O Legado - Nova Ordem

Capítulo 2: Narbog


O jovem urgal mirava o seu reflexo no lago Fläm. Não gostava do que via: a sua pele que deveria ser naturalmente cinzenta era um tanto pálida de mais para os seus padrões, os olhos amarelos tinham algo esverdeado, e o corpo que deveria ser grande e forte, saturado de músculos rijos e imponentes como os do seu pai, não existiam em abundância no seu corpo esguio e reto. Mesmo com seus 1,80 de altura era muito baixo em comparação aos seus colegas, principalmente os Kull.

Mas o pior quando se enxergava no lago eram os seus chifres: pequenos e mirrados como um filhote de carneiro. Fez uma careta quando encarou os chifres e passou as mãos nele. Quando é que eles vão crescer? se perguntou mentalmente, cansado de passar vergonha perto dos outros garotos quando lhe perguntavam porque seus chifres eram tão pequenos.

Fez outra expressão de desgosto ao se lembrar do seu dia. Definitivamente ele era o ulgraga mais azarado de sua geração.

Hoje o seu pai terminara de confeccionar o alaúde que pedira há um tempo atrás. Ficara tão animado com o presente que mal experimentou e foi correndo mostrar o novo presente à sua amiga Ghargara. Ele foi direto para a sua cabana, mas não a encontrou. Presumiu então que ela estivesse nas pedras próximas ao lago Fläm, onde jovens urgals gostavam de passar o tempo e se banhar nas águas do lago.

Narbog normalmente não gostava de ficar em lugares com muitos urgals da sua idade, pois se sentia deslocado e desconfortável com o seu corpo, mas no momento estava tão animado com o novo presente que nem pensara duas vezes antes de ir para lá se encontrar com a sua amiga.

Ao chegar no local, percebeu que estava cheio como sempre: urgals menores brincavam na margem do lago, enquanto alguns maiores nadavam e apostavam corrida um pouco mais no fundo. Outros se divertiam quebrando pedras ou brincavam de lutar entre si, enquanto as fêmeas assistiam com admiração ou procuravam pedras de cores diferentes para adornar as roupas.

Ele achou Ghargara, outra urgal um pouco pequena para os seus padrões, conversando com um rapaz alto e músculos de mais para a sua idade, apesar de não ser um Kull, ele forçava a voz para parecer mais gutural que o normal e parecia interessado na conversa com ela.

- Ghargara! – ele gritou o seu nome, correndo até onde ela estava. A garota na mesma hora desviou os olhos do grandalhão com quem ela conversava e lhe abriu um sorriso.

- Narbog! – ela respondeu acenando. O jovem com quem ela conversava também se virou para ver quem se aproximava.

Assim que Narbog chegou onde Ghargara conversava, ele tirou o alaúde que carregava nas costas e mostrou para ela, arriscando alguns acordes para impressioná-la.

- Olhe o que meu pai fez para mim! – e continuou tocando, embalado pela animação.

- Ghargara. – o urgal de voz gutural disse. – O que este filhote quer? – desviou os olhos para ele, entortando a boca como sinal de desprezo.

Narbog semicerrou os olhos, parando de improvisar a música.

- Não sou filhote. – ele respondeu, tentando fazer a voz parecer mais grave – E Ghargara é minha amiga.

Ele bufou, numa expressão entre riso e desprezo, debochando do jovem franzino que o desafiava. Narbog se manteve impassível. Já Ghargara se postou na frente de Narbog, escondendo-o com o seu corpo. Ela era quase dez centímetros mais alta do que ele, outro fato que o incomodava.

- Tenho certeza que Ghargara não precisa de um amigo como você. – ele disse olhando para baixo, fixando os olhos debochados nos seus chifres.

- Chega, Bohrgal, Narbog é meu amigo, nossos pais são companheiros de luta e não permito que fale assim com ele.

- O que é isto que você segura? – ele perguntou sem tirar os olhos dos seus chifres.

