Capítulo 13 – Uriel

Ainda tonto pelo sangrento duelo que durou toda uma longa e exaustiva noite, ele, atirado ao chão do parque, tentava juntar as coisas, procurava entender os fatos. Vestido com sua armadura vermelha e com a capa cor de vinho por cima dela, lhe era difícil distinguir se tamanha vermelhidão se devia a sua cor própria, ou se fora pela terrível batalha que travara contra Ediel e muitos de seus comparsas. Ele apenas tentava compreender, enquanto segurava a espada com a mão esquerda e, com a direita, temtava estancar o intenso sangramento em várias feridas espalhadas pelo corpo, por que estava sem as asas, por quais motivos não conseguia contatar Gabriel ou até mesmo Miguel; nada fazia sentido agora. Ergueu-se para vislumbrar o horizonte. O Sol brilhava, o céu tinha um azul magnífico, que brindaria os possíveis visitantes do parque.

– Jogaram-me ao planeta bem como fizeram com meu irmão Castiel. Mas isso é contra as regras. E agora... Como voltarei?

Uriel parou suas reflexões no exato momento no qual viu um V-8, que se aproximava do local. Assim que a mulher desceu de dentro do veículo, ele a reconheceu, inicialmente por sua estatura elevada; mas depois pôde vislumbrar com maior nitidez que era ela, pela capa negra que vestia.

– Venha. Posso ajudar você.

– Como descobriu que eu estava aqui?

– Minha intuição me dizia algo a seu respeito; sabia que não podia tê-lo deixado ir sozinho ontem, quando você quis conversar com Metatron acerca dos fatos que desvendou. Porém fiquei temerosa de me convidar a acompanhá-lo; não tinha idéia do que pensaria...

– Foi bom não ter ido comigo. Os rebeldes dariam um jeito de limpar sua mente o quanto antes.

– É, tem toda razão. Venha – ela o carregou para dentro do carro e deu a partida. Os cortes nas costas, braços e pernas dele eram bastante profundos.

– Para onde iremos? – perguntou o Arcanjo.

– Para uma casa que tenho por aqui. Teremos meia hora de viagem; tentarei reduzir esse tempo. Aperte os cintos.

A demônia passou a dirigir com extrema rapidez; sabia que o caso do Arcanjo Uriel era urgente. Por isso corria de maneira tão desesperadora.

– Por que está indo tão depressa?

– Porque como faz pouco tempo que se encontra aqui no planeta, ainda possui suas habilidades angelicais, o que significa que posso reconduzi-lo ao Reino de Deus.

– E como fará isso? Irá à casa do Pai de novo?

– O ajudarei com uma bebida. Confie em mim, certo?

– Está bem.

Algum tempo depois, eles chegaram ao lar que ela habitava. A garota passou a cuidar dos machucados dele e a limpar a armadura do Arcanjo com bastante empenho.

– Como vai voltar para o Céu, não pode ir com ela suja, concorda?

– Sim, você está certa – ela passou, em seguida, a limpar a espada que ele usava. – Por que me ajuda assim?

– Castiel me fez a mesma questão. Tenho meus motivos.

– Não ficará chateada se perguntar algo a você?

– Não, o que é?

– Auxilia-me porque quer voltar ao...

– Ao Céu? Não. O ajudo porque não é certo o que fazem. Anjos ficam na casa do Senhor; demônios, no Vale – isso quando não são expulsos, é claro – murmurou.

– O que disse?

– Nada, esqueça. Bem, os ajudo porque não é justo vê-los perder o contato com o... – a mulher parou sua fala, porque quase O chamara de Pai – ... com Deus de uma forma tão brutal. E quando vi você no parque, perdido, eu senti que devia fazer algo, bem como faço por seu irmão. Eles o jogaram para cá, a fim de que não dissesse a Metatron o que vem por aí – comentou. – Só que agora essa batalha é minha também. E estou do lado de vocês.

Uriel estava impressionado com tudo que ela falava, com a determinação que demonstrava, com o modo firme com que se portava.

– Agradeço por todo auxílio – falou o Arcanjo. – Deus saberá recompensá-la, fique certa disso.

– Não quero nada dEle, obrigada. Apenas desejo que vocês retornem seguros para casa. Agora permaneça aqui quietinho e me espere; não tardarei.

– Aonde vai?

Já disse... Não tardarei a voltar. Confie em mim.

O Arcanjo quis ir atrás dela. No entanto a demônia desapareceu tão rápido – prevendo que ele faria todo possível para segui-la – que Uriel não teve a menor chance de fazê-lo; seus poderes angelicais sumiam a cada minuto. Um dos guerreiros mais poderosos do Senhor dependia, agora, de uma criatura tida como demoníaca, que estava disposta a defendê-lo com seu próprio sangue.

