O Colar do Parvo

Quarta fase de treinamento


– Kayo, acorde! – disse Kau ao meu ouvido. Eu estava tão pensativo, que acabei pegando no sono e nem ao menos percebi.

– Eu já estou acordando!

– Isso é bom, estou indo para a quadra, te espero lá.

– Está bem.

Kauvirno saiu e eu fui lavar o rosto. Peguei o colar e o coloquei no pescoço, sai e fui até a quadra. O caminho não era os dos mais convidativos. Um longo corredor de rocha que ia e vinha, mesmo com vários archotes acesos pelo caminho, caminhar ali sozinho dava medo. Cheguei a uma porta e passei por ela, caminhei um pouco mais e cheguei à quadra. Ali estava Kauvirno, segurando seu cajado e olhando para estrelas. Eu me aproximei um pouco mais.

– Que bela lua nós temos hoje! – disse, fascinado – Uma grande amante dos homens em terra e excelente fonte de regeneração de poder aos bruxos. É através dela que carregamos nossas forças, não nego que uma boa dose de conhaque, ajude também.

– Então Kau, o que temos hoje? Como será essa tal quarta fase de treinamento.

– Sim Kayo, antes de tudo me lembre, quais foram as três fases passadas?

– Bem, a primeira eu tive que aprender e controlar a potencialidade dos feitiços. Conjurações, dependendo da vontade de quem a conjura, pode ser única, porem de variadas formas e potências. Podemos encantar um lobo para que seja nosso amigo, e ao mesmo tempo para que mate se assim nós quisermos.

– Sim, continue.

– A segunda foi o transporte, saber ir e vir quase que na velocidade do som, já que da luz é algo impossível.- eu disse rindo - Poderíamos estar em dois lugares ao mesmo tempo se assim quisermos. O que eu aprendi foi saber localizar aonde o oponente vai estar para poder atacá-lo. A terceira fase, foi a mais difícil, saber diminuir a força do oponente em relação ás conjurações que ele faz e evitar que o oponente se transporte, evitando assim que você morra.

– Isso, foi quando você queimou as árvores... – disse Kauvirno rindo – no entanto Kayo, se achou a terceira fase difícil, não sabe o que esta para vir. Você sabe, como eu bem disse, que um bruxo, obviamente precisa saber de muitas coisas, precisa estar sempre estudando novos feitiços e magias para que possa sempre estar prevenido do ataque de outro bruxo. No entanto você precisaria de pelo menos quinze anos para começar a duelar com alguém.

“Mas nós não temos tanto tempo disponível, apesar de estarmos nisso há quase dois anos. Com essas quatro fases, que eu separei a você, pelo menos eu entendo em minha sã capacidade, que seja o essencial para que você consiga lutar. Sua demonstração de poder, tanto naquele dia na mansão dos Taurinos, como no túmulo de Átimos, que foi o mais forte desde então, foi algo realmente especial. Talvez você não tenha morrido por sorte. No entanto, eu acredito que com essas fases, você pode ter mais controle das coisas que irão estar acontecendo em sua volta.

Veja bem, a quarta fase, não é algo fácil, até hoje você apenas conjurou o fogo, porem hoje ira conjurar água, ar e terra, separadamente e depois irá conjurar os soldados de cada elemento.”

– Kau, isso é loucura...

– Loucura é você tem um artefato mágico que metade dos bruxos do mundo inteiro gostaria de ter em mãos, e você não tentar. Não quero saber de choramingos Kayo, apenas faça. Concentre e faça. Se tiver controle dos quatros elementos, o seu poder será inimaginável. Então vamos, feche os olhos e se concentre e peça ao colar ajuda. Jamais se esqueça de que ele o escolheu você para ser seu guardião.

Eu não podia sentir nem demonstrar medo, pelo menos não para Kauvirno. Aquela figura ficou ali em minha frente, sumindo lentamente, conforme eu fechava os meus olhos. Respirei fundo. Para conjurar o fogo era fácil, apenas sentir raiva ajudava e muito. Pensei rapidamente no que poderia sentir para conjurar algum dos outros elementos. Respirei fundo novamente, e eu senti o colar pesar em meu pescoço. Milhares de figuras foram aparecendo em minha mente, e ao mesmo tempo em que outras iam desaparecendo. Elas eram rápidas em suas formas variadas e disformes, minha cabeça começou a doer freneticamente, eu tentei varias vezes abrir os olhos, mais isso se tornou impossível. Foi então que uma imagem se estabilizou.

Eu pude me ver, deitado na grama, com Júnior, riamos como bobos. Lembrei que aquela cena realmente aconteceu. As imagens eram lembranças, logo percebi.

