Celtigar, filho de Hessyah.

Septuagésimo Oitavo Entardecer do Outono do Ciclo de 27 da Era das Espécies.

Mundo Inferior.

CELTIGAR sabia que iria espancar Haakon no momento em que entrou no túnel que se abriu na parede de pedras. Apesar do teto ser consideravelmente alto, as paredes eram tão estreitas que chegavam a ser claustrofóbicas. Não deveria ter se surpreendido ao perceber que teriam de descer longos e exaustivos lances de degraus irregulares que iam em direção ao subterrâneo. A descida parecia interminável, o que só deixou Celtigar ainda mais irritado. Draven e Merikh assumiram a frente em um silêncio sepulcral, enquanto o loiro fazia questão de manter Haakon sob seu olhar, o que fazia com que o mais novo ficasse cada vez mais desconfortável.

Finalmente, chegaram até uma pequena clareira escura. A vegetação parecia morta, por falta de palavra melhor para descrição, seca demais, o que de certa forma combinava com a ideia que tinha do Mundo Inferior. Com um suspiro pesado, Celtigar estendeu a mão e parou para se concentrar o suficiente para fazer uma pequena chama surgir, sabendo que Haakon era o único que não conseguia enxergar no escuro e por mais que estivesse com raiva do amigo, não significava que iria deixar de auxiliá-lo.

O caminho continuou silencioso até chegarem a um pequeno castelo formado por estranhas pedras negras, com torres altas e um portão de ferro que começou a se levantar com um simples gesto de Draven. A primeira reação de Celtigar foi olhar ao redor, já começando a inspecionar o que havia à sua volta como se estivesse esperando pelo primeiro sinal de perigo aparecer.

— Podem ficar tranquilos. — Draven deu um sorriso frio, observando a movimentação do loiro. — As almas ficam mais para baixo.

— Encantador. — Merikh comentou ironicamente, dando uma olhada irritada para o melhor amigo, indicando que ele deveria se acalmar.

Nenhum deles teve curiosidade o bastante para questionar mais. Todos sabiam que almas sem corpos eram especialmente perigosas para os vivos, tendendo a levá-los a uma onda de insanidade que invariavelmente terminava em tragédia. O melhor a se fazer era manter uma distância segura desses espíritos, mesmo que supostamente devessem estar controlados pela magia do Mundo Inferior.

Draven tomou a frente, os conduzindo até um salão amplo iluminado por várias velas negras. O lugar estava quase completamente vazio, exceto pela poltrona preta ocupada por um homem simplesmente horrível. Tudo em sua aparência assemelhava-se a um esqueleto, desde a magreza extrema até a pele branca translúcida agarrada aos seus ossos proeminentes, coberto por uma pesada túnica negra e uma capa com um capaz que lhes escondia boa parte do rosto.

— Vocês chegaram tarde, Draven. — o Guardião das Almas repreendeu, fazendo um gesto que invocou uma segunda poltrona ao seu lado.

— Tive que cuidar de um compromisso antes. — Draven respondeu com calma, acomodando-se na poltrona recém-conjurada. — Não deveria oferecer um assento aos nossos convidados? Estou começando a achar que esqueceu como usar sua boa educação.

— Nós somos lobisomens. — Merikh os interrompeu, algo relativamente incomum para o início de uma negociação, aproximando-se dos dois sacerdotes com seu andar indisplicente. — Nós nos sentamos no chão.

Como se para provar seu ponto, Merikh sentou-se de pernas cruzadas diante deles. Celtigar o seguiu prontamente, claramente interpretando a fala do melhor amigo como uma ordem, posicionando-se um pouco mais atrás do moreno sem dizer uma palavra e sem que um questionamento passasse por sua cabeça, como se obedecê-lo fosse uma reação natural para ele - e de fato, era. O único que permaneceu de pé, um tanto desconfortável, foi o mais novo.

— Eu não sou um lobisomem… — Haakon começou a reclamar, mas foi interrompido por um rosnado irritado de Celtigar, o que fez o mais novo imediatamente se sentar no chão também, parecendo calado.

— Você também os seus rapazes na rédea curta. — Caractacus comentou, olhando diretamente para o moreno.

— Não tanto quanto eu gostaria. — Merikh admitiu, com um pequeno sorrisinho, fazendo o loiro conter uma risada irônica. — Mas o suficiente.

Aquela não era uma mentira. Não era como se Merikh pudesse fingir que conseguiria controlar completamente Haakon e Celtigar, principalmente o último que era uma criatura instável e impulsiva, mas o moreno ainda era o responsável por impedir a maior parte das ideias estapafúrdias dos outros dois, colocando um pouco de racionalidade na loucura de ambos. Era algo essencial para a dinâmica do trio, principalmente quando prestavam serviços para algum Sacerdote.

— Bom, então presumo que seja com você com quem devo tratar. — Caractacus deu mais um de seus sorrisos frios, capazes de gelar até a espinha de todos os presentes.

— Talvez. — Merikh devolveu no mesmo tom, levantando levemente o queixo em um claro sinal de arrogância. — O que um Guardião das Almas poderia querer com três ladrões?

— Um roubo, é claro. — Caractacus respondeu o óbvio e precisou se conter para não revirar os olhos. — Com algumas… particularidades.

— Vamos começar do princípio. — Merikh suspirou, começando a conduzir a conversa enquanto Celtigar permanecia atento a cada palavra daquele diálogo. — O que exatamente você quer que roubemos?

