NITCH



Era uma vez….

Jeito engraçado de começar uma história. Como se esta, em particular, fosse apenas a unidade de uma série de eventos semelhantes.

Mas nunca houve nada semelhante a este pequeno conto.

Nasci no subterrâneo, poucos meses depois da guerra. Meu pai, Morip Buster, havia morrido durante a última batalha,

Grávida, minha mãe, Asha, havia sido aprisionada no subsolo juntamente dos demais monstros.. Ela fazia parte de um pequeno grupo de monstras enviuvadas, cujas únicas lembranças da vida na superfície seriam as crianças que carregavam.

Durante a caravana de exploração, conforme os sobreviventes esgueiravam-se por dentro do território desconhecido, Asha fez amizade com uma gestante chamada Mistrel. A jovem gestante, que esperava seu segundo bebê, ajudou-a a se virar por um bom tempo, durante a extensa viagem pelo Underground.

Conforme os meses passavam, nosso povo espalhou-se pelo novo lar. Mistrel e mamãe, emocionadas, despediram-se uma da outra, tomando rumos diferentes - mas prometendo reencontrarem-se muito em breve, assim que formassem suas novas famílias.

Isso jamais aconteceu.



Uma das melhores vantagens de ser um monstro é ter uma excelente memória.

E eu me lembrava de sons, sombras e brilhos acima de mim. Sentia o aconchego e a segurança do ventre materno. Ouvia os murmúrios e vozes ao meu redor.

Ouvia, deliciado, a voz carinhosa de mamãe, dirigindo palavras doces e cantigas de ninar para seu pequeno e único filho.

— Mamãe te ama, meu pequeno Nitch. Mamãe te ama demais.

O tempo era relativo quando você era apenas um bebê. Media a passagem dele por meio do escuro que se estendia durante a noite, quando minha mãe se cobria para dormir.

Porém, um dia, a opacidade não desapareceu.



— Respire, Asha. Respire! - ouvi uma voz exaltada.

Senti uma pressão estranha ao redor de minha cabeça. E tudo ao redor de mim estremeceu, acompanhando os soluços desolados acima de meus pés.

— N-não…. consigo… - o ofego de Asha era aflito e sufocado.

— Por que não me disse que estava tão fraca, Asha? - a voz desconhecida choramingou – vamos… temos que tirar… seu bebê daí…

As vibrações acima de minhas pernas pareciam perder o compasso gradativamente. Minha visão anuviou, escurecendo o alaranjado diante de meus olhos.

— K-Karin… - o sacolejar aumentos, e o som da pulsação diminuiu – s-salve… salve… Nitch….

Não sabia o que estava acontecendo. Tudo estava errado.

Comecei a engasgar.

Os soluços… os batimentos… desapareceram.

E eu mergulhei na escuridão.



O escuro imperou por um longo tempo.

Não sabia onde estava, nem o que havia acontecido. E algo pressionava-se contra mim. Uma. Duas. Várias vezes. Meu peito doía.

Finalmente, minha visão retornou.

Mas não havia mais umidade. Nem o brilho avermelhado. Em vez disso, havia luz. Luz azulada. Cores que me cegavam. E um rosto peludo, de focinho longo e olhos tristes, espreitando-se em minha direção.

— Ah… - disse a monstra canina, num tom de voz aflito – que bom que voltou, querido….

Ela ergueu-me no ar, tomando-me nos braços delicadamente. Percebi algo macio circundando meu corpo.

— Achei que tinha perdido você também… - sussurrou, angustiada – sua mamãe…

A loba interrompeu-se, fechando os olhos por um momento.

— Não posso ficar com você, Nitch – lamentou-se – eu… não posso – reabriu-os, franzindo o cenho – mas lhe garanto que você não ficará sozinho, meu pequeno.

Naturalmente, eu não entendi o que a monstra havia me dito. Pequeno e indefeso, apenas observava os novos sons, hipnotizado com as cores, entretido com o novo mundo que se abria para mim.



Depois de algum tempo, senti um solavanco.

Karin baixou-me em algum lugar. Havia lágrimas escorrendo pela pelagem negra de seu rosto.

— Desculpe… - choramingou – é o único lugar onde sei que estará seguro – afagou-me o rosto – boa sorte, pequeno Nitch.

A monstra reergueu-se, distanciando-se aos poucos de meu campo visual.

E então, por fim, desapareceu.

Comecei a chorar alto, sentindo a brisa gelada dos túneis atingindo-me a pele. O som ecoou pela caverna.

Mas ninguém veio.

Desolado, me remexi dentro da coberta.

Repentinamente, uma sombra pequena surgiu na parede ao lado. E vozes finas, esganiçadas, aproximaram-se cada vez mais de onde eu estava.

— Olha, Temmie!

— O que será que é?

Confuso, ergui a cabeça para trás. E deparei-me com o rosto branco e animado de um tipo de cachorrinho de cabelos negros, que possuia estranhas orelhas de gato entre os fios da juba escura. Que tipo de monstro era aquele?

— É um bebê! - ofegou alegremente – Temmie ama bebês! Temmies vão ficar com ele!

O outro cachorro suspirou entediadamente, encolhendo suas orelhas felinas e farejando-me. Seu narizinho úmido me provocou cócegas.

— Um recém nascido.... aqui na Vila Temmie? – resmungou – tem certeza que querem ter essa responsabilidade?

— Claro! - a cachorrinha uivou de empolgação – ele vai ser feliz com Temmies e Bob!

Senti-a me abraçar. O calor agradável e carinhoso de seu corpo fez meu choro diminuir, até cessar por completo.

O cãozinho girou o olhar.

— A escolha é sua. Eu que não vou perder meu tempo vigiando ele – fungou, contornando-me e sumindo túnel afora.

Temmie abarcou-me com ambas as patas, pegando-me no colo.

— Bebê pesado – riu-se, sorrindo para mim – não se preocupa! Temmie vai cuidar de você!

Á partir daquele momento, finalmente senti o afeto de algum tipo de família.

Embora fosse demorar muito tempo para descobrir, o fato de ser órfão incomodou-me terrivelmente desde o início.

Mas a vida na Vila Temmie não era ruim. Eu tinha amigos ali, que haviam me aceitado como parte de seu grupo, criando-me com contentamento, considerando a mim como um igual.

Tinha o carinho e companheirismo dos Temmies. Podia brincar e me divertir o dia inteiro, explorando ao longo dos labirintos ocultos de Waterfall. O mundo era enorme para um pequeno monstro que vivia recluso numa passagem secreta.

Ainda assim, parecia que algo sempre estava faltando dentro de mim. E eu não conseguia compreender o porque.

O que eu não entendia era que tal coisa não poderia ser encontrada ali. O que faltava em mim viria num futuro próximo. E mudaria por completo minha vida.

No fim das contas, minha jornada ainda estava prestes a começar.