Cap. 13: Etéry

Sons e cores se misturavam como uma coisa só, piscando e vibrando, e eram quase tangíveis. Formas faziam e se desfaziam sem formar nexo. E um grito, abafado por uma canção, era visto e ouvido ao fundo como se não pertencessem a lugar algum.

Nada fazia sentido, mas o mesmo tempo era confortável. Afinal, no mundo dos sonhos nada precisava ter um sentido.

Mas a elfa não tinha qualquer noção de que estava sonhando. Ela só observava aquela estranha sinfonia e ser embalada por ela sem saber para onde seria levada. Ela não pensava e não precisava de ninguém naquele momento. Estava feliz e estava bem. Nada a faria sair daquele torpor. Nada.

O seu nome ressoou no mundo dos sonhos. A elfa procurou pela origem dele, mas não fazia sentido. De onde estavam lhe chamando? E por que? Estava tão bem assim...

Mais um vez ouvira o seu nome. Procurou pela origem. Aquele era mesmo o seu nome? Estavam mesmo lhe chamando?

Quem me chama?

– Você vai ficar bem, minha filha. – alguém lhe disse com um sorriso triste no rosto. A sua visão estava desfocada e ela não conseguia compreender o que se passava ou a quem pertencia o rosto. Ela só sabia que sentia uma enorme ternura por aquele rosto.

E então tudo se dissipou.

A voz não respondeu e as cores desapareceram, caindo novamente no mundo da escuridão.

.

Etéry despertou com um grito. Sentia a sua garganta fechada, quase como se estivesse sufocando, e o coração acelerado fazendo as suas veias pulsarem de adrenalina. Suor gelado se acumulava na sua testa e na sua nuca, embaraçando os sedosos cabelos loiros platinados. Arfava, sem conseguir controlar a respiração. Quando ela finalmente percebeu que estava em seu quarto, embora escuro por ser de noite, conseguiu tranquilizar um pouco a sua mente. Fazendo o seu corpo desacelerar. Mesmo assim, aquela escuridão a torturava, por isso ela se virou para o candelabro que estava em cima do criado mudo, ao lado da cama, e murmurou “Brisingr”, para uma chama fraca se acender e iluminar um pouco mais o local.

A tempos que evitava uma necessidade tão básica quanto dormir. As vezes conseguia passar dias sem pregar os olhos, mas então o corpo cobrava os seus esforços e ela tinha que descansar um pouco, embora odiasse a sensação. Já havia dormido demais em sua vida.

A muitos anos atrás, Etéry tinha uma vida tranquila com a sua família. Moravam nas margens do lago Röna numa imperiosa construção entre as árvores. Mesmo que fosse um pouco isolado, gostavam assim. A sua família era o influente clã Lonkard, um dos clãs mais antigos e tradicionais de Du Weldenvarden, faziam parte do Conselho de Anciões de Ellesméra, embora nunca aparecessem para cumprir a sua autoridade pois preferiam o isolado do norte da floresta. Mas não que Etéry achasse ruim. Ela gostava de vida afastada que levava, embora sempre se sentisse curiosa com a vida fora de Alagaësia. Sonhava com aventuras, de viagens, lutas, e com o mar.

Mas tudo isso lhe foi privado quando o fatídico acidente aconteceu.

Ela não se recordava de muita coisa. Somente de estar andando distraidamente pelas margens do lago quando uma dor extenuante atingiu a sua omoplata. E ao se virar, havia olhos azuis lhe encarando intensamente com crueldade. Então todos os sons e cores da floresta se misturaram em uma coisa só. Ouviu indefinidamente a voz da sua mãe lhe chamando na sua mente, mas Etéry não conseguia responder.

Então caiu num vazio profundo envolto em sonhos desconexos.

Quando acordou, havia se passado quinze anos e a guerra que assolava o continente havia se extenuado. Muitos disseram que havia sido um milagre o seu despertar, mas para Etéry havia sido como uma providencia divina, das forças da natureza, que o seu despertar se desse logo quando o ovo da sua companheira dragão Ramhira estava na cidade.

Mesmo que os curandeiros fossem contra o seu deslocamento ao local da cerimônia, Etéry insistentemente foi. E se deparou com um belíssimo ovo branco como as nuvens refletidas no lago. Brilhante como opala e atraente como uma pérola. Dele nasceu Ramhira.

