O Colar do Parvo

A mansão dos Taurinos


Naquela manhã, fazia um frio mais do que insuportável. Pelo menos a natureza foi bela, e fez apenas frio, não choveu.

Eu acordei e me arrumei para ir para a escola. Na cozinha, minha mãe mal olhou pra mim. Meu pai era mais tranquilo, apesar de eu não saber qual a reação dele quando eu contasse que eu estava ficando com Matheus, e pela forma como ele me tratou naquela manhã, eu acabei tendo a certeza de que minha mãe não havia comentado nada sobre o dia anterior.

– Bom dia filho...

– Bom dia e vou a pé para a escola. – peguei um pedaço de pão feito em casa e sai.

– Mas o que deu nesse menino? – ouvi meu pai dizer.

Fui correndo, para ver se o corpo esquentava, até o ponto de ônibus. Cheguei à escola e corri para dentro. Eu estava vinte minutos adiantado e provavelmente a biblioteca estava aberta. A biblioteca da escola era a mais completa de toda a cidade, logo eu tinha certeza de que alguma coisa eu iria encontrar lá, e ansiedade de esperar Matheus chegar com algum material se tornou quase que pequena.

– Kayo... – era Matheus

– Você já está aqui? – eu perguntei.

– Eu sempre chego essa hora, você que é sempre chega atrasado.

– É, eu sei dos meus defeitos não precisa comentar...

– Quero te beijar! – disse ele chegando bem perto de mim.

– Estamos na porta da escola... e eu preciso ir até a biblioteca...

– Está fechada. Veja, eu imprimi esse material e espero que curta porque eu fiquei um pouco assustado.

Eu olhei para ele e senti que o que ele estava falando era verdadeiro. Fomos até uma mesa no jardim da escola, e sentamos.

– Vai ser rápido e nem tem ninguém aqui no jardim, eu acho que mereço dois beijos; um de bom dia, e outro por ter conseguido essas coisas sobre a família.

Não que beijá-lo era menos importante, mas eu não podia beijar ele no jardim da escola, eu não podia deixar com que a reputação dele fosse afetada. O que pra Matheus parecia não ter importância. Tirei as folhas de sua mão e comecei a folheá-las.

– Tudo bem então! – disse ele desanimado - Parece que eles realmente eram bruxos, ou algo assim. A casa ainda permanece lá, virou ponto turístico já que não tem a incidência de bruxaria no Brasil. Só o fato de saberem que possivelmente houvesse algum, acabou-se fazendo um alvoroço todo. Mais em 1958 alguma coisa aconteceu e a prefeitura da cidade proibiu a visita na casa. Ela esta lacrada até hoje.

“Não existem documentos que digam o que houve. A sua idéia de procurar na biblioteca da escola também não irá ajudar, caso tinha essa intenção e muito menos em qualquer outra aqui da cidade. Esse material eu achei em um site que fala sobre antigas famílias que praticavam a bruxaria, todos eram americanas, ou inglesas, mais a família Taurino era a única que constava na lista, sendo brasileira.”

– Não consigo entender que tipo de ligação isso tem, nada parece fazer sentido.

– Eu estive pensando, que talvez pudéssemos ir até a casa. Sei lá, existem coisas que pertenciam à família ainda na casa, mas é arriscado!

Eu não conseguia acreditar que Matheus tivera aquela idéia. Jamais eu iria cogitar, principalmente sabendo que lá moraram bruxos, e pelo que víamos em filmes e contos de terror, as casas onde havia bruxas eram terrivelmente mórbidas e assombradas. Vai saber o que se podia achar naquela casa?

– Podemos ir agora, se quiser! - disse ele lançando uma piscadela e sentando ao meu lado.

– Perder um dia de aula?

– E não seria legal? Fazer coisas perigosas às vezes nos torna mais corajosos para fazer outras! – aquela forma sutil de me convencer as fazer as coisas – Vamos, o carro esta na rua debaixo, temos que ser rápidos, pois daqui a pouco o pessoal começa a chegar.

Levantamos e corremos até a rua debaixo, onde o carro de Matheus estava estacionado, entramos e saímos dali rapidamente. Viramos algumas ruas, descemos outras e logo estávamos na estrada que levava até a casa da família.

– E quanto você e sua mãe?

– Eu não falei com ela ainda, ou melhor, ela não falou comigo. Mas eu me entendo com ela depois, eu também não posso repudiá-la pelo o que ela viu.

–Mas também não estávamos fazendo nada, a menos que ela tenha chegado momentos antes. – disse ele rindo – Mas vai dar tudo certo, você vai ver. Difícil será quando eu contar aos meus pais.

–E você pretende fazer isso? – eu disse surpreso.

– Lógico, inclusive quero ir falar com seus pais pessoalmente, pedir sua mão em casamento, não sei... – disse ele rindo. Ele achava graça de tudo o que dizia sobre o nosso relacionamento.

