O Anjo Perdido

Capítulo 14. A Purificação de um Ser Sombrio


Capítulo 14 – A purificação de um ser sombrio

Os quatro anjos se encontravam próximos ao endereço dado pela demônia, quando Castiel fazia o retorno pela rua na qual dirigia. Rubiel, Gabriel e Uriel conversavam sobre qual atitude tomariam com os rebeldes, quando foram pegos de surpresa pela mudança repentina de rota do veículo.

– Está tudo bem, irmão? perguntou, intrigado, Gabriel.

– Senti algo estranho... Não sei distinguir bem o que é... Só sei que nossa amiga necessita de auxílio.

– Então vamos voltar – sugeriu Uriel. – Ela merece toda ajuda possível, porque tem me surpreendido em muitos aspectos.

– Como assim? – perguntou Rubiel.

– Foi essa a moça que me invocou no dia da Reunião Geral dos arcanjos, se lembra, Gabriel? – o ser alado assentiu. – Desde o início a mulher objetivava ajudar nosso irmão Castiel a retornar a casa do Pai. E eu a encontrei às portas do Quarto Céu ontem. Eu iria falar a Metatron sobre a grave rebelião que descobri. Ela, por outro lado, se arriscaria ao extremo em ir aos aposentos de Ediel, a fim de buscar a arma de guerra que Castiel empunhava agora pouco. Eu, porém, não concluí a missão a que me propus. Fui parado por vários anjos rebeldes – cerca de dez mil; duelamos por uma noite inteira. Eliminei, com indescritível pesar, mais de mil e quinhentos deles, mas foi Ediel, pessoalmente, que me atirou a Terra. Enquanto que a garota resgatava sua espada – Uriel dirigiu um olhar a Castiel, que mesmo guiando o carro, se mostrava atento a tudo que o arcanjo falava. – Ative-me a tais trarefa. Depois disso, obviamente, não a vi. Somente hoje pela manhã, quando foi ao parque me buscar. Disse-me que sabia como me ajudar e me pediu para confiar nela. E confiei, mas a deixei só. Isso não é justo. A demônia suporta a responsabilidade de uma terrível guerra secreta que ocorre no seio de nossa civilização há muito tempo, e nós nem sabíamos disso; sequer suspeitávamos que você tinha vindo parar aqui; irmão Castiel, me desculpe pela falha – comentou, o tom triste.

Não há falhas, arcanjo Uriel. Vocês simplesmente não sabiam de nada; agora que têm a real noção do que está por vir, sugiro que se preparem. Ah, e apertem os cintos! – o anjo passou a dirigir a cento e vinte quilômetros por hora, mesmo que soubesse do perigo que era fazê-lo dentro de uma cidade movimentada. Mas como precisava correr, pois sentia que a energia da amiga enfraquecia a cada instante, ele não pensava em outra coisa; somente em resgatá-la.

Enquanto os amigos corriam contra o tempo, a garota agonizava. O sangue que circulava em suas veias, e que era expelido com todo o vigor orgânico, já inundava um pequenino canto do prédio abandonado.

– Esse será o fim mais adequado para quem se dedicou tanto a uma causa angelical? – Perguntou-se, aflita. – Talvez – completou, com amargura, a reflexão. As forças que usara para chamar o amigo tinham se esvaído; agora era só esperar para ver o que iria acontecer.

Quieta no mesmo canto e com uma enorme possa de sangue a aquecer-lhe a região pulmonar – gravemente afetada na luta contra Abdiel –, ela esperava para ver quem chegaria primeiro: ou a morte, ou Castiel. Nenhum deles, porém, veio até a moça. Somente um anjo alto, de postura séria e de armadura negra, pousou próximo a demônia.

Feriu-se muito na última batalha. Droga... por que não me chamou, menina dos olhos negros? – ele retirou o ensangüentado óculos escuros dela e, gentilmente, o limpou.

A mulher, que se mantinha de olhos fechados, reconhecia o tom severo, contudo carinhoso. Tratava-se do poderoso Samael, que agora parecia estar mais receptivo a causa dela.

