Haakon, do Clã Vidar.

Septuagésima Oitava Lua do Outono do Ciclo de 27 da Era das Espécies.

Tribo de Nyhue - Extremo Norte do Velho Continente.

O caminho de volta para a Tribo de Nyhue foi especialmente silencioso e tenso. Por mais que no final das contas o serviço tenha sido fechado, Haakon não era ingênuo o bastante para achar que estava tudo bem. A expressão fechada de Celtigar deixava suficientemente claro que o loiro estava aborrecido e quando Merikh proibiu Haakon de permanecer em Blackfield e ordenou que também fosse para a cabana de Hessyah, teve certeza absoluta que iria levar uma grande surra e sabia que não poderia evitar a consequência de seus atos.

Não o consolou que Mavka estivesse presente - sabia muito bem que a ruiva costumava justamente piorar o humor de Merikh e aquilo não seria nada positivo para o seu lado. Ela estava cozinhando quando chegaram, jogando pedaços de carne de cervo em uma panela grande de estanho junto com algumas cenouras e cebolas, ambas cortadas em grandes e grossas rodelas. O cheiro estava muito bom, não podia negar, e tentou se consolar com a ideia que talvez pudesse comer depois de apanhar.

— Hessyah estava brava quando saiu. — Mavka os informou com a voz claramente irritada, sem ao menos cumprimentá-los. — Esperava pelo menos Celtigar na Jaula essa Lua.

— Vamos ficar fora por um tempo. — Merikh respondeu com desinteresse, sentando-se em uma grande almofada roxa e passando a ignorar a esposa. — Celtigar, o que você acha?

— Eu acho que quero bater em Haakon. — o loiro bufou, fazendo o mais novo se encolher de medo. — E em você também, por aceitar o maldito serviço.

— Pode bater em Haakon se quiser. — Merikh deu de ombros, assinando a sentença do mais novo. — Mas além de eu não recomendar de você tentar avançar em mim, eu tive meus motivos para aceitar.

O aval de Merikh era tudo que Celtigar precisava para parar de tentar conter sua raiva. Antes mesmo que Haakon pudesse pensar em protestar, o loiro se adiantou e desferiu um forte soco no estômago do mais novo que nem ao menos tentou se defender, apenas curvou-se e se esforçou para se manter em pé enquanto a dor latejante se espalhava por seu abdômen. Um segundo soco, dessa vez mais moderado, atingiu sua costela e dessa vez Haakon não conseguiu reprimir um gemido de dor.

— Que merda é essa? — Mavka pareceu exasperada. Por mais que não fosse a primeira vez que ela visse o mais novo do trio apanhando, não era exatamente como se estivesse acostumada com os episódios de violência repentina do loiro. — Algum de vocês se importa de me explicar o que está acontecendo?

— Nós vamos a Northriver, querida. — Merikh falou com uma calma que refletia sua falta de interesse em colocar a esposa a par dos detalhes dos últimos acontecimentos, uma postura recorrente quando se tratavam de seus roubos.

— O que? — o choque de Mavka era tão grande que impediu sua costumeira reação desafiadora que tanto irritava seu marido. — Por que?

— Porque Haakon é um idiota. — Celtigar rosnou, socando novamente a barriga e em seguida agarrando o homem de cabelos azuis-escuros pela camisa, o impedindo de cair. — Mas eu também adoraria qual a justificativa de Merikh para apoiar a imbecilidade alheia.

— Pode haver um luphyr no Bosque de Dreak. — o moreno lembrou duramente. — Quando acabar a “comida” por lá, quanto tempo vocês acham que ele vai levar para chegar até o Bosque de Lehoy?

— E por que haveria um luphyr na Superfície?

Embora a pergunta de Mavka fosse bastante óbvia, não era como se pudesse culpá-la. Desde que Asthramyne havia confinado os luphyres aos Abismos, no final da Era dos Deuses, a ideia de um deles na Superfície era simplesmente absurda.

— Porque alguma Deusa idiota foi imbecil o suficiente para confiar um livro que ensina a invocar um luphyr para algum Guardião filho da puta. — Merikh foi um pouco mais impaciente na resposta. Ele odiava compartilhar detalhes sobre suas atividades ilegais com a esposa, mas dessa vez era simplesmente impossível mantê-la no escuro.

E para a infelicidade de Haakon, a raiva de Merikh parecia influenciar diretamente no comportamento de Celtigar, já que logo após sua fala, um tapa estalado caiu no rosto do mais novo. Aquilo o surpreendeu um pouco, já que geralmente o loiro evitava atingir a face do amigo justamente por uma questão de respeito. Então, para que ele chegasse naquele ponto, era porque a besteira que Haakon havia feito daquela vez foi realmente grande.

— Só não entendo o motivo de nós termos que ser os idiotas a resolver essa merda. — Celtigar desabafou, finalmente abaixando a guarda e deixando o mais novo de lado.

— Você conhece mais algum criminoso da região que tenha a capacidade de enfrentar um luphyr? — Merikh retrucou, levantando uma sobrancelha.

Ele realmente tinha um ótimo ponto. Historicamente, apenas lobisomens e feiticeiros com forte sangue licantropo haviam conseguido derrotar um luphyr, com exceção de uma ou duas histórias de um bruxo que também conseguiu realizar o mesmo feito utilizando de sua magia e de muita estratégia. Ainda assim, era indiscutível que apenas licantropos - e mais especificamente, aqueles nascidos na Era dos Deuses - eram capazes de enfrentar um luphyr, justamente por conta de seus atributos compartilhados com monstros.

