NITCH

Não sei por quanto tempo fiquei naquela escuridão.

Mas o terrível despertar, angustiante e aterrador, fez-me desejar voltar á penumbra de minha mente.

Tudo doía. Sentia como se alguém tivesse costurado minha consciência dentro de corpo que não era meu.

Quando abri os olhos, a claridade me cegou.

Ofegante, ergui-me afoitamente, sentindo meu coração saltar dentro do peito. Reconheci a maciez abaixo de mim como a superfície de uma cama.

Mas não a minha cama. E era evidente que o lugar onde eu me encontrava agora definitivamente não era a Vila Temmie.

Não me recordava bem do que havia acontecido. Tudo que me lembrava era do pequeno tubo, e dos Flocos Temmie. Da água. Do afogamento.

E do escuro.

— Bob? Temmies?

Choraminguei, colocando s mãos sobre a cabeça, que latejava de dor, arrastando-me até a beirada da enorme cama.

Havia uma grande penteadeira ao lado do quarto esbranquiçado, cujo espelho encontrava-se virado em minha direção. Trêmulo, esforcei-me para subir na gigantesca cadeira diante dela, tentando verificar como eu estava agora.

Sufoquei um grito de choque, erguendo minhas mãozinhas no topo da cabeça.

Onde deveriam estar meus pequenos chifres – que haviam começado a crescer antes do acidente – havia agora longas e felpudas orelhas de gato, muito parecidas com a das Temmies, que despontavam para fora de uma grande quantidade de cabelos negros e curtos.

Passei as mãos pelo pijama azulado que vestia, sufocando o choro.

O que havia acontecido comigo?

— TEMMIE! BOB! – exclamei, desolado.

Mas não houve resposta.

Soluçante, acocorei-me na cadeira, abrindo e fechando minhas mãos, como se assim pudesse de alguma forma espantar a angústia que me assolava.

Repentinamente, ouvi passos pesados e apressados do lado de fora do quarto. Ergui a cabeça, confuso, quando um grande vê imponente vulto adentrou no cômodo, encarando-me com a expressão preocupada.

Nunca havia o visto antes. Mas havia ouvido falar dele... as Temmies haviam garantido que eu o reconheceria quando o visse pela primeira vez.

Muito mais alto do que qualquer monstro que eu havia visto, com enormes e imponentes chifres dourados, vestindo uma grande manta real. Todo o conjunto, porém, destituído de sua seriedade, quando combinado com o regador que trazia em mãos.

Rei Asgore.

Ele largou o regador sobre a penteadeira, ajoelhando-se no chão, até que ficasse ao nível da minha altura.

— Está tudo bem, criança – o rei sussurrou, num tom de voz bondoso e reconfortante – você está seguro agora, meu pequeno.

— M-majestade... – gaguejei, ainda confuso.

— Por favor, rapazinho – ele sorriu, me lançando uma piscadela – me chame apenas de Asgore – ele hesitou por um momento, antes de acrescentar – ou de qualquer outro termo mais informal.

As notícias não chegavam com rapidez na Vila Temmie. Portanto, eu nunca havia descoberto – até então – que o rei encontrava-se sozinho na Nova Casa, o lar original da família real. Sua esposa, a rainha Toriel, havia partido há vários meses para as Ruínas de Underground, após o filho do casal e herdeiro do trono, o príncipe Asriel Dreemurr, morrer num terrível acidente.

Naturalmente, o rei estava abatido. E seu comentário intrigante sobre a forma como eu o chamaria havia definitivamente me pegado se surpresa.

— Asgore... – eu disse – onde estou? Onde estão as Temmies? – deslizei os dedos sobre meu novo par de orelhas – o que houve comigo?

Asgore suspirou.

— Você sofreu um acidente, meu garoto. Seus amigos trouxeram você até mim. Estava inconsciente – baixou a voz, parecendo tenso – ficou desacordado... por muito tempo... quatro meses – franziu o cenho – e algo... mudou você. Algo... desconhecido. Mas me encarreguei de cuidar de você até que ficasse bem.

Percebi que ele não acrescentaria mais informações aquela questão por hora, então decidi não insistir.

— Eu... – disse, receoso – o senhor...?

Ele tomou a minha mão na dele. Comparada á sua manzorra, era definitivamente minúscula.

— Naturalmente... – o rei aprecia escolher as palavras com cuidado – se quiser ficar por mais tempo... pode residir comigo aqui... por quanto tempo quiser.

Ofeguei, pego desprevenido.

Eu sentia uma falta imensa da Vila Temmie e de seus habitantes. Mas a perspectiva de passar um tempo com o rei Asgore, no castelo real, tomou completamente a minha infantil e recém-acordada mente. A perspectiva de ficar me maravilhou.

— Eu... eu quero – reforcei, rindo timidamente – quero sim, senhor.

O rei trovejou uma risada satisfeita, afagando meus novos cabelos escuros.

— Então está decidido. Será bem vindo aqui por quanto tempo precisar, Nitch. E quero que a Nova Casa seja mais do que um mero nome para você...

Tudo que eu conhecia de novo me empolgava.

Aos poucos, comecei a me acostumar a passar o tempo com Asgore, vivendo com ele em segredo por trás das amuradas do Núcleo.

No fim das contas, após uma visita conjunta das Temmies e Bob, decidimos que eu ficaria por mais tempo em companhia do rei, e que eles me visitariam rotineiramente assim que fosse possível.

Como os demais monstros jamais ficaram sabendo de minha existência, o rei decidiu reservar uma parte do castelo e da Nova Casa apenas para mim. O quarto onde eu havia ficado em coma se tornou meu dormitório, oculto por uma despretensiosa placa com os dizeres “Quarto Em Reforma”. Assim, nunca houve nenhuma suspeita sobre o novo filho adotivo do soberano de Underground.

Um dia, depois de uma sessão de treino - no qual ele havia acostumado a me ensinar técnicas de combate simples – nos encontrávamos sentados nos jardins de flores douradas. Tomando um pouco do chá que era especialidade do rei.

Lembro-me de ter sorrido, e erguido minha cabeça para Asgore.

— Está uma delícia. Obrigado, pai.

O rei assustou-se, arquejando alto. E eu mordi o lábio, percebendo o que eu havia acabado de dizer.

Um momento incômodo surgiu entre nós dois.

— Me desculpe – ofeguei.

— Não – ele me interrompeu, vincando a testa – não, Nitch... eu... suponho que você... se sentiria bem assim... me chamando de “pai”?

Um sorriso triste abriu-se no focinho de Asgore.

Assenti, envergonhado.

— Então vai ser nosso segredinho... – ele ergueu os braços para mim – meu filho...

Arquejante de alegria, me joguei em cima dele num abraço.

— Papai!

Ele me apertou com força.

Porém, embora sorrisse, eu sentia seu corpo estremecer com soluços. E sabia que não era apenas um pranto de felicidade.