- É um alaúde, um instrumento que os bardos utilizam para contar histórias. – Narbog respondeu, ainda tentando manter a voz grave.

Bohrgal dessa vez não bufou, mas soltou uma risada malvada e sonora o suficiente para que os jovens urgals na praia desviassem os olhos para a discussão deles. A insegurança começou a dominar Narbog ao ver que agora todos olhavam para ele, coisa que detestava. Quando finalmente o grandalhão Bohrgal terminou de rir, voltou a falar:

- Bardos são fracos. Só contam histórias de outros guerreiros. Mas com estes chifres duvido que você venha a se tornar um guerreiro poderoso. Os ulgraga não precisam de alguém assim para lutar em suas guerras.

- Bohrgal, chega! – Ghargara ralhava.

- Tudo bem, Ghargara – ele murmurou para a garota à sua frente, de modo que somente ela pudesse ouvir. Ela virou-se no mesmo momento, encarando-o com incredulidade, estranhando que Narbog aceitasse as ofensas.

- De quantos jogos participou, filhote? – Borhgal continuou as provocações, ignorando a urgal que ainda estava postada à frente do menor.

Narbog se retesou, ficando tenso com a pergunta. Os Jogos de Alagaësia foram criados um ano após a queda de Galbatorix, no intuito de apaziguar as nações ao mesmo passo que se permitia extravasar o espírito guerreiro das raças que habitavam o continente. Esta era uma das poucas ocasiões em que os urgals levavam vantagem e eram admirados. O seu pai mesmo participara de alguns e chegara a ganhar um prêmio. Mas desde que ele atingira a idade permitida para participar, 12 anos, não jogou uma vez se quer. Isto porque temia ser massacrado pelos urgals mais fortes e trazer vergonha para a sua família. Não, preferia se abster dos jogos. O seu pai nunca reclamara e ele estava contente com isso.

Até agora.

- Não, eu ainda não tenho tamanho suficiente...

Outra risada gutural se fez ouvida pela praia, as pedras aumentando o eco. O jovem Narbog mais uma vez estremeceu ao ouvir o som da risada aterrorizadora do maior. E o fato de que agora todos olhavam para ele e pareciam se aproximar não o tranquilizava. Ghargara continuava na mesma posição, apesar dele poder sentir um certo receio vindo dela. Ele só queria sair dali com a sua amiga, arrependendo-se na mesma hora em ter pisado naquele local.

Bohrgal aproximou-se perigosamente de Ghargara, mas a empurrou bruscamente do caminho até Narbog. Ela soltou um resmungo de dor, mas não fez nada além disso. Agora o urgal maior encarava o pequeno nos olhos, bufando pelas narinas. Só desviou os olhos pequenos e amarelos dele para lança-los em direção ao instrumento que Narbog segurava. Soltou outra risada debochada enquanto arrancava o alaúde dos braços do pequeno, que pela primeira vez teve o ímpeto de partir para cima dele. Mas antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Bohrgal já estava empurrando-o, levando Narbog a cair de traseiro no chão na hora.

- Talvez se você praticar mais como um guerreiro ulgraga e esquecer esta besteira de música, os seus chifres cresçam! – e levantou o instrumento acima de sua cabeça.

- Não!

Mas não teve tempo para levantar e impedi-lo, Bohrgal desceu o alaúde na pedra mais próxima, batendo com força e partindo o braço do instrumento em dois.

- Draj. – ele xingou.

Ghargara já estava de pé e correu em sua direção, consolando-o por não ter conseguido fazer nada.

- Narbog, me desculpe...

Borhgal continuava a rir, o som parecendo arranhar a sua garganta, e deu as costas para dois, sendo acompanhando por outros urgals menores que também riam, enquanto lançavam olhares de escárnio para Narbog e Ghargara. Mas Narbog já não se importava, estava arrasado de mais com o seu mais novo presente destruído para retribuir a zombaria dos outros jovens.

