se novamente para o ovo, o elfo havia corrido para o seu lado e parecia agora tão atordoado quanto ela. Havia uma rachadura na superfície perfeitamente lisa do ovo. Uma rachadura significativa surgiu da primeira, assim se multiplicando em várias outras pequenas rachaduras ao longo da superfície do ovo.

Ismira prendeu a respiração. O elfo ao seu lado, que acompanhava o surgimento das diversas rachaduras, fez um movimento estranho e se afastou dela, deixando Ismira sozinha com o ovo rachado.

Não sabia-se se havia passado horas ou segundos quando o primeiro buraco na superfície se abriu, dali saindo um membro que se assemelhava a uma cauda. Mesmo banhado com o líquido placentário, Ismira podia ver a linda cor da jade das escamas do pequeno ser. Logo mais buracos apareceram ao longo da superfície e mais membros cor de jade apareceram, até que finalmente surgiram pequenas asas fechadas, que ao se abrirem, revelou a cabeça e o rosto do pequeno recém-nascido.

Ele ainda lutava contra a membrana que o envolvia até finalmente se virar para Ismira. Ele abriu os seus olhos assustadoramente verdes e a encarou. Ismira estava totalmente fascinada pelo ser que a encarava, que mesmo tão pequeno parecia exalar tanta sabedoria e vivacidade. Os seus olhos grandes lhe eram convidativos, e ela quase podia ler os pensamentos através daqueles olhos. Toque-me, ele dizia para ela. E ela não queria lhe desobedecer.

- Senhoras e senhores – Ismira podia ouvir a voz do elfo ao fundo, mas parecia distante de mais naquela realidade – Apresento a vocês a mais nova Cavaleira de Dragão, Ismira de Carvahall...

Isso fora segundos antes dela tocar no pequeno dragão à sua frente e subitamente sentir uma explosão de sentimentos à sua mente ao mesmo tempo em que sentia a sua mão pegar fogo. Todo o seu corpo parecia imobilizado, coração acelerado, até sentir que todo o seu corpo pegava fogo.

Os seus pensamentos eram difusos e desconexos, e parecia que seu corpo seria consumido por chamas intermináveis. Caiu de joelhos no chão, não suportando a sensação de ter o seu corpo dominado pelo fogo. E quando sentiu que a sua consciência finalmente se esvaía, olhou uma última vez para aqueles grandes olhos verdes e compreensivos, e caiu inconsciente no chão.

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A alguns quilômetros dali, outro ovo, muitas vezes maior que aquele do Vale Palancar, também se rachava, desta vez sozinho, num ambiente escuro e úmido.