Nossa, olha aquela nuvem? - disse Júnior.

Parece um avestruz com rabo de cachorro. – eu comentei, rindo.

Você tem uma imaginação tão fértil. – disse ele, calmamente.

E eu nem preciso usar aquelas coisas para ter uma imaginação dessas... você deveria parar. – eu sentei e olhei para Júnior, que permaneceu deitado.

Vai começar o sermão!

Não é isso Júnior, você tem noção que você esta estragando sua vida, usando essas coisas? Depois que você conheceu esse tal de Arthur, sua vida mudou estranhamente, você vive colado nele, sai pra cima e pra baixo com ele, e pior, ele fica te levando para esse caminho escuro.

– Você está enciumado, Kayo!

– Sim, eu estou por demais enciumado. Eu perdi um grande amigo, por ervas verdes que te deixa louco.

– Kayo, eu estou aqui agora com você, e não estou loucão, está bem? – disse ele, sentando. Ele estava com raiva e sempre ficava quando eu comentava isso.

Eu não entendo porque você faz isso, aquela menina não vale um terço do você merece.

– Por favor Kayo, não me fale dela.

– Desculpa!

– Me dá um beijo que eu desculpo. – disse ele rindo.

Vai tomar banho... eu não vou te beijar.

– Ah! Só um beijinho... - ele se jogou em cima de mim e começou a me fazer cócegas. Depois de algum tempo ele parou e me olhou – Eu me sinto tão bem em ser seu amigo... você realmente é uma das coisas mais importantes na minha vida.

– Se eu sou assim tão importante, então pare com isso... esqueça esse garoto, o Arthur.

Ele ficou ali me olhando durante algum tempo. Eu senti lágrimas escorrerem dos meus olhos. Lembrava-me exatamente daquele dia. Uma quarta feira, depois da aula, estávamos no bosque Santa Rita, lugar aonde sempre íamos quando queríamos ficar sozinhos. Júnior, depois que havia terminado com Adriana, e ela se mudou para outra cidade, mudou completamente seu comportamento. Foi quando conheceu Arthur, um menino meio que barra pesada, que apresentou as drogas a Júnior, que achou naquilo, uma fuga de suas tristezas. Eu, e Arthur éramos os únicos que sabíamos que Júnior usava drogas, mas todas às vezes quem segurava Júnior era eu, mantendo-o de cabeça fria para não fazer nenhuma besteira enquanto estivesse sobre o efeito das drogas. Lembrei-me que depois daquele dia, no dia seguinte, iríamos ter a tal gincana na escola, essa gincana que mudaria a minha vida completamente.

– Kayo, abra os olhos. – eu ouvi uma voz ao longe – Você conseguiu, conjurou água. – era Kauvirno.

Ao abrir os olhos eu vi água em volta de mim, me circulando e fazendo um som parecendo como de uma cachoeira. Alguns pingos dela de vez em quando batiam em mim, e eu percebi que a água era gelada.

– Kau, eu não sei se vou agüentar muito tempo...

– Concentrem-se, conjure os soldados de água...

– Não dá!

– Concentra-se...

Eu não aguentei, e aquele círculo de água se dissipou no ar, transformando-se em poeira.

– O que foi isso? – perguntou Kauvirno.

– Você pediu para conjurar algo, eu conjurei água.

– Não sou cego, eu vi o que você conjurou. Mais pelo que percebi a sua água virou terra, sumiu como poeira sendo levada pelo vento.

Eu não tinha percebido o que de fato tinha acontecido.

– Você acabou de conjurar, terra, água e ar. Foi uma demonstração bem, leviana de poder, mesmo assim você conseguiu conjurá-las de forma que se misturassem, de que se unissem. Realmente isso foi mágico. Excepcionalmente lindo. Vamos treinar mais e mais até que você consiga conjurar os soldados.

Passamos cerca de quatro horas ali, eu já estava esgotado. Sempre que eu fechava os olhos aquela cena de mim e de Júnior na grama vinha a minha frente, como a cena de um filme que toda hora ia-se repetindo. Kauvirno não tolerava, eu não conseguia conjurar os soldados e até que pelo menos um deles toma-se apenas a forma de um homem, ele não iria me deixar em paz.

Quase amanhecia quando ele disse que já era tarde.

– Agora que você percebeu, Kau? – eu disse, me jogando no chão e logo apagando.

