Minha tia, depois de um tempo, trouxe bolo de laranja e um copo de leite. segundo ela, sabia que Matheus estaria dormindo, por conta do chá que trouxera momentos antes, e que eu não iria comer. O que de fato era verdade, pois eu não sentia fome. Ela sentou na outra cama, enquanto me forçava a ingerir alguma coisa e então eu perguntei se poderia ir para fora da casa. Ela autorizou, mas enfatizou a importância de eu não sair dos arredores daquela casa misteriosa. Ao passar pela sala e ir para o jardim, vislumbrei uma noite fria e linda, com poucas nuvens, um vento suave e gélido, e percebi que aquela casa me era familiar.

Eu estava na minha cidade. Próximo ao bairro que eu morava. A casa não era grande, pelo menos não por fora. Tinha um belo jardim na frente, com uns banquinhos feitos de troncos. Eu sentei num deles e fiquei apreciando a lua.

Fiquei ali sentado, observando as estrelas, e os desenhos que elas formavam. Imaginava-os apenas, nunca de fato consegui ver nada, apenas pontos brilhantes no céu escuro. Ora olhava ao Colar do Parvo, ainda em meu pescoço, ora olhava na rua e via as pessoas passarem. Eu me sentia um tanto quanto sozinho e tentava entender o porquê daquilo tudo. Qualquer um que soubesse das coisas que eu fiquei sabendo, ficaria louco. Poderiam me achar estranho, mais eu estava encarando tudo tranquilamente. O que de fato me perturbava era o fato de nada se encaixar com Júnior, o que era a minha única preocupação, e eu temia comentar isso, com qualquer pessoa daquela casa.

– Olá! – disse uma voz doce ao fundo. Era Nathan que se sentou ao meu lado.

– Olá!

– Essa noite está bela.

– Sim está tranqüila, o que me assusta!

– Não se preocupe. A casa é protegida, os não-mágicos não podem nos ver, quem dera os exilados.

– Engraçado, eu me lembro dessa casa, pensávamos que era apenas abandonada, e no entanto, vocês moram aqui. Eu nunca os vi na cidade.

– Usamos disfarces, parecemos aos outros como pessoas normais e aqui somos apenas o que somos. O difícil é manter-se assim. Sendo o que você não é, em um único deslize você muda na frente deles, e então eles surtam!

– Deve ser engraçado.

– Ah, sim. Realmente é... até o momento que eles chamam você de demônio, ou algum tipo de aberração.

– Demônios? Eu não acredito nisso.

– Deveria, eles também existem. De uma forma bem diferente como é dita. Mais estão por toda parte, seguindo os puros. Vampiros de poder, apenas isso.

– Vampiros sugadores de sangue. – eu disse rindo. Eu já nem me importava se ele dissesse que eles realmente existissem.

– Não os nossos, sugam apenas a sua vitalidade. O que seria a mesma coisa. Já me deparei com alguns por minhas viagens pelo mundo. Ir e vir para um bruxo é a melhor coisa que existe.

– Percebi! – eu disse segurando o Colar do Parvo, que tinha um longo cordão.

– Você tem noção do poder que esta carregando? – disse ele.

– Confesso que ainda não.

– O Colar do Parvo é o que realmente importa, dentre os artefatos. Logicamente que os outros somam forças com o colar, mais apenas o colar, já é de grande valia. Com eles você pode conseguir o que quiser. Mas não podemos esquecer de que esse coração, essa pedra, era o coração de um homem, algo real. Nunca poderíamos saber como ele reage a cada ação que toma. Ele simplesmente é algo que no nosso mundo, é inacreditável.

– Compreendo. Eu posso desejar qualquer coisa?

– Digamos que sim, ele te dá opções e formas de pedir. Jamais o primeiro pedido a menos que realmente seja preciso, será atendido. Entenda, ele não é como uma lâmpada mágica. É através do teu corpo, da tua mente e do seu coração que ele ira realizar o que deseja.

– A coisa é bem mais complexa do que se possa pensar. Sem falar na responsabilidade.

Nathan era educado, pelo menos ali. Totalmente diferente de quando nos conhecemos.

– Fique mais um pouco, a lua irá iluminar por mais algum tempo. Não tarde a entrar.

– Está bem!

Ele então me deixou sozinho, e eu ainda olhando para a lua. “É através do meu corpo, da minha mente e do meu coração que ira realizar o que quero.” Logo, pensei em algo que eu mais queria, entender o porquê que Júnior tinha aparecido para mim na delegacia.

Uma luz branca, no portão, veio se aproximando e aquilo me chamou atenção. Conforme caminhava na minha direção, ganhava forma. Cada passo que dava até mim, mais forma ganhava. Até que enfim, chegou ao meu lado e se sentou.

– Como vai amigo? – era Júnior.

Não tive medo como da primeira vez. Já não sentia medo de muitas coisas. Apenas suspirei e o olhei firmemente.

– Eu sinto tanto! – não podia sentir medo, mais a tristeza ficou evidente.

– As coisas acontecem por motivos inexplicáveis. Eu é que sinto por ter aparecido para você daquela forma. Eu sei que lhe assustei. Desculpa!

– Não peça desculpas Júnior. – eu chorava – Oh, por quê? Isso dói tanto... essa dor... me falta o ar.

– Não sinta dor pelo que aconteceu, você não teve culpa de nada.

– Eu sei que não tive...

– Então deixe as coisas acontecerem. Eu estarei sempre perto de ti, e farei o que puder para lhe ajudar para que a minha alma possa descansar.

