AAYRINE



Me levantei, ainda atordoada, fitando Gabe com um ódio intenso.

Olhei para minha mão, percebendo finalmente o que era o líquido viscoso que escorria de minha boca.

Sangue.

— O que diabos… - grunhi, enfurecida – você pensa… que está fazendo?

Vi o imenso touro abrir um sorriso de escárnio.

— Ora essa, Nacabi… - inclinou o corpo, zombeteiro – até onde nós sabemos, você agora é uma traidora… uma fugitiva da justiça… e cúmplice de um humano – Gabe sacudiu as omoplatas – estou apenas fazendo minha obrigação como cidadão do subsolo… de neutralizar uma inimiga. Seu carisma não funciona comigo… então não terei problemas em acabar com você.

Lancei um de meus espadins incorpóreos contra ele, mas minha visão ainda estava tão turva pelo golpe de Gabe que acabei errando o alvo.

— Se você realmente tivesse um objetivo nobre – grunhi, contraindo o rosto – saberia que o humano não deseja o nosso mal.

Gabe ergueu o focinho – e sua expressão tornou-se fria.

— Se fosse uma verdadeira Guarda Real… - rebateu – o teria matado no mesmo segundo que o viu, e coletado sua alma para libertar os monstros – abriu um esgar cínico – você é uma covarde, Aayrine Nacabi – vi-o baixar o olhar no espadim em minha bainha, erguendo uma sobrancelha – não é digna de usar esta arma… e terá o mesmo destino de sua patética mãe.

Foi o estopim.

As palavras de Gabe fizeram meu sangue ferver.

Impelida por uma força mista de cólera e impetuosidade, bradando um grito de enfurecimento, lancei-me contra ele, desembainhando o espadim de Terso, e girando-o contra o torso do touro.

Por um momento, achei que havia atingido-o, mas frustrei-me, ao ver que ele havia imobilizado a empunhadura no exato momento em que eu devia tê-lo acertado.

Evidentemente, por mais que minha fúria estivesse me sustentando, não era o bastante para derrotar Gabe agora. Estava agindo por impulso, estava cansada – em todos os sentidos – e não havia esperado tamanho obstáculo em meu caminho.

Enquanto ele ainda imobilizava meu pulso, num movimento bruto, senti seu punho golpear agressivamente o abdômen de minha armadura – com tamanha força que as ligas se romperam, deixando-me vulnerável.

— Isso é tudo que pode fazer? - gargalhou – o humano definitivamente te tornou mais fraca do que você já era.

Gritei de dor quando suas garras se afundaram na carne, retirando quase todo o ar de meus pulmões.

— Ahhhhhh…! - me contraí, rilhando os dentes de agonia.

Desorientada e enfraquecida, senti Gabe me arremessar de volta ao chão.

Resfoleguei, convulsionando ao sentir os ossos de meu braço se quebrarem dolorosamente no impacto.

Sentia o sangue empapando o chão abaixo de mim, escorrendo do ferimento profundo que ele havia me causado. Trêmula, mal consegui reerguer a cabeça, enquanto Gabe colocava um dos pés sobre minhas costas, puxando-me violentamente pelos cabelos.

— Não se preocupe – vi-o sorrir sadicamente – vou apenas dizer… que não tive alternativa. Que a vice-capitã da Guarda Real estava fora de si… e que tive que impedi-la de ferir outros monstros – seu sorriso sumiu por completo – diga adeus para seu cargo, Nacabi.

Definhando, fechei os olhos rapidamente, esperando que Gabe finalmente desferisse um golpe fatal contra mim.

No entanto, em vez disso, senti o peso sobre minhas costas desaparecer repentinamente – sendo substituído pelo som de corpos que se chocavam em luta.

Reabri as pálpebras fracamente.

E senti meu queixo se boquiabrir - mesmo sem forças para sequer exclamar.

Aturdida, vi Gabe recuar consideravelmente, pego desprevenido pela cortina de chamas que o cercavam.

Em meio à amurada de labaredas – e lutando como um demônio sanguinário contra Gabe - encontrava-se Nitch.

— Nitch…!

Minha voz não foi ouvida – fosse pela minha própria debilidade, ou pelo crepitar das esferas de fogo que Nitch lançava sobre o touro enraivecido.

— SEU DESGRAÇADO….! - ouvi-o vociferar, golpeando impiedosamente cada centímetro de Gabe com sua manopla.