Quando eu acordei, eu estava na cama e bem agasalhado. Naquele dia chovia muito, e eu sabia que mesmo assim Kauvirno não iria me dar sossego. Depois de almoçarmos, e descansar mais um pouco, ele pediu para eu voltar para o centro do campo, e treinar mais um pouco. Com a chuva, ele pedia para eu tentar mudar seu curso, nenhuma gota de água poderia cair no circulo que ele fizera em volta de mim. Obviamente que a água da chuva caiu diversas vezes no circulo mais como eu percebera que a terra, eu já conseguia movimentar com facilidade, quando a água pingava dentro do circulo, eu fazia uma leve brisa soprar terra aonde tinha caído a água.

Assim durou quase quatro dias, e eu já conseguia conjurar o soldado de terra e o de fogo juntos, e Kauvirno não meu deu descanso enquanto o soldado de água não apareceu. Era um processo bem árduo, e me deixava louco com uma terrível dor de cabeça, e dor no pescoço, sendo que a cada dia o colar ficava cada vez mais pesado.

– Vamos Kayo, não temos tempo para você reclamar de dor...

–Kauvirno, você noção de quanto isso dói?

– Sim, eu tenho, não se esqueça de que eu já passei por isso.

Ele era incansavelmente insuportável e aquilo já estava me irritando. Aquele dia eu tinha que conjurar todos os soldados e terminar com aquela tortura. Eu não aguentava ficar tanto tempo longe de Matheus, e de meus pais. Às vezes eu me distraia pensando no que eles poderiam estar fazendo. E outras vezes me vinha os olhos azuis de Matheus me velando pela manhã, esperando eu acordar.

Já amanhecia quando enfim, eu consegui. Ali, me circulando, estavam um soldado de cada elemento. Eles eram humanoides e pareceram, pelo menos a mim, ter espontaneidade no que faziam. O de fogo sentou, o de água pareceu olhar para o céu, o de terra, que era apenas poeira caminhava de um lado a outro e o de ar voava, este apenas via uma silhueta voando. Aquilo exigia muito de mim, e agora eu entendo, a preocupação de todos, se caso acontecesse de eu conjurar todos os elementos juntos. Eu acabei desmaiando e quando acordei já era tarde da noite.

– Ainda bem que acordou, eu já estava ficando preocupado com essa demora. – disse Kau – Se sente melhor?

– Meio tonto, o que houve?

– Você usou muita força para conjurar aqueles soldados, acabou se esgotando...

– Kau, você vem me esgotando há dois anos.

– No entanto veja, você enfim conseguiu. Um bruxo em fase de treinamento leva anos para conseguir tal proeza, tudo bem que você levou dois anos, mais enfim, conseguiu.

– Que inspirador... podemos voltar agora? Estou com saudades dos meus pais... de Matheus.

– Sim iremos pela manhã... mais ainda não acabou, ainda vamos treinar um pouco mais. Seus soldados ainda permaneceram ali, mesmo com você desmaiado.

– E o que isso significa?

– Bem, eles ainda estavam usando a sua força, um bom sinal por um lado, mais péssimo em outros. Tem pão-doce na sacola, se sentir fome, coma. Amanhã voltaremos para casa e semana que vem você voltara aqui, irei trazer um amigo que está louco para conhecê-lo, e confesso que você ira se afeiçoar por ele também.

Comi um pedaço de pão e logo me deitei. Eu sentia fortes dores no pescoço, o colar sempre mais pesado. Talvez fosse o peso da responsabilidade. Os Vigilantes sempre estiveram por dentro do que os Soberanus estavam fazendo, mais eles andavam quietos demais, e nós temíamos o que eles poderiam fazer. Eu sabia que os pais de Matheus estavam bem, notícias ruins sempre chegam rápido, já dizia o ditado popular. Eu estava preocupado pelo colar não me ajudar com nenhuma pista sobre a Taça dos Eruditos, e isso estava me deixando triste. Muito triste.

– Ei garoto, vamos? – disse Kau entrando no quarto.

– Pensei que não fosse dizer isso nunca! – eu comentei rindo.

Saímos do campo de Hayanna, ela nos desejou uma boa viagem de volta e Kau pediu autorização para voltar em breve.

– Contanto que não traga problemas, as portas do campo sempre estarão aberta a ambos.

– Agradecemos sempre sua hospitalidade, minha senhora. – disse ele.

A nossa viagem de volta era sempre tão igual como quando íamos até o campo. Os mesmo lugares, as mesmas pessoas, as mesmas paradas. Mas não pude conter quando avistei ao longe uma mansão surgindo no horizonte, pedi ao meu cavalo para ir mais rápido, e ele quase que voou de tão rápido que cavalgou. Passei pelo portão e corri até a entrada da mansão, desmontei do cavalo e corri para dentro. Meus pais estavam ali, sentados no sofá, curtindo alguma sinfonia. Os abracei muito e os beijei feito loucos, contando as novidades sobre o treinamento. Logo depois entrou Kauvirno, com o mesmo ar de sabichão de sempre.