Depois deste episódio, ele escondeu o instrumento para que o seu pai não visse que ele já o tinha quebrado. Concertaria ao seu tempo, escondido para que ele não percebesse. Uma pena, mal tinha tocado direito. Praticamente não aproveitou o seu presente. Bufou mais uma vez amaldiçoando a sua má sorte.

- Filho, o que faz acordado? – uma voz imponente chegou aos seus ouvidos. Mais imponente e grave do que a voz debochada de Borhgal, mas desta vez ele reconheceu automaticamente.

- Pai. – Narbog lhe respondeu sem tirar os olhos do reflexo do lago. Logo ele pôde ver o reflexo do seu pai atrás de si.

Yarbog era um urgal robusto e imponente. Travou muitas batalhas em sua juventude, lutara tanto ao lado de Galbatorix, escravizado por Durza, como também pela liberdade de seu povo pelos Varden. Era um urgal de muita honra com majestosos e grandes chifres projetando respeito por onde passava. Mesmo após o fim das guerras, participou de diversas lutas pelos Jogos de Paz de Alagaësia, inclusive sendo premiado. Mas mesmo com as suas incontáveis conquistas e sendo uma prezada figura dentro da aldeia, Yarbog nunca represou o filho por ter chifres pequenos e ser totalmente deslocado dos outros jovens. Era isso que Narbog mais amava no pai, mas muitas vezes desejava ter a grandiosidade dele para dar orgulho àquele que o incentivava tanto.

- Quando os meus chifres vão crescer e ficar iguais à do senhor? – o pequeno virou-se para encarar os pais nos olhos, que soltou uma deliciosa risada e acariciou a sua cabeça.

- Por que se preocupar com isso agora? Você é só um filhote!

- Não sou um filhote, pai. – ele respondeu sério. – Tenho quase quinze anos. Todos os garotos da minha idade já lutam e tem os chifres crescidos. Menos eu...

- Hunf, não diga isso. Alguns ulgraga demoram mais para amadurecer do que outros. Além do mais, você não precisa de chifres grandes. Pode ter outro ofício além de guerrear. Como um contador de histórias. – ele analisou Narbog com os olhos, buscando por um objeto específico - Onde está o presente que lhe dei?

- Ah... – o pequeno sentiu o pânico lhe invadir enquanto não encontrava uma desculpa – Guardei. Ainda não aprendi a tocar direito.

Yarbog lhe lançou um olhar desconfiado, mas por fim bufou, passando novamente a mão na cabeça do filho.

- Vá dormir, pequeno. Amanhã teremos a Agaetí Shur’turgal com a presença dos elfos para escolher alguém do nosso povo para ser o novo Cavaleiro de Dragão. Você certamente participará.

Narbog fez uma careta. A cerimônia só seria outra maneira de se sentir exposto e ter que aturar outros urgals jovens zombando de sua aparência. Não acreditava que o dragão fosse nascer para ele de qualquer maneira, mas não poderia decepcionar a sua família. Era uma grande honra para eles ter a sua cria como candidato à Cavaleiro.

- Eu vou sim. – respondeu visivelmente desanimado.

Yarbog soltou outra risada gostosa, dando leves tapinhas nas suas costas.

- Pois então ande logo, já passa da hora de filhotes dormirem.

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Narbog estava se sentindo infinitamente desconfortável hoje. Ele era naturalmente tímido e deslocado, mas hoje só queria esconder a sua existência. E nem ao menos chegara no local da cerimônia. Isso porque o seu pai resolveu fazer outra surpresa pra ela esta manhã, surpresa que não lhe agradou nem a metade que o alaúde agradara, mas o seu pai estava particularmente orgulhoso. Ele lhe presenteara com a armadura que usou na guerra contra Galbatorix e vinha guardando até hoje. A armadura era muito bonita (para os padrões urgals) e ele não se importaria em vestir algo tão significativo para o seu pai e seu povo, porém a armadura era muitas vezes maior que ele. Estava se sentindo um gato vestindo um saco de batatas. Não transmitia imponência e nem respeito, só a ridícula imagem de um urgal filhote brincando de ser guerreiro.

