A noite fizera mais frio do que o normal. Nem todas as cobertas que eu tinha em meu armário fizeram eu parar de tremer. Acabei não dormindo bem, agarrado ao Colar do Parvo como se fosse a minha própria vida. Eu já não estava com medo das coisas que eu vi, e nem da história que meus pais havia me contado. Eu realmente me sentia forte para seguir em frente, e sendo eu, herdeiro dos Taurinos, deveria realmente guardar aquele colar, assim como eles fizeram. No entanto eu ainda tinha perguntas aos quais não me deram as devidas respostas. Alias, o que de fato me assustou foi eu estar aceitando toda essa situação, agora com mais calma, com toda a tranqüilidade.

Pela manhã uma preocupação tomou conta do corpo, e uma saudade imensa de Matheus pareceu persistir em invadir meu coração. Eu liguei para ele, mas não estava em casa. Bem, eu havia ligado ás seis e meia da manhã. Era quarta-feira, eu teria que ir até a escola. Minha mãe aconselhou a não ir, pelo menos não aquele dia. E que se possível pedisse a Matheus que não viesse em casa. Ela gostava dele, no fundo. A entendi então, ela apenas tinha medo de que algo acontecesse a ele. E confesso que, também me senti assim.

Tentando evitar o assunto o máximo possível, minha mãe sentou comigo na mesa da cozinha e me explicou, de uma forma bem simplificada o que tinha acontecido.

– Há anos, a geração da família Taurino esta sendo perseguida, mas não por quem realmente deveria se importar, e sim por desertores. Bruxos que querem o poder acima de tudo, e estão sendo caçados e digamos que exterminados por isso. Por não cumprirem as leis, descritas há dezenas de anos.

“De alguma forma, no dia do acidente, você saiu praticamente ileso, e isso se deve ao poder que o colar exerce sobre você. Ele sempre te protegeu dos grandes perigos que você passou pela sua vida. Não que tenham sido aos montes, mas de certa forma o protegeu. E hoje, você esta com ele. Com o artefato mais procurado por toda uma legião de desertores, e também pelos historiadores mais famosos do nosso mundo.”

Eu sabia que minha mãe tentava esconder algumas passagens dessa história. Ou para eu não ficar impressionado, ou porque ela queria me proteger de saber de mais. No entanto meu estômago sempre embrulhava, ao apenas cogitar, que Júnior dentre tantos outros, morreu naquele trágico acidente por conta desse colar. Eu não podia negar que aquilo estava mexendo comigo, e de certa forma um desejo de ódio tomava conta de mim, além do desespero e tristeza por saber que eu era o alvo, e que o irmão do meu grande amor morreu, por minha culpa.

Já era de tarde quando meu telefone tocou, era ele. E por mais que minha mãe dissesse que não era pra eu sair de casa, a voz sedutora de Matheus me fez desobedecê-la. Agasalhei-me e pensei como eu iria sair de casa. Sabendo que meus pais eram bruxos, provavelmente eles teriam feito alguma coisa para saber se eu tinha ou não saído.

O desejo de ver, tocar e sentir Matheus era tão grande, que por vezes eu tentei dizer a mim mesmo que seria arriscado. Agora eu sabia da tal verdade que rondava minha família, e saber é o grande motivo para não se cometer erros. No entanto eu tinha que ver Matheus, mesmo sabendo que eu era culpado pela morte de seu irmão. Naquele momento mais uma vez o estômago revirou, pois como eu iria estar ao lado dele, e não contar a ele o que eu estava sabendo?

Mais uma vez pensei no que meus pais pudessem ter feito na casa para que eu não saísse. Extintivamente eu tirei o colar da gaveta e o olhei firmemente. Oras, minha mãe disse que o colar me ajudaria a desenvolver meu poder, então eu pensei: porque não testá-lo?

Então eu vesti o colar e esperei alguma acontecer, tal como aconteceu quando eu voltei no tempo e me vi na mansão da família Taurino. Nada aconteceu.