Eu, no entanto, tinha medo do dia em que teríamos que contar aos nossos pais que estávamos juntos, mas ele dizer isso me fez sentir-se bem, pois ele acabara de demonstrar que queria algo sério comigo.

– Estamos chegando! – disse ele.

Naquele momento eu senti alguma coisa estranha que parecia que estava mexendo com minhas entranhas, era como se todos os acontecimentos fossem ser entendidos, e eu queria respostas, mesmo que o medo estivesse andando lado a lado comigo. Mas eu tinha Matheus ao meu lado, que mesmo não acreditando, estava comigo, entrando nas minhas tais imaginações férteis.

Entramos numas das entradas naquela estrada, que era de terra e parecia estar molhada. O frio ainda era intenso e uma fina camada de neblina começou a nascer misteriosamente.

Aos poucos as árvores foram desaparecendo e a paisagem se mostrou bem sombria. Podiam-se ver do meu lado direito imensas nuvens negras se aproximando. Era muito cedo e apesar do sol fazer de tudo para brilhar parecia que uma forte chuva viria a cair sobre a cidade.

Ao longe, eu vi um ponto escuro que conforme íamos nos aproximando, ficava cada vez maior. Era ali, eu logo soube. Mais não uma casa e sim uma mansão. A mansão dos Taurinos.

Ela era grande, talvez para os padrões da época. No jardim, mal cuidado, havia algumas plantas mortas e alguns arbustos escuros, havia muito mato alto que dava a sensação de ser um ótimo esconderijo para qualquer criatura da natureza. Havia uma imensa árvore de galhos secos bem na entrada da casa. Não havia portão, apenas um caminho com pedras pelo caminho que se seguia até a escada para entrar. Não havia vida ao redor daquela casa e ao longe se via a orla de uma pequena floresta.

Matheus parou o carro e então descemos. Seguimos pelo caminho de pedra e chegamos à escada que não era alta, uns oito ou dez degraus talvez. Próximo ao chão dava-se para ver janelinhas. Ali era o porão.

– Que lugar horrível. – disse Matheus.

– Você que quis vir aqui...

– Eu sei... mas o que eu não faço por você. No mais, é até bom, eu teria que vir aqui mais cedo ou mais tarde. Provar que sou homem! – ele se virou pra mim e riu novamente – Será que vou conseguir provar?

Eu balancei a cabeça negativamente e sorri e então subi aqueles lances de escada. Na porta da casa havia uma placa com os dizeres “NÃO ENTRE”. A casa era feita de madeira, por isso o ranger da mesma nos nossos pés era alto. Havia chovido por ali, o que deixava o clima ainda mais sombrio. Eu olhei para o lado e vi aquelas nuvens negras mais próximas agora.

– Se chover da forma como estamos imaginando não iremos sair daqui tão cedo. – comentou Matheus – A casa é cercada por terra, fora a estrada...

– Não iremos demorar, pelo menos eu espero.

Pudemos ouvir um trovão ao longe.

Tanto a porta quanto as janelas estavam vedadas com pedaços de madeira, a modo que ninguém pudesse ultrapassá-las. Havia algumas pedras no chão e buracos na madeira.

– Vândalos. – eu comentei.

– É uma sensação tão estranha, estar aqui. - disse Matheus olhando por um dos buracos da porta. Ele tentou empurrá-la, sem sucesso – Acho que esta emperrada. – disse ele – Só não entendo como o pessoal consegue entrar.

Quase que instintivo, eu fui até a porta e fui ajudar ele a empurrá-la, mais ao tocar nela, ela simplesmente abriu.

– Coisas estranhas sempre acontecem... – eu murmurei.

– Seja lá o que você fez, foi maneiro! – ele disse terminando de abrir a porta.

Entramos então na tal mansão. Estava tudo muito empoeirado, quase não tinha nada dentro da casa. Uma ou outra caixa de papelão no chão. Uma escrivaninha queimada. Um sofá velho com um lençol amarelado por cima. Ali se dava numa pequena saleta, aonde tinha uma escada para o andar de cima, uma porta que provavelmente seria outra sala e a cozinha, e do lado uma portinhola. Talvez ali desse para o porão.

– Mal consigo enxergar! – disse Matheus.

Jogado em um canto havia um candelabro e do lado alguns tocos de velas.

– Tem fogo? – eu perguntei.

– E como... – disse ele rindo.

– Matheus, estou falando sério!

– Vou até o carro buscar, eu já volto! – e saiu.

Eu peguei o candelabro, tinha nas pontas de base para as velas a cabeça de uma serpente. Quando a toquei, senti calafrio. Peguei três toquinhos de velas e as segurei. Fiquei ali apenas olhando a escada que dava ao andar de cima. Matheus então chegou. Outro trovão pode ser ouvido.

