O Garoto da Lua

Capítulo 6 - Moros


Eu percebi que estava gritando novamente.

Na realidade, eu estava socando o chão enquanto gritava.

Demorei demais para perceber a dor. Eu não podia escrever.

Respirei.

E continuei respirando.

Eu precisava urgentemente respirar.

Fechei os olhos e me concentrei apenas em minha respiração.

Você precisa se acalmar, Moros.

Quem é Moros?

As lágrimas riscavam meu rosto e eu olhei para minhas mãos machucadas. Elas tentavam alcançar algo que eu ainda não tinha consciência. Levantei, onde estava o espelho?

E lá estava Moros. Eu o encarei e ele me encarou de volta.

Quem é você?

As palavras em meu corpo agora não passavam de feias cicatrizes, quase não era possível compreender o que elas diziam. Um corpo rascunhado e, de algum modo, belo. Por causa dos meus olhos, por causa do meu rosto… por causa da minha mãe.

Como algo poderia ser belo e horrível ao mesmo tempo?

— Quem é você? — questionei, colocando a mão no espelho. — Eu sou Moros, mas… o que é Moros?

As lágrimas pareciam não ter fim, me ajoelhei diante do espelho e permiti que meu corpo inteiro sacudisse com o choro. E, uma vez mais, eu gritei.

Só que gritar não era o suficiente.

— Por quê? Por quê? — Não havia ninguém para responder minha pergunta. Eu nem sabia porque estava perguntando. — Você deveria se acalmar, sabia? É uma resposta simples… Moros, se você se esquecer de quem é, então ela terá vencido.

De fato.

Eu não poderia me dar ao luxo de enlouquecer.

— Mas você já está louco, Moros… — Isso não é necessariamente verdade. Eu poderia me curar. — Será mesmo? Como? Você sequer lembra quem é…

De que lado você está, afinal?

— Eu sou o garoto da Lua… eu sou o garoto da Lua. Moros é o garoto da Lua e eu sou Moros. Eu sou filho da sereia Hyssa e do humano… qual era o nome dele? — Aqueles olhos pálidos no espelho deveriam lembrar. Eles deveriam me ajudar. Qual era o nome dele? — Demétrio…Meu pai se chamava… Demétrio.

Deitei no chão frio e me concentrei na minha respiração. Eu estava respirando rápido demais.

Você tem que se acalmar, tudo irá ficar bem, de algum modo.

Não vai. Você não está seguro.

Ela virá atrás de você.

Reprimi a vontade de gritar. E se ela estivesse próxima o suficiente para ouvir?

Corri até o livro, eu precisava saber. Visualizei todos aqueles destinos, mesmo sabendo que não deveria, mesmo temendo que aquilo apagasse ainda mais quem eu era.

Eu sou o garoto da Lua.

Respirei, devagar.

Quantos destinos existiam? Não saberia dizer… onde estava Aubrey? E se ele estivesse ajudando a feiticeira? Mas a feiticeira não teria poder para livrá-lo da maldição… só um escrivão poderia livrá-lo disso…

A boneca.

Mas ela não tinha o livro.

Quando ela o libertou?

Procurei nas páginas, não havia nada. Além disso, eu lembraria.

Nenhuma pista.

Levantei, podia sentir a paranoia tomar conta de mim. Eu poderia me matar facilmente. Sim, isso seria o mais simples a ser feito. Todos que eram importantes para mim estão mortos.

Exceto ela…

Talvez… eu nunca a traí. Ela tinha que estar viva. Não tinha?

Então, quem vai proteger o livro?

Proteger? Mas por que ele precisa de proteção?

Todos esses destinos são sua responsabilidade. Você já viu o que um escrivão pode fazer.

Humanos são terríveis.

Seu pai era um humano.

Mas ele era diferente… ele era como… um anjo.

O que é um anjo?

O que é… um anjo? Não sei, o que é isso?

Concentre-se, Moros… a resposta está quase lá.

Você está me distraindo. O problema está na feiticeira. Ela vai me amaldiçoar de novo, porque ela é como um demônio.

Anjo e demônio, Moros. O que eles são?

Já disse que não sei!

O que seu pai costumava contar?

Isso não é importante, são apenas histórias.

Tudo é história.

Mas a feiticeira…

Como se mata um demônio?

Eu não sei…

Como se mata um demônio?

Eu não sei!

Do que seu pai estava fugindo? O que você parece, Moros?

Eu pareço um garoto vindo da Lua…

Não, Moros… o que você parece?

Eu pareço um livro.

Por que você se recusa a lembrar?

