NITCH


Pela janela da torre do castelo, via todos os monstros transitarem abaixo de mim, como pequenos pontinhos apressados, subindo e descendo as estradas de Hotland e do Núcleo.

Havia começado uma comoção em todo o subsolo. Todos preparavam suas coisas para, depois de uma vida inteira, finalmente deixarem o subterrâneo, e desfrutarem da liberdade recém-adquirida na superfície.

— Tudo pronto, Nitch? - Asgore apareceu na fresta da porta, sorrindo levemente.

— Quase, pai - murmurei, distraído - só falta eu verificar se não falta mais nada nas malas.

— Estaremos esperando vocês na fronteira - assentiu - tome seu tempo, filho.

A porta fechou-se, enquanto eu voltei-me para a sacada, admirando saudosamente o horizonte.

Eu ainda não conseguia acreditar.

Finalmente estávamos livres. Finalmente havíamos conseguido tudo que queríamos. Podíamos construir um novo futuro e ver nosso povo prosperar outra vez, novamente podendo caminhar sob a luz do Sol.

E tudo isso sem causar mais mortes e sofrimento. Graças àquele incrível garotinho, que havia praticamente salvado nossas vidas.

Suspirei, sentindo um sorriso surgir em meu rosto.

Era hora de brindar um novo recomeço.

Ouvi a porta abrir-se outra vez, enquanto ainda estava debruçado no parapeito, fechando os olhos por um longo momento. Ouvi o som familiar das correias sendo trancadas.

Senti um braço suave e familiar cingir minhas costas.

— É… incrível - ouvi-a ofegar - nós realmente conseguimos.

Havia tanta coisa presa dentro de mim que temia seriamente que aquele turbilhão de emoções fizesse meu peito explodir.

Voltei-me para trás, vendo a expressão enternecida de Aayrine.

Seus olhos estavam estreitados pelo esgar de seu imenso sorriso, fazendo com que suas íris carmim rutilassem como pequenos rubis. Era totalmente diferente da expressão intensa da guerreira forte, destemida e ousada com que eu havia me acostumado a deparar.

Ela era linda.

Como eu nunca a havia visto daquela forma antes?

Adiantei-me, aninhando parte de seu rosto em minha mão.

— Aayrine… - sacudi a cabeça - a vida inteira eu senti que faltava algo dentro de mim. Eu tinha uma boa família. Amigos incríveis. Um povo pelo qual lutar. Mas nunca entendi o que era que eu tanto procurava… - inclinei a cabeça, sorrindo - mas agora… agora eu sei.

Aayrine reclinou o canto do rosto contra minha palma.

— E o que era..?

Acariciei seus cachos louros, sentindo meu corpo estremecer.

— Alguém para me completar.

Suas orelhas se retraíram, enquanto Aayrine arquejava alto, o olhar tornando-se repentinamente brilhoso de tanta emoção.

— Nitch…

Era demais pra mim. A experiência de quase morte. O medo de perdê-la. Todas as inseguranças que haviam me invadido nas últimas semanas. Os momentos que havia passado com ela.

Abracei a cintura de Aayrine repentinamente, como se algo extremamente forte e voraz tivesse tomado conta de meu corpo.

Ela mal enrijeceu quando nossas bocas se encontraram.

Contudo, para minha surpresa, a senti retribuir avidamente, prendendo-se contra meus ombros, resvalando-se contra meu focinho de maneira quase faminta.

Embora aquele ímpeto não fosse racional, eu não tinha nenhum mínimo desejo de parar.

Minhas pernas bambearam, me jogando adiante, impelindo o corpo de Aayrine contra uma das paredes do quarto.

Senti suas patas agarrando-se contra meu cabelo, sem que ela desse o mínimo sinal de querer interromper o beijo.

Infelizmente, a falta de ar, traiçoeira, forçou nós dois a nos separarmos por um momento.

Encarei-a por um segundo, ofegante.

E senti minha espinha gelar, vendo o anuviado cheio de luxúria em seu olhar.

— Ainda bem… que eu decidi trancar a porta…

Antes que eu sequer processasse, Aayrine voltou a se inclinar, me beijando outra vez.

Num misto de medo, euforia e desejo, senti minhas mãos passearem por seu corpo gentilmente, desfazendo-se aos poucos de sua vestimenta, enquanto Aayrine desafivelava ansiosamente as amarras de minha armadura.

Ergui suas mãos, entrelaçando nossos dedos, baixando a cabeça e suspirando sobre seu ombro.

— Está com medo…?