A sua mãe inflara-se de orgulho, e o seu pai ainda lhe disse que “seria impossível um dragão não querer nascer para tão honrado jovem”. Narbog não discordava. Era verdade que ele gostaria de ser um cavaleiro de dragão, qualquer jovem em toda a Alagaësia sonhava com isso. Porém achava impossível que um dragão fosse nascer para ele. Achava impossível até que nascesse para um urgal. Em dezoito anos de pacto selado com os dragões, nenhum urgal tivera o privilégio de firmar o laço eterno entre cavaleiro e dragão. Às vezes desconfiava da veracidade do pacto, mas não ousava dizer isto nunca em voz alta. O pacto com os dragões era uma dos maiores orgulhos de sua raça, e maldizê-lo era um sacrilégio.

Como ritual de sua raça, despediu-se dos seus pais e foi sozinho rumo à concentração de jovens urgals para a apresentação na Agaetí Shur’turgal. Passava por entre as cabanas dos seus vizinhos de cabeça, tentando esconder o seu rosto nos tufos de cabelo negro que tocavam os seus ombros.

As cabas dos urgals eram feitas de madeira e palha e se organizavam uma ao lado da outra e não passavam de cinco metros quadrados. A organização das casas formavam ruelas com o chão de terra que sempre ficava enlameado quando chovia. As ruas eram difusas, porém sempre levavam ao mesmo caminho: Herndall, uma construção de pedra às margens do lago Fläm que abrigava o conselho de fêmeas urgal.

Narbog não se demorou caminhando nas ruas em direção à cerimônia. Ao chegar perto da grande pedra onde se localizava o salão da cerimônia, ele pôde ver o alvoroço de jovens urgals no pátio. Eles não se organizavam em fileiras, só descansavam ao sol enquanto conversavam com os colegas e divertiam-se mostrando suas armaduras e armas. As jovens fêmeas também usavam armaduras, mas estas com mais adornos e umas até portavam pedras preciosas nos pescoços e nos chifres, já que aquela também era uma boa oportunidade de arranjar um companheiro.

O pequeno urgal não procurara por sua amiga Ghargara desta vez. Tanto por vergonha do que tinha acontecido ontem, tanto por não querer que ninguém percebesse que ele usava a armadura de seu pai maior que o seu tamanho. Não, aguardaria pacientemente sozinho, se apresentaria e depois voltaria correndo para casa tirá-la.

Dois elfos faziam guarda em frente à Herndall e não se preocupavam em organizar a bagunça dos jovens. Em breve iniciariam a cerimônia chamando os nomes de cada jovem para se apresentar ao ovo dragão.

Os elfos com suas vozes melodiosas finalmente começaram a discursar para os jovens urgals. Falaram sobre a guerra contra o Império, como a nossa raça lutou bravamente ao lado do exército de Nasuada e como Eragon e Saphira libertaram o Império das mãos maléficas do rei tirano. Finalmente falaram sobre o Pacto entre dragões e urgals que o próprio Eragon firmara. Fim à burocracia da cerimônia, eles pediram que os jovens se organizassem pois chamariam um por um pelo nome.

Narbog se manteve relutante mas procurou pelo seu lugar de espera. Os elfos chamaram o primeiro nome, Narbog desejando que fosse logo o primeiro. Movia-se entre os urgals mais jovens quando ouviu o seu nome ser chamado

- Narbog! – e infelizmente não era o tom melodioso dos elfos que o chamava, mas sim um deles. Com muita relutância, moveu a sua cabeça na direção da voz que o chamava, e preferia não te-lo feito quando viu que era um dos seus vizinhos, Lobag, acompanhando deu mais três amigos, todos maiores que Narbog.

- O que foi, Lobag? – perguntou, sendo cauteloso com suas palavras.