E graças à cultura de extrema honra e moral absolutamente rígida que afastava os licantropos da classificação de “monstros”, Merikh e Celtigar eram os únicos foras-da-lei com sangue de lobisomem no Extremo Norte do Velho Continente. É claro, não eram lobisomens puros e sim feiticeiros, mestiços como a maioria dos criminosos de Zhivot. Ainda assim, quando transformados, nada os diferenciava de qualquer outro licantropo adulto.

— E por que precisa necessariamente ser um criminoso? — Haakon não conseguiu evitar a dúvida, embora soubesse que aquilo apenas piorava sua situação. Entretanto, não iria fingir que tudo aquilo não era muito estranho. — Até onde eu sei, os Treedan também são lobisomens.

— E você está se referindo aos anciões cujas presas nem existem mais ou aos filhotes minúsculos da Era das Espécies? — Merikh deu uma risada sarcástica.

Novamente, o moreno estava certo. A Tribo de Treedan era relativamente recente. Era formada por sobreviventes da antiga Tribo de Ontho, no Meio Norte do Velho Continente. Em algum momento da Era dos Deuses que não sabiam precisar, a Tribo de Ontho foi extinta após a combinação de uma guerra com elfos dos Clãs da terra e o surpreendente ataque de quatro luphyres. Alguns dos sobreviventes migraram para o Extremo Norte, onde enfrentaram dificuldades para se estabelecer no Bosque de Dreak, como conflitos com as Tribos de Nyhue, de Mohan e de Bresko, além dos inúmeros embates com a população de Northriver, que se sentiu ameaçada pelo estabelecimento de uma nova Tribo tão perto de suas fronteiras.

A paz veio para a Tribo de Treedan em algum momento entre o fim da Era dos Deuses e o início da Era das Espécies, algo bem recente, após uma série de acordos e tratados. Eram sobreviventes, é claro, mas aquilo cobrou o seu preço. A Tribo de Treedan era conhecida por ser fraca, já que pouquíssimos machos adultos tinham sobrevivido a série de conflitos a que foram submetidos, e com graves sequelas. De fato, não era como se pudessem esperar que a pequena Tribo de Treedan conseguisse se defender sozinha de um ataque de luphyr, que provavelmente se estenderia a Northriver e eventualmente, corriam o risco do monstro subir e pegar tanto a Tribo de Nyhue quanto a Tribo de Mohan completamente desprevenidas.

O que levava a mais uma problemática: até onde Haakon sabia, todos os antigos caçadores de luphyr da Tribo de Nyhue ou estavam mortos ou já tinham se tornado anciãos (e, por consequência, fracos demais para um embate daquele porte). O resto dos machos adultos de Nyhue ou eram filhotes na Era dos Deuses - sem experiência nenhuma na caça de luphyres— ou simplesmente jamais foram guerreiros ou caçadores. O próprio Chafyr era um Sacerdote do Lobo antes de se tornar Chefe. Haakon não era um profundo conhecedor das Tribos licantropas, mas não era tão difícil concluir que a situação de Mohan deveria ser parecida.

— Mas a Tribo de Treedan não precisa lidar com isso sozinha. — Mavka objetou, ainda assustada com tudo aquilo. — Eu duvido que se contássemos para o meu pa… para o Chefe Chafyr, ele não tomaria providências para ajudar uma Tribo aliada, ainda mais quando o futuro da nossa está jogo.

— Se os Sacerdotes quisessem a ajuda de meu adorável sogro, teriam procurado ele, não acha? — Merikh devolveu, sua paciência começando a se esgotar. — Tem algo de muito errado para que eles não queiram que essa história do livro venha a público e agora eu vou descobrir o que é.

— Por Shada, Merikh! — Mavka deveria saber que invocar o nome do Deus da Floresta, dos Bosques e dos Lobos não iria ajudar. — Eu estou quase parindo o seu filhote e você quer simplesmente sair por aí para enfrentar um luphyr? Faz tanta questão que o seu filhote cresça sem a porcaria de um pai?

— Até onde eu saiba, Hessyah que é uma parteira, não eu. Tenho certeza que ela pode te auxiliar bem mais do que eu nesse momento. — Merikh foi tão frio que quase poderia ser considerado cruel. — Além disso, você superestima o bem que um pai presente pode fazer. Com exemplos como Ulke e Chafyr, era de se esperar que não cometesse o mesmo erro.

— Eu cuido do luphyr. — Celtigar quase gritou para se intrometer na briga do casal, mais irritado que ambos. — Sozinho. Vocês dois se preocupam com os Guardiões e com o maldito livro.

— Você está louco. — Haakon se manifestou, incrédulo com o nível de impulsividade do loiro.

— O filhote de Mavka não crescerá sem um pai. — Celtigar insistiu, encarando a ruiva. — Eu dou a minha palavra.

Haakon nunca deixava de se surpreender com a maneira que parecia que Celtigar parecia se preocupar mais com Mavka e o seu bem-estar do que seu próprio marido. Jamais ousaria falar aquilo em voz alta, mas talvez a filha do Chefe fosse muito mais feliz se tivesse se casado com Celtigar. Ainda assim, ninguém seria capaz de negar o forte laço de amor doentio que unia Merikh e Mavka.

— Nós podemos discutir isso no caminho. — Merikh murmurou, um pouco mais calmo, claramente também assustado com o rompante do melhor amigo. — Vamos começar a empacotar as coisas. Haakon, nos encontraremos em Blackfield no próximo pôr-do-sol.

— Sim, senhor. — o mais novo prontamente concordou, sem ousar questionar a ordem.

Mas Haakon não conseguia evitar a sensação persistente de que estavam prestes a entrar em algo muito do que poderiam imaginar e que tinha o condão de transformar suas vidas para sempre. Aquela não era uma intuição boa - tinha certeza que seria ruim, muito ruim. Seriam eles as próximas vítimas das brincadeiras cruéis do Destino?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.