O Colar do Parvo

O campo de Hayanna


À tarde, Kauvirno deu o aviso de que iríamos partir para o campo Hayanna. Conta-se a lenda, que Hayanna era uma antiga feiticeira que em duelos com outros bruxos sempre vencia. Obviamente usando-se de seu charme, nem tanto de seus poderes. Ficou famosa por ter derrotado o então campeão, Julio Doutrin, um exímio duelista que jamais havia perdido um duelo. Quando a notícia dos ancestrais caiu em terra, de que novas gerações de bruxos iriam perder seu poder, o campo de batalha, antes sem um nome especifico, ganhou o nome de Hayanna, hoje o lugar existe apenas como uma lembrança, mais ninguém vai até lá. Por isso, Kauvirno achava conveniente ir e treinar nesse campo. Muitos foram os que disseram na época, que quem usasse magia ali, perderia no mesmo instante.

– Kayo, já arrumou suas coisas? – disse minha mãe – Kauvirno não gosta de esperar.

– Diga mãe, Kauvirno é mandão desta forma por ser velho ou porque realmente sabe o que faz?

– Boa pergunta! – disse ela, indagando-se.

– Porque ele falhou sobre os pais do Matheus...

– Sim, falhou e já se redimiu sobre isso, no entanto, devemos respeito a ele. Ele é um bruxo de muito talento e sábio, tem o dom da sabedoria. É ágil e sabe tomar as decisões bem rápidas. Ás vezes falha aqui e ali, mesmo assim, ainda um sábio.

– Eu estou com tanta raiva...

– Porque, meu anjo? – eu perguntei a Matheus.

– Porque Kauvirno não me deixa ir com você até Hayanna.

– Eu também fico com raiva, ele exige muito de mim, e confesso que ter alguém ali que eu possa beijar de vez em quando seria de grande ajuda. – eu e Matheus nos beijando.

– Nathan sempre pode ir, e eu não.

– Matheus sem crise de ciúmes, por favor. Eu e Nathan somos amigos, e eu amo você, então confie em mim. E outra dessa vez vai apenas eu e Kau.

– Em você eu confio, eu não confio nele.

– Matheus, Nathan é carinhoso desde quando nasceu, então não fique assim.

Depois de arrumar minha bolsa, eu me despedi de todos. Um forte beijo e um abraço selou o até mais, entre eu e Matheus. Kauvirno então assobiou e dois cavalos surgiram por detrás da mansão. O meu era preto, suas patas brancas, sua cor reluzia o sol, o nome dele era Tego, e o cavalo amarelo que se aproximou era Ugo.

– Mila chegara à noite, pegue o máximo de informação que puderem, na semana seguinte voltaremos.

Montamos nos cavalos e então partimos. Os olhinhos de Matheus sempre brotavam lagrimas quando eu saia, e minha mãe sempre ali do lado o acolhendo.

Saímos da região da mansão e Kau pediu para eu por o casaco, aquele casaco escuro que fazia com que nós não fossemos reconhecidos. Estava frio agora, muito frio e uma neblina densa cobria todo o vale.

– Vamos correr, assim Ugo e Tego irão se aquecer um pouco. – disse ele.

Com batidas leves na barriga do cavalo, eles correram. Velozes como o vento, como se não houvesse obstáculo algum em seus caminhos. Cortávamos a floresta desviando aqui e ali de galhos e troncos de árvores mortas. Não demorou até chegarmos numa rua asfaltada, paramos ali e observamos.

– Podemos ir! – disse ele.

Atravessamos a rua e continuamos cortando a floresta até chegar a um lago, já quase começo da noite, quando ele disse que iríamos acampar ali. Depois de avaliar bem o local, ele jogou uma barraca no chão e com um movimento na mão a mesma se montou sozinha. Alguns galhos foram trazidos do meio da floresta com o mesmo movimento e formaram perto de nós uma linda e aconchegante fogueira.

– Amanhã cedo chegaremos a Hayanna, então o treinamento será mais duro. Você precisa conseguir desvencilhar seus pensamentos de seus soldados para poder lutar. Eles são a sua mente, são o seu interior. Você precisa saber separá-los.

– kau, você falando dessa maneira parece até mesmo fácil...