- Fiquei sabendo que levou uma coça do Bohrgal ontem. Pensei que não teria coragem de por os seus chifres fora de casa hoje. – o outro urgal que era visivelmente menor que Bohrgal mas pelo menos uma cabeça mais alto que Narbog sorria por entre os dentes amarelos e pontudos. Os seus amigos riram, inflando o ego de Lobag.

- Todos os jovens devem participar da cerimônia, Lobag. – ele lhe respondeu como se explicasse para uma criança.

Isto não agradou muito o outro, que desfez o sorriso no mesmo segundo.

- O que é isto que está usando? – perguntou com visível desprezo – Parece um carneiro com pele de bode.

- É a armadura do meu pai – Narbog respondeu pela primeira vez sentindo-se orgulhoso de portar a majestosa veste de seu pai. Era uma honra receber a herança de um guerreiro tão poderoso como seu pai fora. – E o que é isso que você usa? Parece que roubou de um velho mendigo – falou apontando para a armadura do maior com olhos, desafiando-o.

A sua expressão de desagrado tornou-se ódio ao ouvir as últimas palavras de Narbog. Lobag aproximou-se furiosamente dele e o pegou pela gola da armadura com as duas mãos, levantando o menor trinta centímetros do chão, fazendo com quem seus rostos ficassem próximos o suficiente para ver o seu reflexo nos olhos um do outro.

- Não ouse a se referir assim à armadura de guerra que herdei do meu pai. Vamos ter um duelo de chifres após a festa da Cerimônia, Narbog. – e dizendo isso, soltou o menor bruscamente. Lançou os seus olhos vermelhos em fúria mais uma vez para ele, deu meia volta e se retirou, murmurando para os seus amigos que batiam nas suas costas como se aprovassem o seu desafio.

Após a cerimônia da Agaetí Shur’turgal sempre havia uma grande festa na aldeia, onde eles acendiam uma enorme fogueira, banqueteavam e tomavam vinho até caírem. A festa deveria ser antes da cerimônia em homenagem à Eragon, Saphira e aos elfos embaixadores que traziam os ovos de dragão. Fazia parte de sua hospitalidade. Mas ao pedido dos próprios elfos embaixadores, a festa era realizada somente após da cerimônia e raramente contava com a presença deles. Independente disto a festa sempre acontecia anualmente como marco simbólico.

Narbog suspirou pesadamente, pensando que a sua má sorte nunca acabaria. Não queria nem pensar em como derrotaria Lobag num duelo de chifres, sendo que os seus eram quase inexistentes. Sabia que deveria ter permanecido em casa, concertando o seu instrumento, enquanto seus pais pensavam que ele estava na cerimônia. A cada dia que passava ele tinha certeza que fora amaldiçoado ainda no berço.

Algum tempo depois, finalmente ouviu a voz melodiosa de o elfo chamar o seu nome:

- Próximo: Narbog, filho de Yarbog.

Finalmente a hora chegou. Agradeceu mentalmente pelo fim do seu tormento em público.

Ao se aproximar do elfo, próximo à entrada de Hendall, ele se apresentou:

- Eu sou Narbog. – e fez uma pequena reverência com a cabeça.

Algo estranho se passou naqueles poucos segundos que se apresentou. Narbog estava prestes à entrar no salão, quando o elfo o segurou pelo braço, impedindo-o de prosseguir. Ele o encarou intensamente, como se visse algo através dos seus olhos. O elfo era do seu tamanho, Narbog percebeu, e os seus olhos percorreram por todo o seu tronco antes de voltar os seus olhos para encará-lo. Terminado o estranho exame, o elfo assentiu com a cabeça, como um sinal de confiança. Narbog não entendia e não sabia como responder, mas sentiu a confiança se transmitida pela sua pele, e quase involuntariamente assentiu também em resposta.

O elfo o soltou e Narbog pode finalmente entrar no salão de Herndall.

