Não era de se estranhar que Sara, Mario e Eduardo estavam tão calmos, eu logo percebi o que tio Jô estava fazendo. Enfeitiçando-os, tentando os manter tranquilos, o que comigo, parecia ser incapaz de conseguir. O feitiço não surgia efeito algum em mim, talvez no começo, mas não mais. Eu estava ficando preocupado com a demora de Marcelo e Kauvirno, eu pensava a todo o momento o que estaria acontecendo na cidade, e pensei várias vezes nos pais de Sara e Mario. Realmente os pais de Eduardo eram sortudos, mas já ele parecia não ter tanta sorte assim.

Já havia passado algumas horas, e os três estavam dormindo, em volta da fogueira, enquanto o velho tio Jô veio, com dificuldades, até mim.

– Bem, elas são minhas amigas, deve confiar sempre na natureza. – disse ele, repentinamente.

Eu sabia exatamente do que ele estava falando, a poucos momentos antes dele se aproximar eu pensei se aquela floresta era realmente segura.

– Eu confio, eu não estou com medo por mim, e sim por eles. – eu disse olhando para os três, deitados uns sobre os outros tentando se aquecer.

– Eu o compreendo, é um peso enorme esse colar, é compreensivo. – disse o velho tio Jô olhando para o seu castor, que se aproximou e se afagou em meu colo – Um bicho um tanto mimado, esse... mas leal. Isso é o que importa.

– Obrigado por ter tranquilizado eles... estavam nervosos, principalmente Mario.

– Sim, realmente estavam. E quanto a esse menino, o Mario, um jovem bastante promissor, pena temer tanto, usar uma máscara para ser forte nem sempre é a melhor solução. É preciso, coragem de se assumir, apenas assim seremos verdadeiros e conseguiremos dominar a magia. Sabe, Kayo, magia é algo extremamente relativo. Existem vários tipo de mágicas, e cada uma delas pode ser feita por uma pessoa diferente. A voz, o gesto, a varinha, o olhar, o pensamento, as poções, escrituras... são alguns exemplos dessas mágicas. Não apenas seres mágicos podem fazê-las. Os não-magicos também são capazes quando querem. Quando eles aceitam o amor dentro de si, estão na realidade, aceitam mais uma forma de mágica. O amor é algo mais complexo do que se possa imaginar. Ele destrói ao mesmo tempo que nutre a alma, e é preciso paciência para conseguir compreende-la.

“É difícil em um primeiro momento entender certas coisas, ou o porquê de algumas delas estar acontecendo, mas como foi-se ensinado, tudo no final terá uma resposta. Cabe a pessoa tomar as decisões sabias para no final não se dar mal.”

“Não se iluda achando que o colar ira sempre estar do seu lado. Você precisa estar do lado dele antes de mais nada. O Colar tem vida, carrega o coração de um homem bondoso, que foi traído! Eu receio que já saiba de toda a história.”

“Tudo o que se encontra nos livros, é a mais pura verdade, vista, certamente, de modos diferentes. E o que pretende está correto, só posso dizer para seguir em frente. Sempre em frente. Acredite em suas intuições, elas sempre irão te ajudar.”

O velho tio Jô era calmo, era tanta tranquilidade que até me irritava. Eu estava inquieto, isso era fato. Mas suas palavras traziam certo equilíbrio. No entanto parecia que meu soldado não estava tão equilibrado como eu.

– O que esta sentindo? – eu perguntei ao meu soldado, ele virou pra mim e eu pude ver a silhueta de seus olhos assustados, em meio à chama. Ele então se transformou em um soldado de terra.

Tio Jô levantou com dificuldade e olhou atentamente para os lados, seu castor, que eram seus olhos, fazia o mesmo, de ora ou outra, com seus sons estranhos, falava com tio Jô passando a ele, o que estava acontecendo.

– Eles invadiram a floresta, como ousam! – disse o velhote.

Eu corri até Sara, Mario e Eduardo e os acordei, que logicamente levantaram assustados.

– O que houve? – perguntou Eduardo, ainda sonolento.

– Soberanus, eu acho que são eles... – eu disse sentindo o colar pesar. Logo perdi total concentração e meu soldado se desfez numa nuvem de poeira.