Sem perder tempo, ela decolou, usando muito de sua energia, para o Terceiro Céu, local onde havia o líquido de que necessitava. Conforme o que estudara há muito, se obtivesse meio litro dessa bebida e a entregasse, em um prazo de dez horas, para um anjo, de qualquer hierarquia, que perdesse seus poderes, ele voltaria a tê-los. Mas não era uma tarefa tão fácil como parecia ser; a garota teria de explicar a Rubiel por que precisava do líquido. E tendo em vista que ela provinha do Vale dos Caídos, o anjo jamais acreditaria em suas palavras.

A mulher, entretanto, tentaria conversar com o guardião do templo onde a bebida ficava escondida, pois sabia que ele fazia parte do grupo que prestava assistência e serviços dos mais diversos a Uriel.

Após atravessar um majestoso cenário no qual havia inúmeras árvores e frutos dos mais diversos tipos, a demônia se deteve em frente ao salão onde estava o que precisaria levar a Terra.

– Anjo Rubiel, servo do Todo-Poderoso – gritava, a plenos pulmões. – Venha à minha presença.

Ele conhecia aquela voz. No entanto não acreditava que pudesse ser quem imaginava. O Arcanjo Gabriel interrompeu de imediato a reunião emergencial – da qual apenas os dois participavam –, e pediu ao anjo que fosse verificar se era quem pensavam. E ambos estavam certos. Ao vê-la, Rubiel se limitou a arrastá-la com brutalidade para dentro do salão e, cravando uma lança no ombro dela, perguntou:

– Que fez com meu irmão?

– Acalme-se, colega – falou Gabriel. – Vamos questioná-la sem usar de violência.

A garota, por sua vez, puxou a lança que ficara cravada no ombro, e tratou de estancar o sangue que brotava da ferida. Após limpar a arma, ela a alcançou a Rubiel.

– Creio que pertença a você – falou, enquanto entregava, com serenidade, a arma ao guardião do templo.

Por que está aqui? – perguntou o assistente de Uriel, agora mais calmo.

– Necessito de que me ajudem – a demônia lançou um rápido olhar para ambos. – Sei onde o Arcanjo Uriel se encontra. Se duvidarem de minhas palavras, posso levar vocês até ele.

– Você o prendeu? Quem a ordenou a fazê-lo? – questionou Gabriel.

– Não, Arauto. Jamais o prenderia; não possuo poder para tanto, embora eu tenha grandes habilidades. Uriel caiu na Terra. E preciso que me dêem uma bebida que revitalizará por completo as habilidades angelicais que o nobre Arcanjo possui.

– E quem o jogaria lá, se não fossem vocês, demônios cretinos? – perguntou Rubiel.

– Alguém que manipula os registros em todo o Céu.

– Fala de Ediel? – questionou, com espanto, Gabriel.

– Sim, dele mesmo.

– É, pensando bem, faz sentido – comentou o guardião do templo. – Uriel me contou ontem, antes de sair do Quarto Céu, que iria falar com Metatron sobre algo muito sério; quando lhe perguntei qual era o tema, me disse que tanto eu quanto outros anjos saberíamos do assunto depois; era algo bastante delicado, e dizia respeito a Ediel, irmão Gabriel. Mas hoje, para minha surpresa, quando questionei Metatron sobre o conteúdo da conversa que tivera com nosso irmão, ele me disse que não o vê há um bom tempo.

– Tem alguma coisa estranha acontecendo aqui – comentou Gabriel. – Ediel anda distante, e sei que Uriel o observava com maior atenção há um bom tempo – O Arauto fez uma pausa. – Dê-lhe o montante da bebida de que precisa, Rubiel. Mas com uma condição, demônia.

– Qual condição?

– Quero ir com você até onde está Uriel.

– Claro! – exclamou. – É muito justo. Levarei você até lá. E Rubiel pode ir também.

Os dois não acreditavam nela; eles tinham em mente libertar o irmão aprisionado e, logo após, trazê-lo de volta à casa do Pai. A preocupação deles era tanta se seriam ou não atacados pela moça, que saíram armados com tridentes e com lanças. Mas assim que os três chegaram à órbita terrestre, foram parados por Abdiel.

– Demorei a aparecer, sua cretina desgraçada. Confesso, porém, que você me atrapalha ao extremo. E esses dois, para onde vão? – o anjo caído apontou para Gabriel e para Rubiel. – Passear na floresta enquanto Ediel não vem?

Abdiel partiu para um feroz ataque contra os seres angelicais; a demônia, contudo, os protegeu, desferindo uma poderosa descarga elétrica no anjo.

– Tem uma nova profissão agora? – ele debochou. – Samael a demitiu por não cumprimento de suas tarefas, pensa que não sei o que ocorre no Vale? E então, quer uma luta igual, pegue seu tridente, pois tenho o meu; e estou louco para destroçá-la, maldita!

A mulher atirou o frasco que continha o líquido de que Uriel precisava nos braços de Gabriel; colado à garrafa, havia um papel no qual estava o endereço de onde teriam de ir; a demônia contava com eles agora.

– Voem, corram, façam algo, menos permanecer aqui! – ela se lançou à batalha contra Abdiel. A Rubiel e a Gabriel não restava mais nada; apenas irem ao encontro do irmão.