– Ele, um dia melhora! – disse ele, cumprimentando meus pais.

– E onde estão os outros? Onde está Matheus.

Meus pais se entreolharam com uma expressão de dúvida, e aquilo logo me preocupou.

– Onde está Matheus? Cadê ele? – meu coração saltou do peito.

– Calma filho. Matheus está bem! – disse mãe, tentando me acalmar.

– Nossa, e porque vocês fazem isso comigo? Precisa de tanto suspense? Cadê ele? Está no quarto? – eu já estava ficando impaciente.

– Não! – disse meu pai.

– E onde ele está?

– Está com os pais dele! – disse minha mãe.

– Com os pais dele? Mais por quê? Aconteceu alguma coisa com eles?

– Não, Matheus estava com saudades dos pais e foi visitá-los.

– Como assim visitá-los? Ele não iria visitá-los sem mim... nunca foi... o que vocês estão escondendo de mim.

– Nada meu doce, o que iríamos esconder de você?

Se tinha uma coisa que minha mãe não conseguia fazer, era mentir, ainda mais para mim, principalmente depois que eu soube que ela, e meu pai eram bruxos.

– Mãe, eu te conheço...

– Está bem meu filho. Recebemos um recado que a mãe dele estaria muito doente, e então ele foi até a casa dos pais, sua tia Carol está com ele.

– Doente? O que ela tem?

– Não sabemos, ela simplesmente adoeceu.

Eu logo imaginei Matheus chorando, gritando e esperneando em todos os cantos da casa, dizendo que queria ver a mãe. Por mais ódio que eu sentia da mãe dele, ela ainda era a mãe, e eu tinha que aceitar isso.

– Eu estou indo pra lá!

– É perigoso demais meu filho, os Soberanus estão por toda parte...

– Pai, eu tenho o colar comigo, se for arriscado me teleportar até lá, por não saber ao certo aonde eu vou parar eu crio um portal, diretamente na casa...

– Eu levo o garoto até lá, não se preocupem... é arriscado Kayo você abrir um portal, muito arriscado.

Lá vinha ele com o papo de que algo era arriscado, sempre dizia isso, quando eu abruptamente decidia fazer alguma coisa.

– Kauvirno, você deve estar cansado, deixa que eu mesmo leve meu filho, está bem?

– Se assim desejas! – disse Kauvirno, se sentando numa poltrona.

– Pai, eu não preciso de segurança, abra o portal pra mim...

Meu pai então retirou do bolso uma varinha e a sacudiu no chão, e ela virou um cajado quase de seu tamanho, de cor bronzeada. Ele olhou na parede e ergueu o cajado e uma luz se formou no centro da parede, se abrindo cada vez mais e mais, até o ponto que qualquer pessoa pudesse atravessá-lo.

– Vamos filho! – disse ele – tenha cuidado, qualquer coisa reporte-se a sua tia, está bem?

– Sim!

– Se sentir algo de estranho, volte imediatamente! – disse minha mãe.

– Está bem, mãe.

Então eu segui até o portal e atravessei, e tão mágico como abrir os olhos de um pesadelo, eu estava numa rua escura, por conta das árvores. Esta, estava sem movimento. O céu estava meio nublado e o chão molhado. O portal atrás de mim se fechou, e eu comecei a andar. Virei uma ou duas ruas até chegar á casa onde os pais de Matheus estavam morando. Não era a casa de praia, mas logo entendi. Os pais dele viviam mudando de casa para evitar que os Soberanus soubesse de seus paradeiros, e quanto a essa, eu já a conhecia e muito bem. Era uma casa protegida contra magia. O meu medo era ser visto, ou notado por alguém. Mas logo eu percebi que usava o casaco preto que eu ganhara, há dois anos.

Passei pelo portão, e fui até a porta, onde eu bati e uma senhora já velha veio atender a porta.

– O que deseja, garoto? – disse ela, com uma voz ranhosa.

– Eu estou procurando pelo Matheus.

– É amigo dele? Qual seu nome?

– Kayo!

– Vou chamá-lo, por favor espere ai, bem? – disse ela.

Como aquilo era ridículo. Aquela casa era de Kauvirno, tinha proteções contra feitiços antigos, e contra magia negra. Aquela velha era paga com dinheiro de Kau, e os pais de Matheus moravam ali para ficarem seguros de qualquer ataque dos Soberanus. E eu ali fora. Olhei mais uma vez no céu e vi que a nuvens se agitavam, logo iria chover.