– Não... Houve... Como...

– Está bem, não se esforce. Venha comigo. Cuidaremos disso – Lúcifer estava desesperado; ele jamais saberia como ajudá-la em tão graves circunstâncias, embora quisesse muito fazê-lo. O Vale, porém, não dispunha dos recursos necessários para tal.

– Não – foi a resposta que lhe deu. A garota sabia que se adentrasse o lúgubre local, seria aprisionada pelos inúmeros demônios desertores que ainda não foram capturados e que, ao sentirem a baixa energética dela, rumariam às pressas ao sombrio abismo.

– Por quê?

– Se eu for com você... – ela fez uma pausa; a dor era enorme, e a indescritível dificuldade de respirar se somava ainda mais à sensação ruim. – As entidades que não são leais a você irão me pegar. Volte ao Vale, os procure e os prenda, Samael. É meu último pedido. E... Além do mais, acha mesmo que irei com você após ter sido atirada como fui?

– Não fale assim! Você ficará bem... – Lúcifer não disse mais nada, pois avistara o V-8, carro que pertencia a ela, sendo guiado por um jovem que reconheceu de imediato. Tratava-se de Castiel. As semelhanças físicas – cor dos olhos e do cabelo, por exemplo –, entre o anjo e o corpo físico de Samuel Wolkmmer eram enormes; isso se devia ao longo tempo em que Castiel estava na Terra.

Os quatro anjos desceram do veículo. Samael, enquanto isso, foi para o lado oposto do prédio. Ele não pretendia ter qualquer contato com os irmãos de luz. A vergonha pelos fatos passados há milênios não lhe permitiam permanecer junto a eles.

– Deus! Como não vi esses ferimentos em você antes? – perguntou o amigo, ao se aproximar dela.

– Ocultei-os a fim de que fosse embora com seus irmãos – explicou. –Agora tem quem possa cooperar com você com maiores habilidades – comentou. – Sou um demônio, Castiel... Não serei aprovada se continuar a auxiliá-lo desse modo tão próximo por muito tempo. Sei bem qual é meu lugar...

Não diga isso, as coisas não são assim. Deus vê isso tudo e irá nos ajudar. Você ficará bem e nós continuaremos juntos – Castiel fez uma pausa e dirigiu o olhar a Uriel. – Que podemos fazer, irmão?

– Levá-la ao meu templo. Somente lá poderei tratar dos graves ferimentos que ela tem – recomendou.

– Ajude-a, por favor – pediu o anjo, que a tirou de cima da possa de sangue e passou a curar alguns machucados existentes.

– Sem dúvida. Está na hora de retribuirmos todo o auxílio que obtemos dela.

Uriel a pegou no colo. Após decolar, junto a Gabriel e a Rubiel, o Arcanjo pediu a seu assistente que buscasse frutas para alimentá-la, enquanto que Gabriel iria falar com Miguel acerca dos novos fatos descobertos.

– Entre aqui – pediu a demônia, assim que Uriel e ela passaram pelo portão que Belzebu guardava.

– Você não está bem para...

– Por favor, Arcanjo. Apenas entre e confie em mim – interrompeu-o.

Mesmo aflito, Uriel atendeu ao pedido feito. O sangue continuava a cair-lhe dos inúmeros ferimentos, entretanto não devia fechar os olhos ali.

– General, venha cá –– gritou, ainda que lhe doessem os pulmões.

– Sim, Chefe – respondeu ele prontamente, poucos instantes depois de ser chamado.

– Vá a Terra, no prédio abandonado onde costumávamos fazer os rituais de sangue... Castiel está lá sozinho. Somente Samael se encontra no local. Mas como sei que o Primogênito não ficará por muito tempo por lá, peço que faça a segurança de meu amigo... Espere-me no prédio mesmo. Não tardarei a voltar.