Assim que pousaram no pátio da residência, chamaram pelo Arcanjo do raio rubi, que foi atendê-los, surpreso.

– Que bom vê-los! Como me acharam... – Uriel parou sua pergunta. – A garota está bem?

– Ela falava sério – comentaram em uníssono. – Nós não devíamos tê-la deixado lutar sozinha – disse Gabriel.

– O que querem dizer com isso? Onde está a criatura, o que houve com ela, meus irmãos?

– Vínhamos para cá nós três, quando fomos parados por Abdiel – falou Rubiel. – Ela, então, permaneceu na órbita da Terra, a fim de lutar contra ele e de distraí-lo para que não nos seguisse até aqui.

– O quê! Como puderam fazer isso?

– Não acreditávamos que a demônia falava a verdade, irmão – esclareceu Gabriel. – Ela chamou por Rubiel às portas do salão onde há a bebida que trará de volta seus poderes e suas asas; contou-nos que você estava em apuros, e decidimos, por bem, acompanhá-la até o planeta azul. Tome o líquido, para que possamos retornar à órbita para auxiliá-la.

Uriel sorveu toda bebida de um só gole e permaneceu pensativo; respirou fundo, olhou para o céu e anunciou:

Há uma nova rebelião; temos de avisar Miguel e de nos preparar; a coisa ficará complicada... – o Arcanjo parou de falar, porque Ediel vinha logo atrás, com cinqüenta anjos de sua falange pessoal, todos armados com espadas em punho.

– Está difícil conter vocês – comentou. – Porque a cada dia surgem insolentes Arcanjos que pretendem me deter. Mas isso acaba aqui.

Os rebeldes partiram para cima deles, transformando o pátio em um verdadeiro campo de batalha. As chances dos anjos leais a Deus, porém, eram escassas. Mas todos lutaram com imensa bravura. Até mesmo Uriel, que já sentia os efeitos benéficos que o líquido que bebera lhe trouxera, pegou em armas. Mas o combate se mostrava cada vez mais difícil; esmagados e sem qualquer tipo de reação, Rubiel, Gabriel e Uriel teriam sido aniquilados se ela não tivesse chegado, agora acompanhada por Castiel.

– Garotos, venham se divertir um pouco – comentaram ambos, dirigindo um olhar aos rebeldes. O anjo e a inseparável amiga se lançaram, ele com a espada, e ela com o tridente em punho, a uma luta bastante desigual. Como, porém, precisavam tirar o foco dos três novos amigos, pois Gabriel estava bastante ferido, eles se propuseram a duelar com toda a força de que dispunham. Somente Castiel eliminou quinze anjos; a moça, por sua vez, foi cercada por um numeroso grupo de vinte e cinco soldados.

– Ajude seus irmãos – falou ao amigo. – Darei um jeito neles.

– Não posso deixar você aqui...

– Faça o que peço, por favor, Castiel. Os leve, de carro, à casa de que falei no caminho para cá.

– Está bem – mesmo contrariado, o anjo carregou Gabriel para o V-8, enquanto que Rubiel levou Uriel. O jovem, por sua vez, deu a partida no veículo e comentou, com um olhar sereno que o caracterizava:

– Não se preocupem, queridos irmãos; sei para onde temos de ir.

A garota, por sua vez, era massacrada em um canto do pátio. Os anjos atearam fogo no local; sem, contudo, se recordarem de que ela, por ter morado no abismo sombrio por várias gerações, o dominava com maestria.

– Idiotas, querem morrer? – comentou. – Darei um destino generoso a vocês. Fiquem aí no fogo até que tenham sido consumidos por completo – falou, de maneira irônica.

Ediel, por outro lado, acabara de deixar a casa; o líder foi acompanhado por outros nove dissidentes. Agora o plano deles não seria mais um segredo inviolável acerca do que fariam. Os rebeldes não teriam escolha. Se o outro lado queria guerra, era uma sangrenta e amarga guerra que eles iriam colher.

A mulher saiu do lar que vivera, durante muito tempo, com lágrimas nos olhos. Mas isso era a guerra: perder e ganhar. E Castiel e ela tinham grandes aliados por perto agora. A demônia, porém, não foi muito longe em seu lânguido andar. Caiu instantes depois, completamente exaurida. Arrastou-se, então, para um prédio abandonado. E lá permaneceu imóvel.

Após retirar a proteção energética que a circundava, quem a encontrasse naquele estado vislumbraria um ser coberto de sangue. Ela ocultou tal detalhe quando, na feroz batalha contra Abdiel, Castiel apareceu para salvá-la; caso o amigo que tanto estima não surgisse, certamente estaria aniquilada agora.

Deitada no referido local, a mulher de negro parecia aguardar o momento no qual morreria. Sem ter o que fazer, ela passou a se concentrar mentalmente e emitiu ondas de pensamento a Castiel; sem, contudo, ter a certeza de que ficaria viva.