— Um livro. — a resposta simples de Caractacus surpreendeu o trio.

— Um livro? — Celtigar repetiu, incrédulo, sem conseguir se conter. Haviam sido convocados para o Mundo Inferior por conta da porcaria de um amontoado de páginas?

— Um livro cuja última localização conhecida é em Northriver, provavelmente no Bosque de Dreak. — Caractacus continuou como se não tivesse sido interrompido, ignorando completamente os dois meio-elfos e dirigindo-se diretamente ao líder do pequeno bando. — Foi confiado a um Círculo de Guardiões há muito tempo. Agora, a verdadeira dona está o exigindo de volta e eles se recusam a entregá-lo.

— O Bosque de Dreak é território da Tribo de Treedan. — Celtigar rapidamente pontuou, fazendo questão de lembrar ao melhor amigo. Ir a outra Tribo sem permissão, por mais que tivessem relação de paz com a Tribo de Nyhue, era praticamente implorar por problemas.

— É um dos fatores complicadores. — Caractacus admitiu, embora seu tom deixasse claro que não considerava aquilo algo importante. — O outro é que existe a possibilidade de ter um luphyr na região.

Celtigar e Merikh trocaram um olhar preocupado. Quando eram filhotes, ainda na Era dos Deuses, era comum haver luphyres na Superfície. Ulke e Dorfaren até mesmo já haviam caçado alguns deles na época, mas aquilo tinha sido antes de Asthramyne, a Deusa da Lua e Mãe dos Monstros, confinar os luphyres aos Abismos, proibindo sua passagem pelos portais ainda existentes.

Um luphyr era nada mais do que um lobo gigante feito de sombras, com uma inteligência extrema e uma sede insaciável por sangue e carne. As lendas diziam que aqueles monstros foram uma das primeiras criações de Asthramyne, que teria os gerado em seu próprio útero e os parido no Luar mais escuro de todos, após uma briga com Ghunt, o Deus do Sol e seu marido. Eram perigosos e causavam uma grande destruição por onde quer que passassem.

— E por que haveria um luphyr na Superfície? — Merikh perguntou o que passava pela cabeça de todos, tomando o cuidado de manter sua voz tranquila como se aquele fosse um acontecimento normal.

— Porque é uma das coisas que o livro ensina. — Caractacus admitiu sombriamente. — E é por isso que ele precisa voltar para a verdadeira dona.

— A grande questão que vejo aqui, Guardião, é como você vai fazer isso se tornar da nossa conta. — Merikh deu um sorriso frio, finalmente chegando ao cerne de todo o problema.

Eles já tinham entendido o que estava acontecendo, não eram burros. Um livro na posse de um Guardião só poderia pertencer a uma Divindade, o que fazia sentido, considerando que os Deuses estavam tirando cada vez mais artefatos sagrados da Superfície desde o início da Era das Espécies, quando perceberam que muito poder na mão de mortais era algo absolutamente temerário.

Aquela informação já seria o bastante para qualquer devoto aceitar prontamente a missão, mas havia motivos para os Sacerdotes preferirem usar o serviço de criminosos. Eles não tinham escrúpulos ou laços de lealdade realmente significativos, funcionando por um código moral próprio e distorcido, não faziam perguntas indesejadas e, principalmente, cumpriam o que prometiam - bom, pelo menos na maioria das vezes.

— Eu pensei em cento e cinquenta moedas de ouro. — Caractacus ofereceu um valor significativo.

— Com a possibilidade de enfrentar um luphyr? — Merikh riu com escárnio, sabendo que poderia fazer um bom negócio diante do tamanho do risco que estavam se propondo a aceitar. — Faça ser trezentos.

— Feito. — Caractacus aceitou sem dificuldade, dando um sorriso presunçoso que mal disfarçava o desprezo em seu olhar. — Isso é tudo o que interessa para vocês, não é mesmo?

— Basicamente. — Merikh concordou, levantando ainda mais o queixo, com orgulho de sua falta de honra que era sua marca registrada. — E enquanto houver pessoas como você dispostas a me pagar o que eu quero, continuaremos tendo trabalho. Partiremos na próxima Lua, preciso preparar meus rapazes.

— Perfeito. — Draven finalmente se manifestou, parecendo satisfeito com o desenrolar daquela negociação. — Quando vocês recuperarem o livro, devem me encontrar em Northriver para me entregar. Eu garantirei que chegue a verdadeira dona.

— Não podemos garantir um prazo. — Merikh alertou, cauteloso. Afinal, além de não terem a localização precisa do livro, não tinha como prever o que precisariam fazer para obtê-lo. Provavelmente, só conseguiriam bolar um plano quando chegassem a Northriver e levantassem algumas informações. — Como você saberá quando nos encontrar?

Draven suspirou, estendendo a mão para conjurar uma longa vela negra repleta de símbolos que Celtigar não reconheceu de imediato. O Sacerdote a estendeu para Merikh, que a pegou com certa hesitação, examinando-a cuidadosamente. Certamente, fariam uma verificação mais detalhada quando estivessem sozinhos.

— Basta acendê-la e eu saberei.

Celtigar sentiu um arrepio percorrendo sua espinha. Por algum motivo, tinha certeza que uma vela capaz de invocar um Sacerdote da Morte seria muito perigosa na mão do trio, mas permaneceu calado. No final das contas, se Merikh tinha decidido aceitar um serviço, não cabia a ele questionar.