A elfa, mesmo sem o consentimento da família ainda preocupados com a sua saúde, decidiu partir com a comitiva dos elfos para Domia Kopa. Mas mesmo fazendo três anos desde que despertara, a elfa ainda não conseguia dormir direito.

Vi que teve um pesadelo.

Ramhira disse em sua mente. Ela estava em seu aposento especial, localizada numa montanha ao lado do castelo, onde os dragões se sentiam mais a vontade para descansar. É verdade que também havia como os cavaleiros ficarem nos mesmos aposentos do seu dragão, mas o lugar não era muito confortável além de fazer frio.

Há coisas que não esquecemos. – a elfa respondeu fracamente, querendo estar agora ao lado da sua companheira para abraça-la

Não é necessário esquecer, minha jovem amiga. É necessário superar.

Por mais que Etéry soubesse que Ramhira tinha razão, era difícil de admitir.

Mestra Scarlet se aproxima. – Ramhira avisou, saindo repentinamente de sua mente.

Mal deu tempo para que a elfa virasse os seus olhos para a porta de seu quarto, quando a mestra de cabelos negros e olhos âmbar entrou seu quarto com as feições banhadas em preocupação.

– Etéry, me acompanhe. Reunião de emergência.

A elfa anuiu com a cabeça e correu para pegar as suas roupas antes de sair do quarto com a mestra.

.

– Ágata o quê? – a voz de Eragon ressoou alta e grave pela sala de reuniões de Domía Kopa. Todos os presentes, menos a sua companheira Saphira, encolheram pela severidade de seu tom. E até mesmo a pessoa com que se comunicava através do espelho se retraiu de medo. No caso era um jovem elfo de nome Vanyr de madeixas azuis, que só estava ali a fim de contatar o mestre Eragon.

– Foi exatamente isso, Eragon-elda. Ágata Drottningu sofreu um atentado e está desacordada, porém, estável. Estamos investigando a causa do atentado e como reverter a sua situação. O seu companheiro Wyrda está inconsolável e agressivo. Estamos muito preocupados com a situação. – o elfo finalizou, temeroso com a reação do mestre Eragon que estava bufante com as péssimas notícias.

Se por um lado, Eragon quase soltava fogo pelas narinas assim como a sua companheira Saphira, por outro havia uma pessoa quase mortificada pela notícia: a elfa Etéry.

Foi como se o terror de dezoito anos atrás tivesse voltado todo à tona no corpo da aprendiz. A sensação de algo lhe atingindo no ombro, então todas as cores e sons se entrelaçarem e uma voz gritando na sua cabeça, os olhos azuis que a encarava com frieza e então inconsciência...

Etéry...

Chamava aquela bela e familiar voz em sua cabeça. Quem seria? Ramhira? A sua mãe? Mas não poderia ser ela. Então como...?

– Etéry!

Os seus olhos voltaram a se abrir. Aquilo que ela achava ter sido somente uma sensação na verdade fora real. A elfa realmente caiu desmaiada no meio da sala de reuniões. Ela viu um par de olhos âmbar e notou que fora amparada por sua mestra Scarlet, do outro lado também havia a elfa Hazel que se mostrava preocupada com ela. Etéry respirou fundo, tentando organizar a sua mente para o que estava acontecendo ali.

– Etéry, você está bem? – perguntou a garota de cabelos castanhos – Não tem dormido direito? – a elfa se preocupou, pois sabia das dificuldades da amiga em dormir e como ela aparentava estar com a saúde constantemente fraca por causa disso.

– Eu... eu estou bem... – Etéry respondeu fracamente, se recompondo na cadeira de reunião. Ouviu a mestra bufar ao seu lado e a viu franzir as sobrancelhas, numa expressão tipicamente irritada, mas dessa vez banhada em preocupação.

– Não é nada disso e você sabe! – a mulher a ajudou a se recompor e então caminhou novamente para o seu lugar na mesa de reuniões.

Etéry percebeu que o Mestre Eragon estava de pé no seu lugar, mas assim que os ânimos se acalmaram, ele voltou a se sentar, também aparentando preocupação em seu rosto. A garota loira logo se sentiu culpada por fazer todos se preocuparem com ela novamente, vendo os cenhos franzidos do mestre Storbokk e de Hazel. Agora que era uma cavaleira não queria este tipo de cuidado com ela.