O salão da Agaetí Shur’turgal para os urgals era o no mesmo lugar do Conselho das Fêmeas, não era aberto para a plateia (também porque os moradores da aldeia estavam muito ocupados com os preparativos da festa). O salão era feito de pedra escura, o clima era úmido e havia pouca luminosidade. As matriarcas se posicionavam numa mesa de pedra em formato de U, as mais novas nas extremidades da mesa. No centro do grande vértice tinhaoutra mesa de pedra menor, como um altar, e um grande baú em cima.

- Aproxime-se jovem Narbog, filho de Yarbog, e apresente-se para o dragão. – uma das mais velhas falou a voz severa rasgando os seus ouvidos.

Ele a obedeceu, e como em todos os anos desde que se apresentou na cerimônia pela primeira vez, fez uma grande reverência para o baú, ato que o seu povo só apresentava para pessoas de grande importância. A reverência mostrava o respeito dos urgals pelos dragões e a importância que o pacto tinha para a sua cultura.

Em seguida, ele pôde finalmente se aproximar do ovo de dragão. E ao vê-lo foi automaticamente fascinado.

O ovo era grande, maior que os últimos que havia visto, e tinha a cor a marrom, caindo para o bege, e opaca. Mas Narbog não conseguia dizer porque parecia tão mais bonito que os ovos anteriores. De certa maneira identificou-se com ovo, pois a cor era tão simples que parecia se esconder dos olhos ao redor. Mas a cor não escapa aos olhos dele. Aquele ovo mostrava que era especial somente pela sua existência e não precisava de uma fabulosa cor para mostrar isso.

Ele o desafiava ao mesmo tempo em que o encantava. Deveria tocá-lo somente uma vez para a sua apresentação terminar, mas não conseguia. Queria passar um tempo à mais admirando aquela existência, que era tão discreta e tão significativa. Mas ao sentir os olhos severos das fêmeas conselheiras sobre si, decidiu por esticar logo a mão e tocá-lo com a sua palma.

A superfície do ovo era um dos materiais mais liso e perfeito que ele já tivera a oportunidade de tocar. E ao contrário do que aparentava, era quente ao toque como a barriga de um filhote. Ele suspirou de prazer ao sentir a superfície contra a sua pele. Mas passara somente alguns segundos e ele retirou a palma, decepcionado pelo fim da sensação estranha e prazerá de tocar o ovo.

Ouviu passadas rápidas vindas às suas costas e com grande esforço desviou os olhos do ovo cor de areia. Ao virar-se para trás, se deparou com o elfo que o tinha parado na entrada. Não entendeu o porquê da entrada do elfo no meio de sua apresentação, e sentiu-se mais confuso ainda quando o elfo retirou o ovo do baú e o pegou no colo. Virou-se novamente para o jovem urgal e voltou a encará-lo nos olhos, com uma seriedade intensa.

- Pegue-o. – disse.

- Mas eu... – Narbog tentou argumentar, ainda não compreendendo a situação.

- O que se passa? – uma das matriarcas perguntou.

O elfo a ignorou.

- Pegue-o – ele insistiu.

Mesmo temendo a repreenda das matriarcas, ele novamente sentiu o sentimento de confiança emanando do elfo e assentiu com a cabeça. Abriu os braços e recebeu ovo cor de areia do elfo. Ao senti-lo em seu colo, deliciou-se com a sensação de carregar a vida pulsante de uma criatura tão majestosa em seu colo. Imediatamente sentiu toda a sua má sorte se esvair, e só conseguia sentir a felicidade de abraça-lo.

Quando algo inesperado aconteceu.

Um barulho que se assemelhava a uma batida chegou aos seus ouvidos. Outro barulho de batida se fez ouvido, então outro e mais outro. Então um barulho de crack mudou o ritmo. Ele correu os olhos para o ovo em seu colo e horrorizou-se ver uma enorme fenda na superfície outrora lisa.

Em pânico, ele buscou os elfos com olhos, que em resposta levou o ovo para chão, atrás do altar do ovo e longe dos olhares das matriarcas.