Fui até a porta do quarto e me certifiquei que não vinha ninguém. Respirei fundo e pensei em Matheus, no que ele estaria fazendo ou onde estaria, ou até mesmo, com quem. E então aconteceu. Poderia ter sido rápido como um piscar de olhos, mas a sensação foi única e horripilante.

Aquela sensação no estômago veio novamente, e tudo ficou disforme e não fazia sentindo ao meu redor. Parecia que eu girava e girava de um lado a outro, e sentia muitas vezes que eu esbarrava em alguma coisa. Logo uma figura ao fundo me pareceu familiar em meio a uma nuvem. Era Matheus, que estava entrando em seu carro, provavelmente para ir a minha casa. Então tudo voltou à normalidade e então o vi sentando no banco do motorista.

– Olá! – eu disse, ainda com o estômago estranho e com falta de ar.

– CREDO! – disse ele apavorado, dando um pulo e batendo a cabeça no teto do carro.

– Não pergunte nada, vamos sair daqui o mais rápido possível.

Passei para o outro lado e entrei no carro. Ele se ajeitou, e saímos dali.

– Vamos para um lugar afastado! – eu disse.

Ele concordou com a cabeça e então fomos a um bosque, que ficava mais pro fim da cidade. O caminho estava estranho. O frio fizera com que ninguém estivesse nas ruas. Elas estavam desertas. Via-se apenas um ou outro carro, indo ou vindo. Mais nada.

O bosque era descampado, as pessoas iam ali para fazer piquenique. Matheus parou o carro e saímos, andando pelo bosque. Obviamente que ao sair do carro ele me abraçou e me beijou.

– Eu estava com saudades! – disse ele – No entanto você veio calado, aconteceu alguma coisa?

– Precisamos conversar seriamente.

– É realmente precisamos. Poderia começar me dizendo como você apareceu na frente da minha casa, sendo que fazia poucos minutos que eu tinha te ligado, e você disse estar na sua casa?

– É uma história longa, e por mais que eu também não esteja acreditando... eu duvido que não seja verdade, depois da forma como eu cheguei até você. Prepare-se, lá vai... – eu ainda estava anestesiado pelo o que tinha acontecido. Eu tinha me transportado até de uma maneira que a ciência hoje em dia não foi capaz de fazer, ou quem sabe até conseguiu. Mas é aquela coisa, o governo sempre esconde algo de nós.

Comecei então a explicar tudo o que meu pai e minha mãe haviam me contado. Sobre os artefatos de poder, sobre a família Taurino. Sobre bruxos, magos... A feição dele foi ficando cada vez mais estranha. Mais pesada. E então cheguei à parte sobre o acidente. Os olhos de Matheus começaram a lacrimejar cada vez mais. Ele começou a ficar irritado e a andar de um lado a outro.

– Eu não tenho culpa Matheus. Eu só quero que você entenda isso, eu não sabia dessa história até ontem, e então hoje eu coloquei o colar e desejei estar ao seu lado e então eu apareci na frente da sua casa. Não é coisa da minha cabeça, é real.

Ele não falava nada, mais sua expressão de raiva era evidente.

– Quem são esses malditos? – perguntou ele, sua voz estava tremula, mais não pelo frio.

– Eu não sei, nunca os vi e meus pais também não me disseram nada. Apenas sei que minha mãe se preocupou em eu estar tendo um relacionamento com você, justamente por isso. Para que eles não usem você contra mim. Eles sabem quem eu sou...

– E você está querendo dizer que quer se afastar de mim? – disse ele, chorando – Não me peça isso. Por culpa deles eu perdi meu irmão, e eu não vou perder mais um. Você é a razão pelo qual eu vivo.

– Não precisa falar assim! – eu ironizei.

– Kayo você pensa que é quem pra achar que eu estou falando alguma asneira? Eu já disse que eu te amo e nada e nem ninguém vai mudar isso. Se eu tiver que morrer, que eu morra ao teu lado. Posso estar sendo egoísta, mais a única coisa que me importa nesse momento é você. E se você corre riscos, eu vou correr também.