– O que faremos? Para aonde iremos... – disse Sara, enquanto Mario pareceu se desesperar, indo a um lado e outro.

– Não temam, as árvores irá atrasá-los... – disse tio Jô.

– E se eles vieram pelo céu, quem o fará? – perguntou Mario, numa lógica desconcertante.

Ficamos pensativos.

– Se vierem pelo céu... bem... essa parte eu nunca pensei... – disse tio Jô – Vamos, sigam o castor, eu ficarei aqui... para que não desconfiem de nada. Andem, eu encontro com vocês mais tarde.

Então seguimos o castor, que, parando subitamente, se erguia com as patas traseiras e com seu focinho tentava sentir algum cheiro estranho. Corríamos feitos loucos e sempre em linha reta. Pelo menos era o que Mario dizia.

– Onde iremos parar... para onde estamos indo... – dizia ele.

O castor então parou e estranhamente apontou com o dedinho da pata um buraco no meio da terra. Percebemos logo o que aquilo significava. Corremos e entramos naquele buraco, que não era espaçoso e nem confortável, mas era de grande ajuda. O castor pareceu pegar alguns galhos, e rapidamente os colava na frente da entrada do buraco até que do nada ele parou. Ouvia-se apenas a respiração ofegante do animal e logo depois alguns passos.

– O menino não está aqui. – disse uma voz rouca.

– Sim, ele está por aí, não necessariamente aqui... veja eu sou apenas um velho, que mal enxerga, como saberia que posição ele iria? – disse tio Jô.

– Engraçado, pois eu sinto o cheiro dele, mas não consigo saber exatamente onde ele está. – disse uma voz feminina e desgrenhada. Essa era Melissa, evidente.

Ela se aproximou do buraco, onde estávamos, e nós com a mão na boca para não fazermos nenhum tipo de barulho. Estávamos imóveis, vendo Melissa a nossa frente farejando como um cachorro.

– Eu estou dizendo, eu sinto o cheiro dele... jamais esqueceria o cheiro daquele menino. Tão doce e delicado, eu fico completamente louca quando apenas imagino... – disse Melissa.

Que nojo, ela estava apaixonada por mim?

– Largue esse velho do mato, antes que eu o mate. Estou afim de sangue... e aqueles dois amiguinhos do guardião do colar serão ótimos aperitivos. – disse ela.

– Minha cara senhora, agradeço que tenha poupado à vida desse velho...

Antes de terminar de falar, ouvimos um estalido, seguido de um leve gemido de dor.

– Odeio agradecimentos... - disse Melissa – Vamos rapazes. Voltaremos à cidade, aqueles fedelhos não devem ter ido tão longe... e anuncie, que seus amiguinhos foram capturados, tenho certeza de que Kayo não resistira dessa vez.

Ouvimos um estampido, e Melissa e o outro cara voaram, em formas de bola de fogo para longe dali. Saímos do buraco e corremos, pois sabíamos que ela tinha acertado o tio Jô. Ao chegar perto dele, ele estava com um corte na testa, e parecia ter machucado o braço.

– Tio Jô, como o senhor está? Consegue se levantar? Precisamos chamar alguém... chamar por ajuda... – dizia Sara.

– Acalme-se minha garota, - disse tio Jô pacientemente – isso logo passara.

O velhote então, com dificuldade tocou no grande tronco de árvore ao qual fora arremessado e pudemos ouvir um som muito estranho, não soubemos como identificar, era algo único. Mas prestando atenção eu consegui ver que o tronco da árvore parecia respirar, como o movimento da nossa barriga quando respiramos. Eu fui me aproximando daquele tronco, intrigado com aquilo, até que em certo momento sentimos um leve tremor. Nós tivemos que nos segurar uns nos outros, para evitar cair no chão. Logo eu pensei que fosse um terremoto, tolice da minha parte.

Da árvore que o velho tio Jô estava encostado, no tronco, logo acima da cabeça dele, saltou um homem, sua pele era como a casca daquela árvore, seus olhos amarelos, seus cabelos eram finos fios verde-musgo, que se assemelhavam a alguma folha, ou planta. Inexplicável.

Ele ficou ali parado nos observando, estranhamente.

– Veja, homem... eles são bons, os ruins são outros! – disse tio Jô.