– Realmente fácil não é, no entanto o meu poder de criar um soldado de fogo é fraco, comparado ao que você consegue, - ele olhou para as chamas da fogueira e um homezinho em chamas saltou dela e começou a dançar, talvez uma dança russa, não sei – É preciso saber se desligar do soldado, eles jamais irão te trair e irão sempre defender quem estiver do seu lado. No entanto de nada eles poderão fazer se você estiver focado neles e não nos outros. – ele olhava para mim nesse momento, sem dar atenção ao homenzinho que parecia pegar gravetos e brincar como se fosse um guerreiro com uma espada, balançando o gravetinho contra o vento.

“O soldados de fogo veem a mesma coisa que você vê, se estiver focados neles, pode haver problemas, eles podem começar a se atacar e isso no meio de uma batalha não é algo que agrade muito. No entanto se você conseguir separar sua mente deles e mantê-los, você poderá ver seu inimigo e eles podem lhe ajudar a manter você vivo.”

– Eu sei, você já me disse tudo isso, mil vezes.

– E direi mais mil se for o caso, até que consiga colocar isso na sua cabeça.

O homenzinho fora desconjurado e Kauvirno tirou da bolsa um pedaço de pão feito em casa, e café.

– Comida simples, nada pesado! – disse ele – Espero que Mila chegue bem em casa e traga notícias boas.

– Eu não sei se trará não. – eu disse confuso – Não sei, tem algo de estranho em todo o lugar onde eu olho.

– O colar lhe mostrou alguma coisa?

– Há dois anos que ele não me mostra absolutamente nada. Parece que criou aversão a mim.

– Não diga tolices.

– Estou apenas brincando.

– Se ele lhe mostrar algo, não esquece de contar a nós. Seis cabeças pensam melhor que uma.

– Eu sei! Mas confesso que ando com algumas outras preocupações. Os pais do Matheus já não respondem uma carta há meses.

– Até onde sei estão muito bem em minha casa de praia. A casa esta bem protegida, e eles podem ir e vir por toda aquela região. Se algo tivesse acontecido a eles, saberíamos.

– Eu sei, mais Matheus esta estranho, sente falta deles. Não é justo como eles o tratam.

– Muita coisa não é justa nessa vida, no entanto temos que aceitá-la e saber conviver com ela da melhor maneira possível. Infelizmente os pais de Matheus não sabe reconhecer o que é o amor verdadeiro, por isso rejeitam o filho da forma como rejeitam. Aceitam mais o fato de bruxos terem matado o outro menino, do que Matheus estar se deitando com outro homem.

– Isso é ridículo. Se Matheus pudesse, ele daria a vida dele pelos pais...

– Sim, daria, mais pensaria duas vezes antes de fazê-lo. No entanto se fosse você, ele não arriscaria perder tempo em pensar, tomaria logo uma atitude. Esse menino é loucamente apaixonado por você, deve acordar todos os dias e agradecer por esse presente.

– Eu faço isso, e eu o amo também. Eu tenho medo de que algo aconteça a ele.

– Matheus é um garoto forte, astuto. Aqueles músculos não servem apenas para embelezar seu corpo, aqueles músculos denotam sua vitalidade como um grande guerreiro, ele apenas, ainda não se deu conta disso.

– Eu também acredito...

Conversamos um pouco mais, sobre coisas inúteis para se falar. Nada do que conversamos depois fazia algum sentindo, resolvemos então ir dormir, pois logo cedo iríamos partir para Hayanna, e eu teria cinco dias, incrivelmente exaustivos.

Amanheceu e como sempre kau veio me acordar de uma maneira não tão agradável, ele sempre mandava Ugo vir me acordar com uma melada linguada no rosto. Aquilo era nojento, e já que estávamos ali próximo ao lago eu corri para me lavar.

– Vamos Kayo, não é algo tão desagradável...

– Se não, então porque não o beija? Que coisa nojenta!

Ugo pareceu não gostar muito, virando e indo até Tego. Era estranho ver aqueles dois animais, pareciam conversar, mexendo a cabeça para lá e para cá, como se dissessem sim ou não.

– Vamos menino, se apresse. – disse ele já montado em seu cavalo.