Eu sabia que ele era apaixonado por mim, e o que mais me doía era de não conseguir com tamanha facilidade dizer “eu te amo” assim com ele dizia a mim. Ele estava nervoso, algo totalmente normal. Qualquer um ficaria sabendo que bruxos existem, e que bruxos estão lhe seguindo e destruindo tudo o que você ama para conseguir mais poder. Pensei ali, encostado no carro, várias vezes que tudo aquilo parecia apenas um sonho. Mais uma coisa não se encaixa nessa história. A aparição de Júnior na delegacia.

– Tem mais alguma coisa pra me contar? – perguntou ele – Sim, porque não quero mais segredos entre nós.

– Eu não estava guardando segredo algum. Apenas aceitei o fato das coisas e isso faz parecer que eu já sabia de algo. Tanto não é segredo que estou me abrindo com você.

Para mim foi uma surpresa. Eu temia a reação dele, ao dizer que seu irmão havia morrido por minha causa. Ou ele aceitou a história melhor do que eu, ou ele ainda não havia entendido o que estava acontecendo. Mas aos poucos eu ia conhecendo Matheus, e aquele era ele. Ou talvez a paixão que ele sentia por mim, o fizesse acreditar em tudo o que eu também acreditava. Ele de fato era centrado e agia pela lógica, e se a lógica tivesse uma explicação plausível, ele assim aceitaria.

O telefone dele tocou, era Aline. Ele se afastou de mim e cochichou com ela. Eu olhei para o céu e percebi que as nuvens estavam mudando tanto de forma, como de cor. De cinzas para negras.

– Matheus... – eu murmurei – Matheus... – eu o chamei – MATHEUS!

Ele desligou o telefone e veio até mim, olhou junto comigo apara o céu. Ali, nas nuvens negras formou um buraco onde um feixe de luz reinou. E dali duas bolas de fogo começaram a cair e o buraco se fechou.

– Vamos embora agora! - eu disse.

Corremos e entramos no carro. Matheus ligou o carro e acelerou feito um louco.

– Estamos fugindo do que?

Aquelas bolas de fogo pareciam ter vida. Deixavam sua marca por onde voavam, como se fossem mísseis. E quando se aproximaram do chão elas começaram a nos seguir. Voando ali e aqui até que uma delas bateu no carro, do meu lado. Eu gritei e pedi que Matheus corresse mais.

– MÊ DÊ O COLAR DO PARVO! – gritou uma voz debochada como um grunhido no eco. Era a voz de uma mulher.

A duas bolas de fogo ainda nos seguiam, ora batendo no carro e ora nos assustando, entrando em nossa frente. E então o carro derrapou e batemos numa arvore, não muito longe do bosque. Ambos batemos com a cabeça, só que Matheus estava desacordado. A minha porta abriu e então eu cai no chão. Atordoado pelo acidente vi a figura de um homem alto com roupas negras segurando um cajado onde a ponta era um pequeno crânio. Ele tinha longos cabelos negros e era um homem bonito. Uma pele branca feito gelo.

– Levante! – disse ele com uma voz bela.

Talvez pelo movimento da mão que aquele homem fez, eu consegui me levantar sem dificuldades, no entanto quando me dei conta ele estava segurando o colarinho da minha camisa, me mantendo de pé. Com dificuldade eu olhei para mulher que o acompanhava e ela estava próxima a Matheus, fitando-o com curiosidade. Tinha os cabelos curtos, avermelhados e arrepiados, era mais branca que o homem, e tinha grandes olheiras e vestia uma roupa preta de couro, com outro casaco por cima que lhe cobria todo o corpo.

– Deve estar morto! – disse ela rindo.

– Cala-se Melissa, a morte não é algo que podemos nos orgulhar. – disse o rapaz. Ela pareceu ficar sem graça.