O homem então se virou para tio Jô e se ajoelhou, pudemos ouvir o ranger de seus joelhos se curvando. Era estranho.

– O que fizeram com o senhor? – disse o homem, com uma voz melodiosa e encantadora.

– Homens maus... isso é um perigo!

– Devo mandar outros em busca deles?

– Não. Ainda não é o momento, nós devemos esperar um pouco mais. Temos outras preocupações nesse momento.

– Está ferido, senhor. Quer que eu busque ajuda?

– Logo passara. – disse suavemente tio Jô – Veja, eles são pessoas boas e estão em apuros. O Guardião do Colar do Parvo está aqui, portanto, devemos protegê-lo, ou pelo menos, ajudá-lo a se manter seguro.

O homem se virou, e novamente aquele ranger, dava calafrios, parecia que ele era duro, assim como o tronco do qual saíra.

– Você é o Guardião do Colar do Parvo, e está nos domínios da Floresta Mágica, logo iremos proteger a você e a seus amigos. Se assim desejarem. – disse ele.

– Toda ajuda é possível. Mas eu estou com problemas... meus amigos foram raptados e eu preciso resgatá-los. – eu disse, tomando a frente de meus amigos.

– Eles estão fora da floresta! – disse tio Jô – Eu senti isso na voz daquela tenebrosa mulher.

– Se estão fora da floresta, eu não poderei ajudar. Nós não saímos daqui, no entanto eu posso levar vocês em segurança até a entrada da floresta, que não é tão longe.

– Já nos ajudaria muito! – eu disse.

– Este é Gaion, um grande amigo, há anos! Podem confiar nele. A Floresta de Assis é uma floresta mágica, cheia de criaturas maravilhosas, e outras nem tanto assim. – disse tio Jô.

– É um prazer! – disse Sara. Ele riu, timidamente.

– Devem ir agora, o mais rápido possível. – disse tio Jô – Não se preocupem comigo, eu chamarei algumas fadas para me ajudar...

Fadas? Ele disse fadas? Eu sabia que mágica existia, e até mesmo criaturas mágicas, mas fadas foi realmente uma surpresa. Eu queria vê-las, saber como elas eram, mas logo pensei que oportunidades não iriam me faltar, a menos que eu morresse antes de vê-las.

Gaion então se despediu de tio Jô e nós fizemos o mesmo, o velhinho pareceu adormecer quase que instantaneamente, logo após que nós nos viramos. Era estranho deixá-lo ali, mas ele era um homem da floresta, saberia se cuidar.

Seguimos atrás Gaion, que pareceu muito calado, ás vezes até mesmo ausente. Está certo, que nós também não falávamos nada. Estávamos atentos a qualquer coisa estranha que pudéssemos ver ou ouvir, e até mesmo sentir.

Mas aquele nome não me era estranho, e como um bom curioso eu não poderia deixar de perguntar.

– Gaion não é um nome comum, mesmo assim me faz recordar de alguma coisa. – eu disse, calmamente.

– Gaion vem de Gaia, assim como tudo o que há. Sou uma manifestação da rainha das florestas, da força, da energia... Ela me criou, e assim como eu outros existem, mas há muito não somos vistos ou até mesmo sentidos. O mundo mudou e com essa mudança as coisas perderam seus sentidos. Homens antes iguais hoje brigam em desigualdade de poderes e sabedoria, sendo que a única coisa que os motiva fora perdida.

“Nós não somos espíritos ou seres simplesmente criados, representamos a natureza, pois ela vive e respira como vocês. Infelizmente nossa deusa se recusa a aceitar o fardo em que este planeta terá que carregar e nos poupa de sair de seus domínios.”

– Mas se ela é a rainha ela poderia fazer o que bem entender... – comentou Mario.

– Sim, mas do que adianta ter o poder e fazer se muitos seriam os prejudicados? Não queremos derramamento de sangue, nossas terras já sofreram por demais, com guerras sem nexos. Seja elas causadas pelos não-mágicos, ou pelos mágicos. Ambos, duas raças ignorantes que não sabem o verdadeiro sentido da vida.

Era compreensivo ver ali aquele homem, feito com o tronco de uma árvore nos guiando e nos falando que nós éramos os culpados pela destruição de nosso planeta. Talvez ele queria ter dito outra coisa, mas eu consegui entender a mensagem, e até concordo com Gaia, ela realmente estaria triste em ver esse belo planeta destruído, por pura ambição.