- O que se passa? – perguntou mais uma vez uma das fêmeas.

- Será que... – Narbog estava tão nervoso com o acontecimento que mal conseguia formular palavras – que eu quebrei?

- Não. - o elfo de expressões sérias finalmente se permitiu sorrir – Não quebrou.

Eles esperaram o ovo que agora estava no chão terminar o processo. Várias fendas surgiram pela superfície dele até finalmente o resto da casca se desmanchar e revelar o recém-nascido. Ele parecia atrapalhado com a membrana que o envolvia, se contorcendo para se livrar dela. Finalmente quando conseguiu, abriu as suas pequenas asas e as abanou, se livrando do resto do líquido que o banhava. Quando se deu conta que o urgal e o elfo o observavam, ele virou a seu rosto para eles.

Narbog ficara fascinado com o corpo e as escamas do pequeno dragão, que eram de uma cor de terra tão bonita que as escamas pareciam cascas de árvore. Os seus grandes olhos eram verdes como as copas de pinheiro e tudo nele parecia inalar a terra e a natureza. Os seus grandes olhos cor de pinheiro não desviavam de Narbog, que também não desviavam dos deles, mas não sabia direito como reagir.

- Toque-o – disse o elfo, que agora parecia distante – Para firmar o laço com a gedwëy ignasia.

Sem hesitar, Narbog levantou novamente o braço em direção ao dragão, o seu tamanho contrastando com o pequeno recém-nascido. E quando o tocou na cabeça, sentiu um choque elétrico por todo o seu corpo.

Toda a sua vida parecia passar perante os seus olhos enquanto sentia o seu corpo eletrocutado. Anos ou segundos pareciam ter passado enquanto o filme se passava na sua cabeça. Quando sentiu uma sensação de queimação na palma de sua mão, e gritou involuntariamente. Quando o fim do filme se aproximava, ele começou a enxergar os grandes olhos verdes do dragão à sua. Eram distantes, mas se aproximavam com velocidade espantosa. Até finalmente os olhos chegarem ao mesmo lugar onde se localizava o pequeno dragão e o filme de sua vida parar naquele momento. O choque passou, mas ele sentiu a sua mente se expandir em direção ao pequeno, e subitamente voltar a se encolher para dentro dele novamente.

O susto deixou a sua respiração pesada, suspirando e inspirando forte como se estivesse se afogando. Quando tudo terminou só sentia a sua mãe que havia tocado no dragão queimando, enquanto o pequeno o olhava com curiosidade.

- Parabéns. – o elfo lhe disse, sorrindo – Você acaba de se tornar o primeiro urgal Cavaleiro de Dragão.

Mal tivera tempo de assimilar as suas palavras quando o elfo se levantara para anunciar às matriarcas e após anunciar ao povo urgal.

Um grande discurso fora feito pela matriarca mais velha após isso. Como estava orgulhosa por ter finalmente um representante de sua raça entre os cavaleiros. Cada uma das fêmeas do Conselho veio pessoalmente lhe cumprimentar, enquanto ele segurava o pequeno dragão no colo que não parecia gostar de toda àquela atenção.

Quando a notícia chegou aos ouvidos dos outros a festa iniciou-se no mesmo momento em que fora anunciado o novo cavaleiro. Um palanque improvisado com as mesas do banquete fora montado para que Narbog subisse com o seu dragão. Os seus pais so faltavam lacrimejar de tanto orgulho e emoção quando Narbog subira no palanque com o dragão no colo e apresentara-se como cavaleiro.

Um banquete como nunca se vira antes fora servido, os seus pais sentando-se da cabeceira de honra. Narbog só queria ficar afastado de todos e alimentar o recém nascido, ele parecia não gostar de tanta atenção. Contrariando a sua vontade, a festa durou dias, de muita música e comida.

O que Narbog notou e particularmente o divertiu foi que ninguém apareceu para reclamar o duelo dos chifres.