AAYRINE



Minha bolsa caiu com um estrépido no chão, assim que adentrei em casa.

Corri desesperada até o quarto, sentindo meu peito doer de desespero e aflição. Cheguei arfante ao batente da porta, hesitante, temendo ver o que estava acontecendo no interior do cômodo.

Não podia ser verdade. Não podia.

E o pior de tudo era que eu sabia o por que.

Minha mãe havia se contaminado há algumas semanas com um tipo de substância desconhecida, após uma visita á alguns colegas em Hotland. Ninguém sabia de onde aquele elemento havia vindo, e mamãe havia tornado o assunto irrelevante, dizendo que suas tosses erma apenas um indício de gripe.

Ela havia me assegurado. Havia me tranquilizado nas minhas ligações, dizendo que a indisposição era temporária. Que suas olheiras eram resquícios de uma insônia. Que seus últimos dois desmaios deveriam ter acontecido por ficar tempo demais sem comer.

Eu havia pressentido. E, juntamente dela, meu coração havia ignorado os sinais.

— Aayrine…

Estremeci, segurando um soluço.

Agora, teria que enfrentar a realidade terrível do que estava para acontecer.

Entrei no quarto, trêmula, ajoelhando-me penosamente ao lado da cama. A monstra enfermeira me olhou penalizada, soltando o casco convulsivo da carneira acamada.

Mistrel virou o rosto em minha direção com dificuldade, esboçando um sorriso fraco e angustiado, encarando-me vacilante.

Ali, dentro de meu ali, eu podia me desvencilhar do meu casulo de guerreira imbatível, e me deixar ser abatida pela onda de emoções.

— M-mamãe… - choraminguei, apertando sua pata.

Ela acariciou minha palma, soluçando baixinho.

— Olá, querida – minha mãe me sorriu – olha só… pra você… tão crescida…

— Mãe… - apertei sua mão contra meu rosto – vai ficar tudo bem… - bali inutilmente – você vai ficar boa…

Encarei a enfermeira, suplicando infantilmente por uma concordância. Uma confirmação que fosse. Um último laivo de esperança.

A negação em seu olhar me destruiu completamente por dentro.

— Ah, Rine… - senti mamãe me afagar a pelagem do rosto – minha menina… eu devia ter te contado… eu sinto muito…

Estremeci quando Mistrel recomeçou a tossir. Angustiada e aflita, vi um pouco de sangue escorrer de seu focinho.

Como uma criança, deitei a cabeça sobre a barriga dela, chorando penosamente, como se minhas lágrimas e súplicas internas tivessem algum poder de salvá-la.

Senti seus cascos trêmulos pousarem em meus cabelos. Reabri os olhos, olhando-a, ainda fremindo de angústia.

— Mamãe… por favor…

Com o rosto colado em sua pele, sentia o corpo dela frasquejar cada vez mais.

Tinha certeza de que meu coração se estilhaçaria em milhares de pedaços. Estava vendo minha mãe morrer diante de mim, impotente, sem poder fazer nada para salvá-la.

Era minha única família. Tudo que eu tinha.

E agora, até isso estava sendo arrancado de mim.

— Aayrine… - ela ofegou, definhante – você precisa… cuidar do nosso povo… das crianças… eles não terão mais a minha ajuda… - o ar lhe faltou por um longo segundo - prometa... que cuidará de Snowdin... e do subterrâneo…

Angustiada, sentindo as lágrimas escorrerem por meu focinho, assenti para minha mãe, apertando sua mão na minha.

— Eu prometo, mamãe… sempre vou proteger os monstros… - sufoquei outro soluço – vou fazer a senhora se orgulhar…

O rosto bondoso de minha mãe se inclinou, destilando sua costumeira afetuosidade. Aquilo pareceu terminar de destroçar meu peito.

— Eu sei que vai… minha garotinha corajosa…

Vi a monstra enfermeira recuar, as mãos sobrepostas sobre o peito, aparentando uma comoção profunda com a cena.

Eu não sabia o que fazer. Parte de mim queria fugir. Parte de mim queria que, de alguma forma, eu pudesse trocar minha vida pela dela.

— Querida… - senti a mão da enfermeira em minhas costas.

— Me deixe aqui – implorei desoladamente – me deixe aqui…

Havia gritado com o som do trovão. Mistrel riu de modo penalizado, erguendo os braços para mim, pegando-me no colo e me abraçando carinhosamente.

— Minha carneirinha destemida – brincou, beijando o topo de minha cabeça - não precisa ter medo. Eu sempre estarei aqui para te proteger.

Funguei, erguendo a cabeça.

— Mas não era eu que tinha que proteger você, mamãe?

Ela riu, fazendo-me cócegas. Gargalhei, me encolhendo em seu corpo.

— E você vai, meu amor – sussurrou amavelmente, enquanto eu sorria, deitando a cabeça em seu ombro - um dia, meu pequeno espadim, você protegerá a todos nós...

Reabri os olhos, enquanto mamãe tossia novamente.

Vi o brilho em seu olhar esmaecer.

— Aayrine… - sua voz chiou roucamente – por favor… seja piedosa… e tenha coragem….

Sua mão escorregou, desabando suavam ente sobre o colchão.

— Mãe…?

Ela me lançou um último sorriso, antes que seus olhos se fechassem.

Ninguém teria morrido de forma mais serena.



A cerimônia foi reservada. Alguns amigos, e grande parte da Guarda Real, haviam comparecido à cerimônia do voo da poeira.

As cinzas de Mistrel Nacabi haviam sido derramadas nas águas gélidas do rio norte de Snowdin. Não havia coisa que minha mãe mais havia amado em sua vida do que nosso vilarejo nevado. Ela merecia descansar para sempre no lugar que havia chamado de lar.

Todos já haviam se despedido, após prestarem suas respectivas condolências. Apenas eu e Undyne permanecemos na margem do rio, defronte ao horizonte azulado que levava à Waterfall.

Delimitei o local onde a poeira havia sido derramada, fincando meu antigo espadim de madeira entre as pedras da beirada.

Assim que terminei, voltei a me erguer, sentindo a mão de Undyne pousar em meu ombro.

— Sua mãe foi uma pessoa extraordinária – a monstra sussurrou – fico feliz de saber o quanto ela se orgulhava de você.

Não esbocei nenhuma reação.

Naquele dia, algo mudou dentro de mim. A notícia que havia recebido durante a cerimônia havia garantido isso.

A substância misteriosa - o elemento que havia ceifado a vida de minha mãe – havia vindo da superfície.

Mais uma vez, os humanos haviam me tirado o que eu mais amava.

Houve um tempo em que havia me sentido cativada pela história daquela espécie peculiar. Agora, tudo que eu sentia era um ódio pungente, que percorria minhas veias como fogo.

— Quantas almas faltam? - sibilei.

A capitã sabia exatamente sobre o que eu estava me referindo. Suspirou, baixando a cabeça de modo hesitante.

— Três – sussurrou enfim.

Contraí os punhos.

Não importava quanto tempo levasse, eu vingaria meus pais.

Havia adiado aquilo por tempo demais.

— Quero saber quando o próximo cair – rosnei, decidida – darei cabo dele... pessoalmente.