AAYRINE

— Mais rápido, Rine! Você é muito lenta!

Essa frase, repetida dezenas de vezes durante minha vida, sempre havia me tirado completamente do sério. Como que para equilibrar todas as habilidades que eu havia desenvolvido até então, aquele era meu maior ponto fraco.

Apesar disso, era dito em tom de diversão pelos meus amigos. Então a irritação nunca durava por muito tempo, e logo estávamos novamente nos divertindo com nossos treinos diários.

Aos seis anos, eu já era bastante conhecida em Snowdin, devido ao meu costume de ir até as famílias próximas, oferecendo todo tipo de ajuda possível. As crianças admiravam minha dedicação e coragem, e os adultos se divertiam com aquela pequena carneirinha – cujos chifres ainda nem haviam despontado – bancando a guardinha real.

Eu adorava aquilo. Dedicar-me á ajudar os monstros – mesmo em coisa completamente banais – me davam um sentimento de realização indescritível.

Naturalmente, havia aqueles que adoravam tirar uma com a minha cara.

— Heya, Aayrine.

Eu já estava revirando os olhos, antes mesmo do revenant adolescente se aproximar. Debrucei-me na pedra em que estava sentada, erguendo o focinho na direção de meu amigo.

— Oi, Sans.

Um osso emergiu da neve á minha frente, entrecruzando-se com um tinido alto contra meu pequeno espadim de madeira.

Sans não aparentou decepção. Sua íris chamejante desapareceu no mesmo instante, enquanto ele ria de modo satisfeito.

— Nada mal, garota – aprovou – seus reflexos melhoraram bastante.

Ergui uma sobrancelha.

— Mamãe ainda vai ficar sabendo disso!

— Ah, sim – a risada dele aumentou – não é como se a carneirinha fosse incapaz de se defender. É mais provável que eu volte para casa com uma faca enfiada no crânio.

Ergui os ombros, empavonando-me.

Se havia algo do qual eu me orgulhava era de ter um talento nato para defesa pessoal. Desde que havia começado meus treinos, me vangloriava de jamais ter levado qualquer dano que fosse. Eu achava que isso era um requisito básico para qualquer futura guerreira da Guarda Real.

— Ah... não é para tanto – apesar de tudo, forcei-me a guinchar humildemente – eu ainda tenho muito á aprender.

Para meu azar, Sans tinha também uma habilidade única para detectar a arrogância reprimida em minha voz.

— Um dia, Aayrine – Sans sentou-se ao meu lado – alguém vai te botar no seu lugar – ele acrescentou, risonho, vendo-me ameaçá-lo com o espadim – brincadeirinha, garota – desconfiada, o vi retirar algo do bolso da jaqueta – toma. Para fazermos as pazes.

Lambi os beiços, agarrando o pequeno sache de ketchup que Sans havia me inclinado.

— Oba – numa dentada, arranquei a lateral da embalagem, esvaziando o conteúdo numa só engolida.

Verdade fosse dita, o fato era que, tal como aquele garoto abusado, eu também adorava aquele molho. Era a maior – e única – semelhança que havia entre mim e Sans.

— SAAAAANS!

Entreolhamos-nos, humorados, assim que Papyrus se aproximou, batendo os pezinhos de modo zangado na neve.

— Oi, Papyrus!

— OI, RINE! = ele voltou-se para o irmão – SANS, VOCÊ PROMETEU! DISSE QUE IA ME LEVAR PARA VER O TREINO DA GUARDA REAL EM WATERFALL!

Ofeguei, erguendo o olhar.

— Vocês vão ir mesmo? – minha cauda se sacudiu de empolgação – posso ir com vocês? Por favor!

As íris brancas de Sans giraram dentro das órbitas.

— Está bem, Paps. Só um pulinho em Waterfall, e voltamos para casa – avisou, em seguida inclinando o crânio para mim - se sua mãe deixar... posso te levar também, Rine.

Não foi preciso mais nada para que eu corresse, o mais rápido que eu podia, de volta para minha casa.

Quando entrei, deparei-me com mamãe sentada na cozinha, preparando um pequeno lanche para nós.

Embora tivesse os mesmos cabelos dourados e olhos vermelhos, as semelhanças entre mim e minha mãe paravam por ali. Ela era amável, humilde, e decididamente jamais teria tido a coragem de empunhar uma arma. Não havia pessoa mais bondosa e adorável em qualquer lugar do subterrâneo – exceto, talvez, a futura rainha, Toriel Dreemurr.

— Mamãe! Mamãe!

Ela sorriu, retraindo o focinho de modo divertido.

— Já sei – brincou – Sans veio me avisar.

Baixei as orelhas, bufando. Claro que o esqueleto trapaceiro já havia se transportado magicamente para dentro da minha casa e avisado a mamãe sobre nosso passei.

— Que saco.

Minha mãe veio até mim, ajeitando meus cachos louros.

— Pode ir, querida. Apenas tome cuidado.

— Eu sempre tomo cuidada, mamãe – cortei-a, a abraçando.

— Não estou dizendo para se proteger – surpresa, a vi gargalhar – tome conta daqueles dois rapazinhos. Eles sim podem se meter numa encrenca.

Era em parte exagero, é claro. Sans sabia bem como sair de uma situação delicada. E Papyrus era bem forte para seus meros três anos de idade.

Mas era impossível discordar de uma pessoa que não parava de lhe sorrir orgulhosamente. Ainda mais quando tal pessoa era Mistrel Nacabi.

— Está bem, mamãe – concordei – vou ficar de olho neles.

— AAYRINE!

Eu ainda não havia me acostumado ao estranho hábito de Papyrus falar gritando – nem mamãe, pelo visto, já que ela havia enfiado um dos cascos dentro do ouvido, como se tentasse desentupi-lo.

— Já estou indo! – apanhei um dos biscoitos em cima da mesa, dando um beijo no rosto de minha mãe – até mais tarde, mamãe!

— Até mais, querida – ela me acenou, enquanto eu saia.

Assim que saí, franzi o cenho, vendo mais duas crianças ao lado de Sans e Papyrus.

— Oi, Rine!

Fiz uma careta.

— Você não disse que Dogamy e Dogaressa iam com a gente.

— Ah. Eles também pediram – Sans sacudiu as omoplatas – consigo transportar todo mundo. Não vai ter problema nenhum.

De fato, era egoísmo meu não querer que mais crianças tivessem a oportunidade de ver os treinos da Guarda Real. Mas aquilo era tão especial para mim, que imaginar dividir aquela experiência com os demais parecia quase um sacrilégio.

— Ok – rendi-me de má vontade – então vamos logo!

— Você que manda, baixinha.

Demos as mãos um para o outro, enquanto Sans usava sua magia para nos teleportar em direção á Waterfall.

Aquela seria a primeira de muitas vezes, nas quais eu teria várias oportunidades de admirar aquilo ao qual, num futuro próximo, eu lutaria para fazer parte.

No entanto, o Destino me reservava algo bem maior, que eu jamais poderia ter tido a chance de imaginar.