Eu corri e montei em Tego, e saímos mais do que de pressa do lago. Já era de costume acamparmos ali quando íamos até o campo de Hayanna, sabíamos que toda manhã passavam uns camponeses ali, e nós não podíamos ser vistos. Não era normal, pessoas viajarem de cavalo, sendo que existem carros, ônibus, aviões. Na verdade eu já havia perguntado isso a Kau, que podíamos chegar até de carro, que seria mais rápido. Ele sempre dizia a mesma coisa, “não confio nesses meios de transporte.” Eu, logicamente como um bom aprendiz, ficava calado.

Passamos ainda por alguns sítios, um desses, nós paramos para beber água e saímos rápido. Sabíamos que era arriscado permanecer na presença de não-mágicos, os Soberanus ainda estavam nos caçando e a busca deles estavam mais intensificada. De fato as duas ultimas vezes que fomos para o campo, quase fomos pego, mais nada de muito sério, conseguimos nos esconder em uns troncos velhos na floresta. Estávamos mais atentos agora, e Kau havia dito que saberíamos se algum exilado se aproximasse de nós.

Já quase anoitecia, quando chegamos a uma estrada de terra vermelha e mato ralinho. Aquela estrada ia nos levar até o campo de Hayanna. Seguimos por ela e chegamos até o seu final. Era uma coisa surpreendente de se ver. Ficamos ali no final da estrada, na nossa frente apenas mato e um campo sem fim.

Kauvirno olhou para o céu procurando a lua, naquele dia estava cheia. Era sempre quando íamos ao campo, a entrada só podia ser vista no anoitecer do primeiro dia de lua cheia. Ficamos ainda parados ali por mais algum tempo, sempre atentos a qualquer movimento estranho, fosse na terra ou no céu. Então anoitecera e a luz da lua que se vangloriava as nossas costas iluminou aquele vasto pasto sem fim. Linhas iam se formando aqui e ali e dentro delas uma textura parecida com rocha se formava. Era um imenso campo, como um estádio de futebol, menor, porém grande em altura. Aquilo era lindo. As rochas formavam o desenho de bruxos duelando, dragões e animais do outro lado. Na nossa frente, bem aonde terminava a estrada, abriu-se uma grande porta, com o rosto de uma mulher bela e cabelos compridos.

– Senhora Hayanna, peço permissão para entrar no campo. – disse Kauvirno, como sempre fazia.

– Esta se tornado quase dono do campo, senhor Kauvirno. – disse ela, numa voz deliciosa. Era até estranho ver aquele rosto de rocha falando com uma voz tão delicada.

– Jamais terei seu talento, senhora Hayanna. Quem me dera ser um dia homenageado dessa forma.

– Não tente me bajular, sou apenas uma figura esculpida nas rochas. – disse ela, agora com melancolia – Tu sabes bem que meu corpo já sucumbiu há muito tempo, e minha alma descansa em jardins magníficos.

– Minha senhora, logicamente que eu sei, mas mesmo tu sendo apenas uma figura, ainda sim tem sentimentos e um grande poder concedido por tu mesma quando ainda viva.

– Agradeço por suas palavras. Entre, o campo estará livre por toda a semana, ninguém a verá e nem entrara. Fique a vontade.

A figura de Hayanna sumiu da porta e a mesma se abriu. Passamos por ela e entramos num longo corredor escuro, que conforme íamos passando, archotes iam se acendendo. No fim, havia um campo de mato curto, algumas árvores e rochas no meio completavam o cenário. Em volta via-se a arquibancada, toda de pedra e cheia de buracos. Muitas delas feitas por bruxos em seus campeonatos, e algumas feitas por mim. Ali as árvores que eu havia queimado na ultima vez que tinha vindo, já estavam florescendo novamente. O campo era lindo, um estilo medieval. Não sei dizer, era simplesmente lindo.

Kauvirno mandou que os cavalos fossem se alimentar. Levamos nossas coisas para uma das antigas salas, onde os nobres ficavam enquanto tinham o torneio. Tinha algumas camas ali e um armário, onde guardamos nossas coisas.

– Hoje, mais a noite, iremos começar a quarta etapa do treinamento, você precisa estar descansado, então deite, durma um pouco. Vou preparar algo para comermos.

Eu tirei os lençóis da cama e troquei por novos, arrumei meu travesseiro e deitei, retirei o colar do bolso e fiquei ali contemplando-o por algum tempo, tentando me concentrar.