São muitos destinos na minha cabeça.

Apenas o seu importa.

— Não… Não! Você está me distraindo, isso é coisa da feiticeira! Eu preciso me preparar, porque ela quer que eu vire um livro novamente. Ela precisa de poder, eu estou vulnerável! Eu não quero mais sentir dor! Eu não quero sofrer novamente! Não quero! Não quero! Já chega! Pare com isso!

Acalme-se… Eu sou você.

— Não é! Eu sou eu! Você é outra coisa! Sai da minha cabeça! É você quem está me enlouquecendo!

Onde estamos?

— O quê?

Descreva… onde estamos?

— Estamos na torre…

Sim… como é o lugar onde estamos?

— Por que quer saber?

Porque isso vai ajudar.

— Você quer informações! É a feiticeira! Eu nunca irei dizer! Eu vou te matar, vou te destruir, eu vou me vingar! — Eu havia gritado? Não saberia dizer. Eu precisava de um destino, algo que calasse aquela voz. — Eu vou me vingar!

Um destino. Qualquer um…

Havia um rapaz.

Sim, um rapaz procurado pelos Pacificadores.

Não que o lugar onde vivia fosse algo extraordinário. Talvez no passado fosse… sim, de algum modo era.

Ele ouvia os sussurros da antiga mansão acima de sua cabeça. Já estava acostumado com eles e, de certa forma, eles eram reconfortantes.

Era engraçado como as pessoas acreditavam em assombrações.

Afinal, caso não acreditassem, aquele não seria um excelente esconderijo. Ao menos temporariamente… cedo ou tarde mandariam demolir aquele local. E então ele teria que se mudar. Outra vez. Ele nem se recordava mais da sensação de ter um lar.

Um gemido o tirou de suas reflexões, olhou para o lado, com um olhar meio perdido, embora soubesse exatamente o dono daquele som.

— Sim, Envy? — questionou, com doçura. O homúnculo entregou para ele uma pilha de livros que mal conseguia carregar. Era uma cena quase grotesca. O jovem suspirou e livrou seu servo daquele fardo. — Já disse para não trazer tantos assim… vai piorar a situação da sua coluna.

A pobre criatura era corcunda e pequena, era pouco maior que uma criança de oito anos. Ainda assim, era forte. Sua força, no entanto, não compensava sua lentidão e pouca inteligência… qualquer outro Inominável já teria o descartado.

Porém, Johann jamais seria capaz de tal ato.

— Ah...ah… ih… ça. In… co. Ih… ça. — Envy batalhava com as palavras com grande determinação. Seus dedos mostravam o número cinco e apontavam para o teto acima de suas cabeças. Mesmo sem aqueles gestos, Johann seria capaz de compreender. Há muito tempo ele havia aprendido aquele estranho idioma que apenas Envy era capaz de pronunciar.

— Há cinco crianças lá em cima? — Quando o homúnculo acenou em sinal positivo, Johann se levantou. Soltou um pequeno gemido enquanto se espreguiçava. — Certo, vamos assombrá-las.

Subiu lentamente as escadas do porão e puxou a pequena alavanca que havia ali. Era possível ouvir as vozes das crianças, meio animadas, meio amedrontadas. Uma prova de coragem… isso estava se tornando cada vez mais comum.

— Que cheiro é esse? — Um menino perguntou, a excitação minguando aos poucos de sua voz.

E então um grito, o som de passos apressados.

Era incrível como tecido e algumas máscaras eram capazes de estimular a imaginação humana.

Contudo… ainda havia uma criança.

Será que o medo a havia paralisado?

Não.

Todas as crianças fugiram, mas...

Sim. Aquilo não era uma criança.

— Interessante mecanismo — ela comentou, após alguns segundos.

— Eu não costumo receber visitas. — Johann passou pela porta de madeira e deu um leve sorriso. Anya usava um leve vestido florido e tinha os cabelos negros presos em uma única trança. — As outras crianças irão suspeitar se ficar aqui muito tempo com o meu fantasma.

O ruivo parou, observando a máscara pálida que ele mesmo desenvolveu. Era um rosto feminino com uma expressão de horror… Johann conhecia bem aquela expressão...

— Não vou demorar. Meu mestre mandou dizer que haverá uma reunião amanhã.

— Amanhã? — franziu o cenho, contrariado. Normalmente as reuniões eram marcadas com pelo menos um mês de antecedência.

— Ao entardecer.

— Tão cedo? — Anya apenas deu de ombros. Ela abriu a pequena maleta escolar que carregava consigo e retirou algumas vestes. Os olhos azulados encaravam o ruivo sem muita emoção. Ele estendeu a mão e pegou o presente, era um vestido.