— Não - sua resposta foi curta, objetiva e intensa - eu quero isso - ela mordeu o lábio, num tom de voz súplice e carinhoso - eu quero isso, Nitch…

Foi ali que minhas dúvidas acabaram. Aayrine podia ter escolhido desistir em qualquer momento.

Mas havia sido Aayrine que havia fechado a porta. Havia decidido aquilo antes mesmo que minha mente turva e meu corpo trôpego tivessem sequer cogitado a ideia.

Como dizer não?

Ainda mais quando eu a queria tanto quanto ela desejava a mim?

Só havia uma resposta a ser dada.

E quando ela puxou-me em direção a cama, percebi que, no fim das contas… eu jamais quisera dar qualquer outra.



— Já sabe o que vai fazer na superfície?

Ainda corado, retomando aos poucos á minha respiração normal, virei-me na direção de Aayrine.

Ela estava tão graciosa, encolhendo-se de vergonha sob o lençol, com a cabeleira dourada esparramada sobre o travesseiro. Parecia, mais do que nunca, uma garotinha encabulada.

— Já - brinquei, sorrindo - me casar com você.

Seu olhar se arregalou, e ela sacudiu a cauda como um chicote, nitidamente impactada.

— Seu idiota! - socou meu ombro de leve, ficando enrubescida.

— Ué… por que não? - apontei com a cabeça para o colchão - já tivemos até a lua de mel - diante da expressão paranóica dela, resolvi pegar mais leve, segurando o riso - ok, não vai ser agora. Quem sabe mais pra frente.

— Como se você fosse mesmo - resmungou, contraindo o focinho.

Senti minhas orelhas de Temmie se eriçarem.

— Aayrine Nacabi - segurei seu queixo - filha de Terso Nacabi… eu não vejo nenhum motivo pra não passar o resto dessa minha existência ao seu lado. Você é a garota mais cabeça-dura, teimosa, corajosa, altruísta e incrível que qualquer cabrito-neko poderia conhecer em toda uma vida - soltando-a, segurei sua mão, beijando suavemente o dorso dela - eu te amo… e se você continuar teimando nisso, eu juro que não vou descansar até lhe dar o meu sobrenome.

Aayrine sacudiu a cabeça, parecendo conter um largo sorriso.

— Você não leva mesmo jeito, Buster.

Ri baixinho, plantando outro beijo sobre sua boca.

— E você devia reconhecer uma batalha perdida quando a vê, Nacabi.

Um som alto nos sobressaltou, vindo de cima do gaveteiro do quarto.

Atônitos, olhamos na direção do ruído - sentindo o rubor já intenso aumentar ainda mais, assim que reconhecemos a silhueta despreocupada do esqueleto sentado sobre ele.

— Opa… acho que me teletransportei pro lugar errado - vendo Aayrine a beira de um colapso furioso, Sans apressou-se em dizer - espero não ter atrapalhado nada… - embora ainda estivesse com seu característico sorriso, ele finalmente aparentou perceber o risco de vida que ia correr se continuasse ali - já vou indo. Até mais.

Assim que Sans desapareceu, Aayrine caiu com o rosto sobre o travesseiro, sufocando gritos histéricos sobre ele.

— É… - sorri amarelo - acho que nossa despedida secreta ao subterrâneo já não vai ser mais tão secreta nos próximos minutos.

— Ah…. vai ser sim - ela ergueu a cabeça, murmurando - a não ser que certo esqueleto idiota viciado em ketchup queira ser empalado no topo do Monte Ebott assim que formos para a superfície.

— Lança da Undyne?

— Não - ela contraiu o rosto, num esgar falsamente psicótico - manopla de prata.

— Ahhhh - fingi gemer de dor - essa doeu no meu quadril.

— E vai doer muito mais na pélvis dele - resmungou.

Gargalhei.

— Já falei que você fica linda quando está nervosinha?

— Já - Aayrine revirou os olhos, rindo - cabrito besta.

— Carneira boba.

Eu nunca havia me sentido tão feliz e vivo num período tão curto de tempo. Havia feito um amigo improvável. Conseguido a liberdade com que tanto havia sonhado. Feito a coisa certa. E encontrado o que eu havia procurado durante uma vida inteira - amar e ser amado incondicionalmente por alguém que completava minha alma, de todas as formas possíveis.

Não sabia o que o futuro nos reservava.

Mas uma coisa era certa.

Neste e no novo mundo, naquela vida e em qualquer outra, onde quer que Aayrine estivesse, era lá que eu iria estar.