– Estou começando a temer essa chuva, - disse ele preocupado – se chover estaremos ferrados para sair daqui.

– Vai dar tudo certo, não se preocupe logo sairemos daqui. Trouxe fogo?

Ele me deu uma caixa de fósforos. Ascendi os tocos de velas e o ambiente pareceu ainda mais sombrio. As nuvens agora já estavam por cima da casa. Tudo ficou mais escuro.

Caminhamos até a outra sala, ali na parede havia um imenso quadro com uma pintura de pessoas. Uma mulher velha, uma mais nova, ao lado de um belo homem e duas crianças, essas sentadas nos colo da mulher nova.

– Os Taurinos! – eu disse.

– Parece que estão nos olhando.

Eu olhei para o lado e tive a sensação de estar sendo observado. Eu não fiquei com medo, comecei a me sentir bem naquela casa.

A família Taurino não era assim tão assustadora. Talvez pelas roupas antigas que estavam vestindo, e todos estarem de preto, pudesse parecer alguma coisa. Mais me pareceram pessoas gentis. Pelo menos naquele retrato.

– O que realmente estamos procurando? – perguntou Matheus.

– Eu não sei exatamente... espere! – uma imagem veio a minha cabeça. A imagem de um colar com um coração negro dentro da boca de uma serpente. Aquilo me causou enjôo.

Pudemos ouvir um forte tremor na casa, quando mais um trovão ecoou por aquele vale, e então começou a relampejar. Mas aquela imagem, daquele colar não saia da minha cabeça.

–Eu vou lá em cima, veja se encontra alguma coisa estranha aqui embaixo. – eu disse, já começando a subir a escada, o ranger da madeira dava a sensação de que a casa iria se desmontar a qualquer momento.

Continuei subindo as escadas sem me importar com qualquer risco, pois assim como eu havia dito, eu me sentia bem em estar ali, era como se conhecesse a casa, madeira por madeira.

Virei no pequeno corredor e segui até uma porta, vagarosamente girei a maçaneta, e a abri. Meu coração parecia saltar do peito. Era um quarto de casal, com uma cama velha que estava quebrada, na frente dela uma penteadeira com o espelho todo quebrado. Andei até ela e me vi em vários pedacinhos e ouvi uma voz soar no meu ouvido:

Abra!

Lentamente abri a primeira gaveta da penteadeira e ali havia uma pequena caixa, negra e pesada. Eu a abri sem dificuldade e ali estava um colar de cordão dourado, cujo pingente era um coração negro do tamanho de uma tampa de um refrigerante, e ela estava dentro da boca de uma serpente prateada.

– Mais o que é isso? – indagou Matheus, ao entrar no quarto.

–É um colar, acho que da família Taurino.

– Estranho isso estar aí, se é da família eu não sei, pois como eu tinha dito a você, o pessoal da escola sempre vem aqui e esse colar provavelmente já teria sido pego.

–Pensei isso também, no entanto tenho a sensação que era pra eu achar esse colar, e não outra pessoa. – eu disse espantado.

– Melhor irmos embora, está começando a chover.

Coloquei o colar no bolso e saímos da casa rapidamente e entramos no carro. Uma fina chuva caia, ficando cada vez mais forte. Matheus dirigia muito bem. Apesar da forte chuva e de estarmos numa estrada.

Nós decidimos então ir a casa dele, já que provavelmente minha mãe estaria em casa, e não me ver na escola e ainda mais ao lado de Matheus seria a morte para ela.

Na casa dele, fomos para o quarto que ficava ao lado do quarto de Júnior, que estava fechada. Matheus me contou que desde o dia do acidente, sua mãe trancou a porta e ela nunca mais foi aberta.

– Tenho coisas minhas lá dentro e não posso pegar por conta disso. – comentou com a voz embargada.

Já no quarto, sentamos na cama. A chuva ainda estava forte, trovões e raios persistiam em deixar aquele temporal mais assustador. Matheus ligava o computador dele enquanto eu tirava umas peças de roupas da cama, o quarto dele era bagunçado. Sentado na cama eu retirei do bolso da jaqueta o colar e simplesmente fiquei o admirando.

– Vamos entrar na internet e ver o que achamos sobre esse colar...

– Está bem!

Enquanto o computador iniciava, ele levantou da cadeira e veio até mim, e me deu um forte e um delicado beijo.

– Eu já não aguentava mais! – disse ele sussurrando em meu ouvido.

Quando ele se aproximava de mim era algo tão impressionante o que eu sentia. Algo mágico e surpreendentemente maravilhoso. Era como se o mundo parasse de girar. E quanto seus lábios tocavam minha boca, parecia que algo explodia em mim. Ele me fazia bem, e eu sentia que fazia bem a ele também.