Continuamos seguindo Gaion por mais algum tempo. Eduardo agora estava abraçado comigo, e sempre pedia para eu ter cuidado onde eu estaria pisando. Eu estava distraído, tinha que pensar rapidamente no que eu faria para resgatar Kauvirno e Marcelo. Por várias vezes me perguntei como eles puderam deixar ser raptados. Conhecendo Kau como eu conhecia, tenho certeza de que ele não se deixaria levar tão facilmente, apenas que fosse morto em batalha.

– Não se preocupem com o senhor Jô, ele estará bem, embora eu tenha que dar uma bronca naquele velho, por não ter nos alertado sobre a invasão desses bruxos.

– Vocês sendo da natureza não poderiam ter sentido a presença deles? – perguntou Sara.

– Minha gentil e nobre dama, nós não fazemos mais parte do mundo de vocês, só agimos se formos chamados. Foi-se o tempo em que animais falavam, árvores andavam e os humanos não existiam. Sim, eu digo isso porque muitos de vocês não aproveitam a grande dádiva que receberam, e estão destruindo. Nós apenas ficamos reclusos e quando necessário surgimos. Mas o velho poderia ter pedido ajuda, como fizera outras vezes. – disse Gaion, seriamente.

– Gaion eu poderia lhe pedir uma ajuda? – eu disse, entendendo como as coisas funcionavam ali.

– Sim, meu senhor! – disse ele, educadamente.

– Ouviu falar sobre o Colar do Parvo, correto?

– Historias sempre ouvimos.

– Eu acredito, mas estou à procura de uma pessoa... bem... – eu não tinha certeza de como dizer aquilo, eu não havia comentado com os outros o que nós, os Vigilantes queríamos fazer – Bem, estou a procura de Ana Bela Demétri.

– Meu senhor, ela jaz falecida há anos! – disse ele, espantado. Os outros tiveram a mesma reação.

– Eu sei, mas preciso falar com ela... eu preciso saber onde estaria seu tumulo...

– Receio não poder ajudar no momento, no entanto cabe lembrar que ressuscitar o corpo de uma pessoa é algo terrivelmente cruel.

– Eu compreendo, sei dos riscos... mas é algo de grande valor.

– E eu poderia saber o que seria isso? – perguntou ele, confesso que naquele momento vi uma reação bem humana em seus olhos.

– Preciso saber sobre a Taça dos Eruditos.

– Eu já ouvi histórias sobre essa tal taça do saber, no entanto nunca a vi, e talvez eu tenha nascido pouco depois dessa história. Mas posso providenciar algumas informações.

– Nossa, seria tão importante para mim se você conseguisse alguma coisa...

– Mas garoto, porque deseja saber sobre a taça? Já não é portador do colar?

– Digamos que eu preciso dessa taça... esses bruxos estão a procura dela, assim como estão a minha caça para conseguir o colar. Eu preciso das peças desse quebra-cabeça para saber como agir.

– Compreensível. Eu darei um jeito de falar contigo, agora devem ir, ao amanhecer a floresta acorda, e humanos tão delicados como vocês não podem estar aqui. Espero que consigam resgatar seus amigos.

Eu agradeci e me virei. O mesmo fizeram os outros. Gaion repentinamente sumiu entre as árvores e andamos por mais uns minutos, logo vimos uma cerca e a pulamos. Estávamos na cidade outra vez.

– A estrada fica logo ali, a cidade no entanto é longe, não acho que iremos conseguir carona... a cidade está apavorada. – disse Eduardo.

– Sim... mas eu tenho o colar.

– Poderíamos ter usado o colar para vir aqui. – comentou Mario.

– Não, ele não iria ajudar, este colar só me ajuda quando quer, e quando quer eu sinto.

– Sente o que? – perguntou Eduardo.

– Seu peso!

Caminhamos com o sol nascendo as nossas costas, era lindo ver aqueles feixes vermelhos cortando o céu ainda escuro. Do nosso lado ainda estava a floresta, e pudemos ouvir sons bizarros nela. Não nos atentamos nisso, apenas prosseguimos com extrema cautela.