NITCH



Eu adorava a Vila Temmie. Suas paredes rústicas, o gotejar suave da água do rio que cortava a caverna. As eventuais coisas perdidas, que surgiam em meio às marolas do pequeno lago. Tudo me fascinava.

Durante cinco longos anos, fui criado em meio aos Temmies.

Mesmo tão diferente deles, era tratado como um membro daquela vasta família de criaturinhas alegres.

Ninguém me julgava por ter a fisionomia de um pequeno cabritinho branco navajo – nem mesmo quando pequenos chifres começaram a despontar acima de minhas longas orelhas. Na verdade, por alguma razão, As Temmies e Bob me adoravam.

— Nitch, Nitch! - costumavam me chamar para brincar, saltitando pelos corredores da caverna – Temmies querem brincar!

Não eram exatamente o melhor modelo de mães adotivas responsáveis. Mas havia muito amor e carinho ali. E aquilo parecia me bastar. Bob, ao contrário do que se esperaria, havia se tornado meu melhor e mais achegado amigo – um exemplo de seriedade e boas orientações, em meio à eterna e impune alegria da vila.

Infelizmente, tudo aquilo não tardou a mudar.



Um dia, vi uma das Temmies transitando apressadamente entre a caverna e um grande buraco na parede. Confuso, em minha curiosidade infantil, havia seguido-a para dentro da misteriosa abertura.

— Temmie? - coloquei-me na ponta de meus pezinhos, tentando enxergar acima de uma grande caixa de papelão, com os dizeres “Loja Tem” - o que está fazendo?

— Hoi, Nitch! - a monstrinha apareceu em cima da caixa, sorrindo para mim – Temmie vai fazer Tem Shop!

— E pra quê? - ri, vendo todas as quinquilharias que já se encontravam empilhadas na pequena “loja”. Tinha certeza de que Temmie as havia recolhido da cachoeira da vila.

A cachorrinha sacudiu a cabeça.

— Pra fazer facul… Temmie quer se formar!

— O que é facul?

— Nitch?

Virei-me, vendo Bob na entrada da loja.

— Bob! - alegrei-me, indo abraçá-lo – você viu? Temmie está fazendo uma lojinha!

Para meu humor, Bob parecia exasperado com a conduta inusitada de sua vizinha, batendo ritmicamente a pata no chão, em gesto de impaciência.

— Você sabe que ninguém vai vir comprar nada aqui. Não é, Temmie? – ele revirou os olhos, bagunçando o tufo de pelos em minha cabeça com a outra patinha.

Temmie mal se alterou, dando de ombros.

— Temmie vai se virar – vi-a remexer dentro da caixa, retirando dali, para minha felicidade, uma caixa fechada de Temmie Flakes – presente pra Nitch!

— Oba! - abracei a caixa, pulando de animação – vem, Bob! Vamos comer!

Saímos do buraco, indo até a beira do lago. Bob me acompanhou, sentando-se ao meu lado, parecendo divertir-se em me ver batendo as patas na água.

— Que fome – sorri, abrindo o pacote com minhas mãozinhas – quer um, Bob?

— Obrigado, Nitch – o cãozinho soltou uma risadinha – as outras Temmies já me ofereceram. E digamos que não consegui recusar.

Nós dois rimos, enquanto o som da cachoeira ecoava ao longe.

— Que delícia – enfiei vários flocos na boca, mastigando avidamente.

Permanecemos por um tempo em silêncio, enquanto eu devorava quase todos os Temmie Flakes do pacote.

No entanto, hesitei em um momento, parando um dos flocos a meio caminho da boca.

— Bob…

— Sim, Nitch?

Encarei-o, receoso. Nunca havia perguntado aquilo antes… e, por um momento, a perspectiva de ouvir a resposta me apavorou.

— Eu sei que não nasci Temmie – suspirei – então… o que eu sou? Quem era minha família?

A caudazinha de Bob sacudiu-se contra o chão, um movimento que ele só fazia quando estava inseguro.

— Encontramos você aqui, Nitch – debruçou-se sobre a margem do rio – você era apenas um bebê… não sabemos nada sobre quem te deixou aqui… ou o que aconteceu com seus pais – sua cabeça envergou para o lado – mas já vi monstros parecidos…

— Aonde? - ofeguei.

— Monstros grandes, Nitch – gracejou – normalmente são… da família real… ou da Guarda Real. Mas você pode ser de outras famílias também – baixou as orelhas – um dia, quando for mais velho… - me deu um tapinha nas costas – poderá sair daqui… e descobrir a verdade por si mesmo.

Pensativo, sentindo meu coração saltitar dentro do peito, voltei a mastigar meus flocos.

Algo duro bateu contra o meu pé, que se encontrava dentro da água da margem. Intrigado, baixei uma das mãos, apanhando o que quer que tivesse se chocado contra meus dedos.

Retirando o braço da água, percebi que segurava algo estranho, de forma cilíndrica, feito de vidro. Dentro do objeto, selado por uma pequena rolha, encontrava-se um tipo de líquido grosso e escuro, de cheiro chamativo.

Vendo que Bob estava distraído, bocejando com vontade ao meu lado, desarrolhei o pequeno frasco. O aroma aumentou. Um cheiro forte, estranhamente apetitoso. Assemelhava-se muito ao de um molho picante.

Tendo a súbita ideia, querendo experimentar daquilo, apanhei mais um pouco de Temmie Flakes, jogando todo conteúdo do frasco em cima deles.

Apanhei um dos flocos ensopados, colocando-o na boca e mastigando com vontade, engolindo-o em seguida.

Por fim, Bob pareceu reconhecer o cheiro incomum, virando-se bruscamente na minha direção, os olhos saltados de pavor.

— Nitch! NÃO!

Senti uma queimação terrível dominar todo o meu corpo, como se agulhas em brasa perfurassem cada centímetro de minha pele. Engasguei, caindo de borco na água, convulsionando de dor.

— B-Bob…!

A água entrou por minha gargante, gélida e impiedosa, intensificando o fogo. Minha respiração foi violentamente interrompida pela pressão que se chocava contra meu focinho. Sufocando, sentindo-me incendiado por dentro, não conseguia voltar à superfície.

Ouvia, ao longe, Bob gritar desesperadamente meu nome. Mas a escuridão trouxe um torpor terrível, do qual não consegui fugir.

A escuridão se manteria por um longo tempo. Mais do que um pequeno monstrinho, preso dentro de sua própria mente num terrível coma, poderia ter sido capaz de compreender.

Aquele acidente mudaria tudo.

E eu sofreria os efeitos colaterais de ter ingerido aquele maldito frasco de Determinação.

Ironicamente refugado, naquele mesmo dia, pelas mãos da monstra que acabava de deixar Waterfall, inconsciente das consequências de seu ato de desespero.