NITCH



Depois do que pareceram eras, ouvi uma movimentação incomum do lado de fora da Nova Casa.

Suspirando, tomei a manopla em minha mão.

A sentia vibrar consideravelmente, como se o próprio armamento já previsse – e receasse – o confronto que se avizinhava;

Não tive pressa alguma em deixar as dependências de meus aposentos. Abri a porta lentamente, logo em seguida fechando-a atrás de mim, caminhando lentamente em direção à entrada cinzenta do castelo.

Cabisbaixo, flexionando lentamente os dedos dentro da manopla, ouvi passos suaves e hesitantes se aproximarem daquele local.

Um misto de impetuosidade, compaixão e tristeza pareceu me acometer por completo, antes mesmo que eu reerguesse a cabeça.

Ele era tão ou mais pequeno do que Alekey havia sido. Cabelos curtos e acastanhados. Rosto suave e sereno.

Suas pernas encontravam-se levemente trêmulas. Ainda havia sangue escorrendo de sua pequena bochecha – certamente, um dos ferimentos que Mettaton havia lhe causado, e que ainda não havia tido tempo de curar. E uma expressão mista de expectativa, medo…

E determinação.

Era evidente que o garotinho não havia chegado tão longe para desistir agora.

Não podia mentir a mim mesmo. Eu admirava aquilo, de verdade. Toda a persistência, coragem e bondade que aquela criança havia demonstrado até agora.

E isso só tornava ainda mais doloroso o fato de eu ter que cumprir com meu dever.

— Humano… - sussurrei, fazendo com que ele levantasse o queixo para cima, encarando-me com temor – acho que sabe o que deverá ser feito agora, não é?

O rapazinho virou o rosto por um momento, entristecido.

— Eu não quero machucar ninguém.

— Eu sei – ele pareceu surpreso com minha concordância – e você poupou a vida de inúmeros monstros… incluindo a de Aayrine – ergui o braço contra o peito – por isso, lhe darei a opção de se entregar… e eu garanto que não haverá necessidade de mais sofrimento. O rei e eu não queremos lhe fazer mal… - um nó formou-se em minha garganta – mas tampouco podemos deixar que deixe o subsolo… precisamos de sua alma. É tudo que nos falta para sermos livres.

Ele sacudiu a cabeça, desamparado.

— Eu não posso – ofegou – eu tenho que voltar para casa.

Aprumei-me, fazendo minhas orelhas rebaixarem-se atrás da cabeça.

— Então… você não me deixa escolha – empunhei a manopla – se quer chegar ao rei… terá que derrotar seu guarda pessoal – senti uma emoção sombria tomar conta de mim – e jamais deixarei que nenhum humano passe por mim outra vez!

Meus ataques surgiram tão rápido que a criança quase não teve tempo de se esquivar.

O menino gritou, erguendo os braços para tentar se defender das chamas que o cercavam. Esgueirou-se pelas esferas de fogo que eu lançava, aproximando-se com uma expressão de premeditado arrependimento.

Desencorajado por tudo que havia ouvido, foi com choque que senti o menino golpear-me no dorso, fazendo com que eu caísse por um momento.

Me levantei rapidamente, imaginando que havia apenas perdido o equilíbrio.

Foi quando senti uma dor lancinante perto do ombro esquerdo, exatamente no ponto desprotegido de minha armadura.

E então baixei o olhar, focalizando, atônito, uma velha adaga na mãozinha trêmula do garoto.

— Sinto muito – desculpou-se, parecendo realmente arrasado pelo que havia feito.

Balançando a cabeça, retraí o focinho por um momento, resfolegando.

— Acho justo – sibilei – afinal… apenas um de nós sairá daqui vivo – segurei o local ferido – era de se esperar que você lutasse por sua vida… já que poupou a dos demais…

Aproveitando sua distração, lancei outra vez uma parede de chamas atrás do humano, que recuou consideravelmente, evitando uma séria queimadura em seu dorso.

— Por favor… pare! - suplicou, conforme tentava atacar, em cada uma das brechas que encontrava em meus ataques.

Grunhindo, continuei a conjurar as chamas, em tentativas desesperadas de alvejá-lo de uma vez, reduzindo assim o sofrimento que eu poderia lhe causar com o prolongamento da luta.

Contudo, a criança era razoavelmente ágil, e não demorou para que - em tantas aberturas que havia tido durante a batalha – ele tivesse voltado a me atingir uma quantidade razoável de vezes, fazendo com que a dor começasse a retirar parte de minha concentração.

No fundo, não o culpava. Era de se esperar, já que eu havia garantido que só deixaria o seu caminho se fosse derrotado.

Eu que não havia lhe deixado opção, no fim das contas.

Mas quando, em um momento, ele fincou velozmente a adaga contra meu abdômen, entre os fitilhos que sustentavam parte de minha armadura, não pude impedir que um laivo de fúria se resvalasse por minha mente.

Tentei revidar, mas a dor finalmente havia se irradiado por todo o meu corpo, tirando-me o ar e todas as forças.

— Ahhhhh… - caí de joelhos, dobrando-me, com a manopla repousada sobre o sério ferimento que havia recebido – d-droga…

Contraído de dor, senti o garoto aproximar-se de mim, com a adaga baixada, jazendo inerte em sua pequena mão.

Sua expressão estava vazia.

— Ande logo – grunhi, resfolegando, erguendo a cabeça com dificuldade – você venceu… e é digno de estar na presença do rei – rilhei os dentes, com os olhos fechados - acabe com isso, humano. E parta para seu destino…

Reabrindo o olhar, vi-o erguer a lâmina hesitantemente acima de mim. Apenas senti uma estranha serenidade - como se soubesse que havia feito todo o possível.

Baixei o focinho, esperando o impacto que ceifaria minha vida.

Esperei…

Por um bom tempo.

Mas ele nunca veio.

Em vez disso, ouvi outra coisa desabar, a uma considerável distância de meu corpo.

Confuso, voltei a encarar o humano, que balançava a cabeça exasperadamente.

— Eu te disse – murmurou.

E, logo em seguida, contornou-me, seguindo seu caminho ao longo dos aposentos da Nova Casa.

Simplesmente poupando-me – mesmo depois de tudo aquilo - e continuando sua jornada em direção à barreira.

Enfraquecido e confuso, sem acreditar na atitude do garoto, finalmente resolvi averiguar o que ele havia deixado cair diante de mim.

E não consegui conter um misto de choque, humor e alívio.

De fato… ele era digno de estar diante do rei – e de ter uma chance de se salvar.

Era um bife…. com o formato do rosto de Mettaton.

O último item de cura que alguém poderia ter pensado em deixar para trás.