– Ela entrou em choque. – disse Scarlet da mesma maneira usualmente espalhafatosa de sempre – Você sabe porquê, Mestre. Foi exatamente o que aconteceu à Etéry a dezoito anos. E isto não pode ser coincidência!

– Sim. – Eragon respondeu estoico em sua posição na mesa, parecendo pensativo – Os dois atentados podem estar interligados, apesar de Etéry ter sido diretamente atacada naquele dia. Porém em ambos os casos não sabemos quem foi o autor. – ele suspirou fundo, e no outro momento, a fúria inicial de quando recebeu a notícia da situação de Ágatha voltou e ele bateu forte na mesa de reunião, assustando novamente todos os presentes – Eu dei ordens claras à Ágatha para que ela retornasse! E agora isso! Quando é que irão aprender a não desafiar as minhas regras?

Eragon, a voz de Saphira ecoou pela mente daqueles presentes na sala como se ela tivesse pronunciando com a própria boca. É inútil pensar nisso agora. O pior já aconteceu. Não podemos culpar a ninguém a não ser o autor do atentado. Qual a utilidade de esbravejar com Ágata agora que ela está desacordada?

Fez-se silêncio na sala. Era sabido que Eragon e Saphira raramente discordavam, e mais raro ainda que discutissem. Para Etéry é um verdadeiro choque que existisse alguém com tamanha autoridade para falar desta forma com Eragon-Elda. Ela virou os olhos assustados na direção de sua mestra Scarlet, que não precisou falar em sua mente e fez um sinal que significava claramente para que ela permanecesse calada.

O mestre respirou fundo e por alguns momentos pareceu engajar numa conversa particular com a sua companheira Saphira. Neste meio tempo, pode-se notar que havia uma nova figura surgida nos espelhos da sala de reuniões. Faraniel havia aparecido porém nada pronunciou, o elfo mais velho provavelmente já tinha consciência do que estava se passando no recinto. Etéry continuou correndo os olhos pela sala de reuniões. Estavam presentes Scarlet e Rosalia, Storbokk e Velikan, Hazel e ainda dois elfos de nome Zorian e Lyor. Todos no mais absoluto silêncio.

O silêncio se quebrou com o suspiro de Eragon.

– Saphira tem razão. E, aliás, eu e ela chegamos a uma conclusão.

Eragon voltou os seus olhos para a elfa à sua frente, que congelou com o seu olhar.

– Não é uma coincidência que Etéry e Ágata tenham sofrido atentados que a deixaram desacordadas num estado tão mórbido que fora impossível contatar a sua consciência tocando a sua mente. Por isso... – ele suspirou novamente, parecendo muito, muito, mais cansado que a sua pouca idade. Afinal, para os humanos Eragon não teria muito mais que 40 anos. Isso não era nada para os elfos. Mas naquele momento o mestre de aparência jovem parecia com um ancião de 500 anos.

– Por isso... eu e Saphira chegamos a conclusão que para investigar melhor o que acontecera, devemos submeter Etéry à imersão de memórias dos Eldunarí para descobrirmos o que aconteceu naquele tempo.

De repente tudo pareceu ficar tão branco na mente de Etéry que ela mal conseguiu ouvir os protestos vindos das elfas ao seu lado. Até mesmo Rosalia pareceu ficar furiosa e mostrou as suas prestas em protesto. A elfa tinha os olhos perdidos.

Ela não podia fazer isso. Não podia. Pois a simples menção de retornar ao seu estado antes do coma o perturbava de tal forma que o seu corpo inteiro ficava paralisado de puro medo. A sua mente havia deletado todos os acontecimentos daquele fatídico dia. Ela tinha total absoluta certeza. Além do mais, o mago que a ressuscitou disse que ela ficara tanto tempo adormecida que a magia que para trazê-la novamente só funcionara pela presença próxima do ovo de Ramhira. Ela sentia que qualquer procedimento que fosse submetido agora, mesmo com Ramhira por perto, não garantiria que ela retornasse em plena saúde. Não quando se recuperara a tão pouco tempo.

– Ela não vai, mestre! – gritou Scarlet, levantando-se da mesa.

– Scarlet, não me desafie! – disse o ancião sem levantar-se, porém, com uma expressão severa no olhar.