O touro mal tinha tempo de se defender, recebendo golpe após golpe, revidando a esmo diante da cegueira que o fogo lhe causava.

Com dificuldade, recobri o corte na barriga com uma das mão, tentando me levantar.

— Nitch…! - ofeguei, grunhindo de dor.

Por mais que estivesse sentindo um profundo ódio por Gabe, jamais ia desejar sua morte – e muito menos sem que antes o próprio rei decidisse seu destino.

E sabia que isso causaria uma escuridão na alma de Nitch – assim como sujar minhas mãos de sangue havia causado em mim.

Gabe finalmente cedeu diante dos golpes, caindo de borco contra o chão, arrastando-se com dificuldade para longe de Nitch.

— Seu…!

Vi-o retrair o braço, conjurando uma espada flamejante, cujo gome mirou-se sobre a cabeça já ensanguentada de Gabe.

— Nitch!

Segundos antes de baixar o braço, vi-o congelar-se por um segundo. Gabe virou o olhar em minha direção, debilitado demais para se mover.

— Aayrine…?

— Já chega… - supliquei - por favor….

Por um momento aflitivo, achei que ele ainda o golpearia.

No entanto, em vez disso, fez a espada desaparecer – e plantou um violento soco contra a testa de Gabe, que desabou no chão, totalmente desacordado.

Logo em seguida, senti seus braços cingindo meu corpo, puxando-me para seu colo.

— Ah, Rine… - minha dor pareceu esmaecer, diante do soluço angustiado que cortou sua garganta – eu sinto muito…

Repousei a cabeça sobre seu ombro, vendo-o desenluvar a manopla, e pousar a mão sobre o ferimento em minha barriga.

O tremor diminuiu, conforme ele curava o corte com sua magia, até se esvair completamente.

— Obrigada… - sussurrei, cabisbaixa.

Nitch me fitou profundamente, tomando meu rosto em seus dedos. Lágrimas enormes escorriam por seu rosto.

— Eu… pensei que ia te perder…

Comovida, aproximei a cabeça, permitindo que ele plantasse um beijo em minha testa.

— Deve estar me achando uma fracote… - tentei rir, mas tudo que consegui foi sentir outra fisgada dolorosa.

— Não – sua expressão tornou-se séria – na verdade… - ele tocou a bainha de meu espadim – não consigo ver uma pessoa mais adequada… para usar esta espada.

Sacudi a cabeça.

— Como você chegou…?

— O humano me poupou.

Senti um meio sorriso se abrir em meu rosto.

— Parece que minha ligação veio a calhar… no fim das contas….

Seu olhar tornou-se anuviado por alguns segundos.

— Aayrine… eu…

Tapei sua boca com os cascos.

— Não diga nada que você não diria… se eu não estivesse quase morta nos seus braços… - mordi o lábio – vai estragar o momento….

Nitch retraiu o focinho.

— Cale a boca, Aayrine.

Desta vez, eu quis que ele se aproximasse. Que me abraçasse apertado contra seu corpo. Que me beijasse outra vez – agora, com uma profundidade e urgência quase palpáveis.

Sentia meu coração batendo rápido. Era quase doloroso – a dor mais deliciosa que eu já havia sentido em toda a minha vida.

Ele só recuou, ofegante, quando o ar tornou-se a maior necessidade.

— Hem, hem.

Nos viramos, assustados, enquanto Dogamy e Dogaressa se aproximaram.

Nitch fez menção de abaixar o braço, mas Dogamy ergueu as patas, num gesto de rendição.

— Olha… com certeza vamos nos arrepender disso depois… - o monstro suspirou – mas vamos dar carta branca para vocês… - apontou com o polegar para o corpo inerte de Gabe atrás de si – e… vamos manter seu amigo no cárcere até a segunda ordem…

— Melhor levar nossa vice-capitã para o castelo – Dogaressa sugeriu – ela está ferida… realmente precisa descansar….

Levantando-se, ainda comigo em seus braços, Nitch assentiu.

— Obrigado – agradeceu – de verdade.

— Se apressem – disse Dogamy – o humano está quase chegando na barreira.

Depois de ter sido içada com segurança, aninhei-me nos braços de Nitch, sentindo que ele me levava para longe da divisa do Núcleo.

— Para onde vamos agora…? - indaguei, receosa.

Ele voltou a me fitar, dando um leve sorriso.

— Para o futuro, Rine – suspirou – de uma forma ou de outra, a partir de agora… faremos o nosso futuro.

E continuou a correr em direção ao castelo.