Ela tirou então uma varinha branca do casaco e fez um movimento, a porta do lado de Matheus fora arrancada do carro e ela o puxou, deixando no chão e vindo até mim.

– Incrível como nós conseguimos mudar o tempo, vamos e voltamos e vocês, seus otários ficam trancados em suas casas. – disse ela.

– Não dê importância a minha irmã Kayo, ela é um tanto que louca!

– EU NÃO SOU LOUCA! – disse ela revoltada – Eu apenas não suporto essa gente! – ela cuspiu no chão.

– O que vocês querem? – eu disse, minha visão voltara ao normal, mais eu ainda estava meio tonto.

– O Colar do Parvo está com você! – disse ela.

– Sim! – eu disse.

– Me dê!

– Jamais!

Ela apontou aquela varinha para mim.

– Melissa, contenha-se. – disse o rapaz – Ele esta vestindo o colar...

Ela recuou com a varinha.

– Poderia ter a gentileza de retirar o colar? – disse o rapaz.

– Não! – eu disse. O homem começou a apertar meu braço, aquilo doía demais.

– Não vai dar? Não será bondoso com a gente? O que seu namoradinho vai achar disso então? – dizia Melissa olhando para Matheus, como se ele fosse um pedaço de carne jogada num canto.

– Não faça nada contra ele...

– ENTÃO MÊ DE O COLAR!

– MELISSA! – gritou o homem – Acalme-se...

– Ele não saber usar, porque vou temê-lo?

– Eu sou seu irmão mais velho então me obedeça.

– Eu mato o namoradinho dele e ele entrega o colar.

– Melissa... – dizia o homem com repulsa da atitude de sua irmã.

Melissa ia e voltava em torno de Matheus, como se fosse apunhalá-lo a qualquer momento com uma faca. Ela queria matá-lo, no entanto o rapaz dizia a ela para ter calma. E dizia constantemente que eu ainda estava com o colar. Logo percebi que eles não fariam nada contra mim, pois eles nada poderiam fazer enquanto eu estivesse com ele. No entanto a minha preocupação maior era com Matheus, eu precisava socorrê-lo o mais rápido possível. Eles não podiam fazer nada contra mim, mais contra ele, sim.

Eu precisava pensar rápido. Eu sabia que se eu desejasse-me teleportar para outro lugar eu poderia, já testara isso antes, mais e quanto a Matheus? Por mais que eu nunca tenha dito a ele eu também o amava. Então fechei os olhos. Os dois ainda discutiam. E apenas desejei ajuda e ao abrir os olhos eu vi uma figura alta e bela se formar atrás de Melissa. Ela se virou e fora surpreendida com uma luz branca, que a atingiu e a fez cair próximo de seu irmão. O homem olhou para o corpo desfalecido da irmã e me jogou no chão, fazendo um forte movimento com o cajado, mais não teve tempo. Este também fora acertado pela luz branca e caiu no chão, desacordado.

Outra figura apareceu e foi até Matheus, e o primeiro veio a mim.

– Escolha um lugar e nos leve até lá. – disse a bela voz – Seja rápido!

Eu fechei os olhos e pensei, talvez no lugar mais improvável do mundo, mas que no meu íntimo dizia que ali seria, pelo menos por alguns momentos, um lugar seguro. Quando os abri os olhos, tanto eu, quanto Matheus, estávamos na mansão dos Taurinos. Deitados ao lado do outro. Na cabeça de Matheus, havia um curativo e no meu braço outro. Ele ainda dormia quando eu levantei e andei pela casa vazia. Fui até a janela e vi o carro de Matheus, novinho, como se nada tivesse acontecido. Na porta de entrada, do lado de dentro um bilhete:

Desejamos melhoras, em breve nos veremos.

Fique dentro da casa até o anoitecer, iremos buscar ambos.

Deixarei avisado aos Rangel de sua localização.

Não se preocupe com mais nada. Apenas descanse.