— Hmmm. É, vai servir. Diga a ele que agradeço. Ele tem feito muito por mim, mesmo com todos os problemas que causei.

— Os outros estão claramente irritados, mas… meu mestre está acostumado em ser caçado. Nunca fez muita diferença pra ele. — A homúnculo fechou sua maleta e a segurou com as duas mãos. — Ele acha que o motivo da Ordem te odiar não é pelo seu crime… é porque você criou um homúnculo. Foi o segundo a conseguir, até onde se tem notícias.

— Talvez… ainda assim, ele está abaixo do seu nível. — Quando ela fez menção de falar, Johann a cortou, com uma voz tristonha. — Eu sei que seu mestre acredita que se eu me desfizer de Envy e criar outro terei um resultado melhor, mas… eu gosto dele. Com todos os defeitos que tem.

— Se você diz… tenho que ir. — Ela se virou e caminhou lentamente até a saída. Parou por um momento e lançou a ele um último olhar indiferente. — Não leve Envy para a reunião.

— Por quê?

— Esse disfarce novo… também servirá para te esconder da Ordem. — Sem dizer mais nada, saiu, fechando a porta atrás de si.

O garoto desceu as escadas para o porão pensativo. Procurou por um reflexo no espelho e suspirou: seu cabelo já havia passado da altura dos ombros e sua franja seria o suficiente para esconder seu olho rosado.

— Mãe… — Uma lágrima solitária desceu lentamente pelo seu rosto, ele segurou com força a pedra que sempre levava consigo. Não importava quanto a apertasse… ela nunca emitia o calor que deveria. Sua Pedra Filosofal era fria… um coração congelado pela mais profunda tristeza. — Envy, precisamos de um plano.

A criatura o encarava, atento. O que deveria fazer? Deveria ter perguntado se alguém mais sabia sobre seu esconderijo… deveria assumir que sim.

Sempre espere o pior.

— Certo — respirou fundo e começou os planos para a mudança. Ou talvez… — Uma falsa mudança. Envy… lembra daquela barraca que mostrei a você uma vez? Preciso que vá até ela. Tenho que separar algumas coisas para você levar… não há necessidade de ter pressa, então não carregue além do que você é capaz.

O que aconteceria depois?

O garoto morrerá.

Traído por aquele que confiava. Outra vez.

Não.

Por quê?

É injusto, não posso permitir.

O mundo é injusto, Moros… o que esse garoto tem de especial?

Nada, apenas quero ajudá-lo…

Mentir para mim não irá adiantar… Eu sou você.

Pare!

Eu sou você!

Não é!

Eu sou…

Ele perdeu tudo! Ele perdeu tudo porque alguém viu potencial nele… assim como eu.

É assim que você se lembrará de quem costumava ser.

— Vamos salvá-lo.

A famosa sensação de estar sendo observado. No início da sua ruína, era uma sensação constante, ocasionada pela ansiedade, pelo medo…

Com o passar dos anos, aquela sensação parou de incomodá-lo.

Mas ainda assim… ele nunca sentiu uma sensação como aquela.

— Quem está aí? — Johann perguntou, enquanto segurava Envy pelo ombro. O pequeno homúnculo, que normalmente se acalmava com aquele gesto, ficou ainda mais ansioso. Seu mestre nunca usou tanta força como usava agora.

— Eu não estou realmente aqui… — Uma figura com um capuz branco saiu das sombras. — Eu vim lhe oferecer um aviso.

— Aviso? — O ruivo tentava alcançar um velho candelabro quebrado que estava jogado em um caixote próximo. A figura suspirou.

— Não vai adiantar me acertar… o Alquimista que você confia. Ele irá lhe trair. Eu posso te ajudar, posso ajudá-lo a se esconder.

— Claro, irei confiar em um estranho que sequer mostra o próprio rosto. Isso faz sentido para você, Envy? — O jovem lançou um olhar sarcástico para a criatura defeituosa, que balançou lentamente a cabeça de maneira negativa.

— Eu sabia que diria isso, mas sempre tenho esperanças de que seguiria o outro caminho… — Respirei fundo após retirar o capuz. Eu sabia que não haveria nenhum reconhecimento por parte dele, apenas, talvez, de que, tal como ele, também era o filho de uma sereia. Quando Johann nasceu, eu já não ocupava mais o cargo de um deus. — Meu nome é Moros, deus do destino, o primeiro filho de uma sereia com um humano. Creio que seguir um deus morto é a única coisa capaz de impedir sua morte.