– Promete?

– Eu prometo. E cuide de meu irmão. Ele sempre te amou... sempre!

A imagem de Júnior foi esfumaçando novamente até que sumiu. Eu sabia que aquilo só podia ser porque o Colar do Parvo me dera. Júnior não havia me explicado muita coisa, apenas falou o que tinha que falar. Ainda fiquei com mais perguntas sobre a questão dele aparecer para mim, e me sentia repelido em comentar isso com alguém.

Resolvi então entrar, e quase todos já estavam em seus quartos. Na sala, apenas Kauvirno, lendo um livro.

– Sente-se Kayo. – disse ele educadamente – Certamente se eu puder responder, e se for a hora certa, eu responderei suas questões, mas não se apegue a nada que você ainda não tem capacidade para entender, é um mundo novo, e é preciso paciência para encarar os fatos e assimilá-los de forma a compreender o que se passa.

– Eu nem sei por onde começar. São tantas perguntas...

Kauvirno me olhou atentamente, fechou o livro que estava lendo e colocou na escrivaninha ao lado do sofá onde estava sentado, se ajeitou e me encarou.

– Comece pelas questões mais simples, é como aprender a ler e escrever. Jamais o professor lhe dará física, sem que você saiba ao menos somar. – ele suspirou e continuou a me encarar, esperando eu dizer alguma coisa.

A questão era o que perguntar, no entanto eu tinha que ser seleto, eu não poderia perguntar sobre o colar, pois ele acabara de deixar claro, mesmo que indiretamente, que não iria responder.

– Poderia começar me dizendo sobre o que é ser um vigilante?– essa nem longe era uma pergunta, no entanto me pareceu a mais oportuna no momento.

Kauvirno respirou fundo novamente e então falou:

– Ser um vigilante é ser leal a causa ao qual combatemos. Não somos contra as leis impostas por nossos governantes, mas também não a aceitamos. No entanto não estamos preocupados com isso, pois a nossa única causa é evitar que o colar, preso ao seu pescoço, seja encontrado e usado de forma a ameaçar a todos. A corte sabe de nossa existência, no entanto não oferecemos riscos. Obviamente que eles mal sabem que usamos da tal magia que eu te falei para termos nossos poderes intactos, se descobrissem, seriamos também caçados e ditos como desertores, dignos de pena, e de morte.

– Acho que compreendi!

– Mais alguma pergunta?

– Varinhas?

– Necessárias, mas não é o fator principal de nossa magia. A magia esta em cada ser, e quando conseguimos com que ela flua, nós acabamos por precisar de artefatos que sejam capazes de centralizar e capturar essa energia vital. Poderia ser uma pedra, um anel, como muitos usam. Não é necessariamente uma regra usar varinhas. Eu, seu pai e os gêmeos, usamos bengalas, mas transformamos nossas varinhas nelas. Causa status e mostra o grau de dignidade de cada bruxo. Ela acaba se transformando na índole de cada ser. Por serem mais bonitinhas, - Kauvirno riu nesse momento – as mulheres acabam usando as varinhas, pelo resto de suas vidas, e os homens até seus aproximados 25 anos, mas como eu disse não é uma regra. São artefatos de poder, assim como o colar ao qual você usa em seu pescoço.

Eu queria perguntar sobre o colar, mas a forma como Kauvirno me olhava, tentando adivinhar o que eu iria perguntar estava me sufocando. Ele ansiava por dizer: não é o momento de falar sobre isso, eu podia sentir. Mordi o canto do lábio.

– E quem são esses governantes?

– Membros, como eles se referem, da Suprema Corte. Conforme o tempo foi passando, e os bruxos, além de irem evoluindo com seus feitiços e encantos, foram aumentando o numero populacional no mundo, achou-se certo criar primeiramente um conselho, que originou a suprema corte, na verdade um bando de hipócritas que ditam regras e nós, pobre mortais temos que seguir, para que a ordem seja mantida. Os não-mágicos têm seus governantes, vivendo em democracia. Nós temos os nossos e como gostaríamos que fosse tão democrático assim. Pena que esses não-mágicos não sabem aproveitar o poder que tem em mãos.

“E como é tarde, vou terminar dizendo, para que sua ânsia por saber seja ao menos, diminuída e você consiga dormir em paz. O que esta acontecendo é algo inimaginavelmente grande.

Buscamos informações aqui e ali, mas o que sabemos é que ultimamente esta havendo uma grande movimentação de desertores, e até então, não sabíamos os reais motivos. Até que aconteceu o trágico acidente em sua vida, e descobrimos que aquilo teria sido obra deles, e não tardou até que descobríssemos que eles estavam atrás do Colar do Parvo. O ataque de Melissa e seu irmão, Antonius foi uma grande prova disso. Eu só espero que minhas divagações ao caso, não me leve a crer no que estou temendo. Em quem de fato está atrás de tudo isso.

Mas agora Kayo já esta tarde, e você precisa descansar um pouco. Posso ter essa aparência jovem, mas não duvide de minha idade, você me deve respeito.”

Ao se referir ao respeito, Kauvirno riu e se levantou, desejando uma boa noite a mim, ele se retirou, e eu fiquei ali por mais algum tempo, pensando a respeito de tudo o que ele havia me dito, ainda tentando encaixar as coisas. Mas eu sabia que mais cedo ou mais tarde, tudo faria sentido. Fui até o quarto, e deitei ao lado de Matheus, que dormia num sono tênue e aconchegante.