– Eragon-Elda, com todo o respeito mas a stra. Etéry a pouco tempo foi desperta, ela não pode se submeter a um tratamento tão severo. – dessa vez quem o defendeu fora Storbokk.

O orgulho de elfa de Etéry lhe gritava que ela deveria se defender sozinha, e por mais que ela respeitasse os seus mestres, um anão e uma humana não deveriam defender uma elfa. Mas quando Etéry tentou levantar a voz para dizer alguma coisa ela... simplesmente não conseguiria. Sua voz não saia e a sua visão novamente se tornava turva. Ela não queria perder os sentidos mais uma vez. Mas a sua confusão emocional estava tão forte, e mesmo ouvindo as palavras de Ramhira na sua mente ela não conseguia se libertar. Não posso...Ela dizia à sua companheira. Eu não posso mais.

– Eu também discordo, Eragon-Elda. – ouviu a voz grave e profunda de Faraniel ecoar na sala, todas as suas atenções se voltaram para ele - Esta não é a melhor solução no momento, principalmente considerando a situação da jovem Etéry.

A elfa olhou para o mais velho com um brilho no olhar, esperançosa. Faraniel havia sido um dos magos que lhe despertou de seu sono, usando a força da natureza e dos espíritos num complicado ritual que lhe devolveu a sua consciência. Fora ele que o levara até Domía Koppa e dera as primeiras instruções para a sua companheira Ramhira. Desde então, Etéry nutria um sentimento especial pelo elfo. E ouvi-lo a defendendo dessa forma a fazia se sentir quente por dentro.

– E o que você sugere, Faraniel? – Eragon perguntou, já impaciente.

– Usar dos mesmos feitiços que usamos em Etéry para despertar Ágata. – ele respondeu, com o mesmo tom de ansiedade. – É um ritual complicado e que requer muita energia mágica, mas não é impossível. Eu não chegaria em pouco tempo em Farthen Dûr mas posso lecionar os curandeiros humanos e elfos para ajuda-los.

Toda as atenções se voltaram para o elfo de madeixas prateadas atrás do espelho. Eragon não parecia nada, nada, satisfeito. Scarlet e Storbokk, todavia, pareciam muito mais aliviados com a fala do outro mestre. O mestre desviou a sua atenção do elfo para a sua companheira Saphira, onde novamente trocaram uma conversa mental particular. Aquela tensão estava matando a elfa, que não ousou a expandir a sua mente para contatar a mestre ou a sua companheira. Apesar do assunto ser majoritariamente sobre Ágata ela sabia que estava completamente envolvida agora. E mesmo que optassem pela opção de despertar a elfa com o mesmo feitiço que fora usado nela, Etéry tinha plena consciência do seu destino.

Uma hora ela teria que se submeter à imersão de memórias dos Eldunaraí.

Ela fechou os olhos aguardando uma resposta.

– Muito bem, faça isso, Faraniel. Conto com você.

E então ela soltou o ar que estava prendendo e sorriu levemente, ganhando palavras de consolo de Ramhira em sua mente. Virou-se para Hazel, lhe dando um sorriso aliviado que foi respondido com o mesmo tom no sorriso da morena, pegando a sua mão para confortá-la. Quando sentiu uma intensa presença voltada para ela, então Etéry virou-se e reparou que Eragon a olhava com severidade. Ela não disse nada e nem sustentou olhar. O seu coração começou a bater forte com uma sensação de assombro só com aquele olhar. Até que finalmente a voz do mestre voltou a soar na sala de reuniões.

– A reunião acabou. Podem se retirar.

Um a um eles começaram a deixar o salão. Mas Etéry não pode deixar de parar em frente ao espelho onde Faraniel ainda estava e lhe fez uma reverencia com a cabeça, tocando os lábios como era de costume de seu povo.

– Obrigado, mestre. – disse, na língua antiga, para o homem de cabelos platinados que o olhava sereno através da superfície mágica.

– Não há nada ao que me agradecer.

E fazendo a mesma reverência, o elfo desapareceu como um pingo d’água que cai na superfície sossegada de um lago. Ela, então, se viu deparando com o próprio reflexo. Olhando para a sua imagem ela ficou pensativa. Não queria reviver aquele pesadelo de novo mas...

Algo lhe dizia que o mesmo mal que sentira antes estava novamente se aproximando.