NITCH



Eu me encontrava sozinho na Nova Casa quando ele apareceu.

O telefonema de Undyne havia sido curto e urgente, efetuada minutos antes que a pequena figura surgisse diante do jardim.

A recepção estava péssima.

— Nitch… não fomos avisados… Núcleo… humano… castelo…

Tão rápida quanto havia sido atendida, a ligação encerrou-se inesperadamente.

Eu não havia entendido completamente a mensagem.

Tudo o que sabia era que um humano havia alcançado o ponto mais distante do Underground. E que eu deveria impedi-lo de avançar.

Sobressaltado, empunhei a manopla em meu braço, pondo-me diante da entrada da Nova Casa. De pelos eriçados, me coloquei em posição de ataque, aguardando que o invasor se manifestasse.

Para minha surpresa, fui obrigado a olhar para baixo, focalizando a pequena criança que surgiu detrás das plantas do jardim.
Era um garoto humano. Não devia ter mais do que dez anos de idade.

Trajava um avental de cozinheiro, e trazia uma frigideira empunhada nas mãos trêmulas, que lhe ocultava parte do rosto. Estava nitidamente acanhado, como se evitasse, a todo custo, olhar diretamente para mim.

— Por favor… - ofeguei baixo quando a voz suave e tímida escapou de sua boca – não quero lutar com ninguém, moço…

Franzi a testa por um momento.

Aquele humano não parecia em nada com os seres desprezíveis, arrogantes e desleais que eu havia sido ensinado a odiar.

Sacudi a cabeça, tentando evitar que aquele raciocínio me impedisse de cumprir meu dever.

— Vamos lá, humano… - ergui a manopla – não posso te deixar prosseguir!

Já retraído, o menino encolheu-se ainda mais quando as labaredas de meu muro de fogo o cercaram, acuando-o contra as paredes do jardim.

— Não! - ele ergueu a frigideira, num mero reflexo de autodefesa – não quero lutar! Não quero machucar ninguém!

Irritado pela sua falta de reação, invoquei outra amurada de chamas, que por pouco não incendiaram parte de seu braço encolhido.

— Revide, humano! - ordenei – lute comigo!

Uma das coisas que a Guarda Real sempre estimava era a dignidade de um confronto, estabelecida principalmente pela igualdade de oportunidades durante a batalha. E aquela criança estava quebrando todas estas regras, me deixando absolutamente desconcertado.

E ridiculamente desarmado, de certa forma.

Uma luta sem revide jamais poderia ser justa.

Parei de lançar minha magia, esperando que o menino finalmente me confrontasse. Àquela altura, já deveria saber que teria que lutar se quisesse me vencer.

A criança baixou a frigideira, me encarando fixamente.

E então, chocando-me ainda mais, jogou a frigideira em minha direção.

O utensílio desabou com um estrépido diante de mim, quase servindo como um alarme que despertou-me para o absurdo da situação.

O menino humano estava me poupando.

Baixei a manopla, ofegante, vendo-o dar dois passos tímidos em sua direção. Pela primeira vez, notei sua expressão anormalmente simpática e amigável.

— Seus golpes são muito bons – ele abriu um sorriso fraco – você tem talento, moço!

Aturdido, retraí o focinho. O que diabos aquele rapazinho queria me adulando daquela forma?

No entanto, pasmo, havia percebido toda a sinceridade em sua voz. Ele realmente estava elogiando minha forma de combate, como se banalizasse totalmente o perigo que eu representava para ele.

Eu já não podia mais enfrentá-lo depois daquilo.

Nenhum humano deveria ter tanta… bondade.

Finalmente desmanchei minha posição de batalha, inclinando a cabeça em sua direção.

— Então… você não quer lutar.

— Não, senhor – ele balançou a cabeça em negativa – só quero ir para casa. Mas não vejo problema se eu tiver que ficar por mais tempo…

Indeciso, olhei ao redor. Não havia nem sinal de Asgore, cujos afazeres o haviam distanciado para o interior do castelo.

Eu não podia deixar aquele garoto ali. Se ia mesmo poupá-lo, precisava mantê-lo seguro, longe dos olhares de qualquer outro monstro.

E depois, precisava entender mais sobre aquele pequeno humano, que me perturbava de forma tão peculiar.

— Tudo bem – arquejei, tomando a decisão mais crítica de minha vida – venha comigo.



Sempre escondido, oculto dos demais monstros, o garoto pernoitou em meus aposentos naquela noite.

E na seguinte.

E em muitas outras.

Foi tempo o bastante para eu conhecer cada vez mais aquele estranho filhote de humano, cuja história era bem mais complexa do que eu jamais poderia ter imaginado.

O nome dele era Alekey.

Era filho de um cozinheiro humano, e havia herdado a mesma paixão pela culinária. Os pais haviam morrido recentemente de uma terrível doença, e ele havia fugido dos tios que o maltratavam, caindo dentro de Underground, numa tentativa de recomeçar a vida.

Ele pareceu surpreso quando lhe contei sobre como Asgore havia me adotado como filho.

De certa forma, nós dois éramos parecidos naquele sentido – ambos crianças deslocadas, cujas existências quase ninguém tivera a chance de conhecer. Dois solitários, em busca de um objetivo na vida, procurando o rumo de suas próprias histórias.

— Ele deve se orgulhar – me disse sorridente – você é um guarda incrível!

— Obrigado – agradeci, um tanto sem graça – você devia conhecê-lo qualquer hora. Ele é bem mais simpático e habilidoso do que eu… - suspirei – tenho certeza que ele vai entender… e não vai te machucar quando ver que não é uma ameaça pra ninguém. O que acha?

O sorriso dele desapareceu com a rapidez de um dique rompido.

— Ainda não – disse em tom baixo - o momento certo vai chegar…

Não compreendi o que ele havia querido dizer com aquilo. Era fato que conhecer o rei dos monstros - cujo povo havia sido banido por seus ancestrais para uma vida abaixo do solo – não era exatamente algo fácil de se fazer. Mas não havia motivo para qualquer receio. Afinal de contas, ele estaria comigo, e eu poderia tranquilizá-lo.

Asgore compreenderia que Alekey jamais faria mal a ninguém.

Ele entenderia.

Papai tinha que entender….

— Um dia, então?

Alekey me sorriu novamente, de uma forma estranhamente triste.

— Um dia.

Se eu tivesse tido algum presságio do que ocorreria no futuro, talvez jamais tivesse deixado que aquela criança se tornasse uma parte importante da minha vida.

Por que o Destino, torturador insaciável, tinha outros planos para nós dois.