– Sim – Belzebu cumpriria suas ordens com a dedicação de sempre, ainda que soubesse de que ela fora expulsa. Tal fato não lhe importava, pois a admirava pela força, garra e pela determinação; e mesmo que, estranhamente, estivesse agora amparada pelo Arcanjo, o anjo das trevas somente desejava servir-lhe da melhor maneira possível.

Já Uriel, enquanto subia ao Quarto Céu, notou que ela ficara inconsciente, devido à quantia de sangue que perdera com tamanho esforço.

Os Arautos de Deus – Gabriel, Raguel, Raphael e Uriel –, cuidaram dos diversos machucados que a mulher de negro tinha. Foi necessário que cada um deles se detivesse em uma parte específica do corpo dela, pois a situação era grave demais para que apenas um Arcanjo fizesse todo o trabalho.

Assim que terminaram de cuidar dela, deixaram-na dormindo no templo de Uriel, e passaram ao Grande Salão, construído a Miguel. Antes, Gabriel pediu que Raguel vigiasse o sono dela, enquanto a rápida conversa ocorreria.

– Rebelião? Vocês estão certos disso? perguntou, surpreso, o comandante do exército celestial, depois que eles sentaram ao redor da mesa destinada ao encontro emergencial.

– Sim – respondeu Uriel. – Tenho provas concretas do fato, irmão – contra-argumentou.

– E onde estão elas? Posso vê-las?

– Claro!

Uriel entregou a Miguel o pergaminho original onde continha detalhes dos planos que seriam arquitetados, inicialmente, por Ediel. Mas havia muito mais a ser desvendado em tal manuscrito composto pelos anjos rebeldes.

– Por isso foi indevidamente expulso do Céu, irmão? – perguntou Miguel.

– Exatamente. Como eu iria falar a Metatron sobre isso – apontou para o pergaminho. – Eles me jogaram para o planeta azul.

– E foram nossos irmãos que o ajudaram a voltar para cá?

– Também. Gabriel, Rubiel, Castiel e uma demônia.

– Uma... Entidade do Vale... Não acredito! – surpreendeu-se Miguel.

– Sim. E ela foi fundamental para que eu estivesse aqui.

– Gostaria muito de falar com o ser em questão. É possível?

– Infelizmente não no momento – respondeu Raphael. – Ela dorme no templo de Uriel.

– A valente garota duelou contra Abdiel enquanto Rubiel e eu íamos entregar o líquido necessário a fim de que o irmão Uriel voltasse a nós, Miguel – informou Gabriel. – A demônia foi ao Terceiro Céu para buscar a bebida, o que trouxe enorme surpresa a Rubiel e a mim. Depois que nosso irmão recuperou as forças e as habilidades angelicais, fomos atacados por Ediel e por um grupo de mais ou menos cinqüenta rebeldes. Castiel e a mulher de negro apareceram para nos auxiliar; como, porém, a luta ficou complicada para nós todos, ela pediu que fôssemos a um lugar que utiliza como abrigo. Mas voltamos para buscá-la depois.

– Hum... – Miguel respirou fundo. – Mas quem é essa criatura que coopera conosco com tamanha garra? Posso apenas ir vê-la, sem dirigir-lhe a palavra, irmão Raphael?

– Pode, claro.

Os Arcanjos se levantaram e foram ao templo de Uriel. Quando lá chegaram, Miguel ficou ainda mais surpreso, pois sabia quem era ela.

Após a observar por um longo tempo, o comandante do exército angélico pediu a Raguel que convocasse os outros Arcanjos para uma reunião de emergência com maiores detalhes a respeito de tudo que lhe relataram. Caso fosse necessário, a ordem era de tirá-los das respectivas missões que lhes foram atribuídas; medidas drásticas teriam de ser tomadas contra os vários desertores, cujo número exato estava além da compreensão dos anjos de Deus.

– Uriel, eu deixarei você de fora da longa reunião que teremos; gostaria de que cuidasse dela enquanto continuar a dormir por aqui. Após, compareça ao meu templo, certo?

– Sim, Miguel.

Os Arautos se despediram de Uriel; Miguel, contudo, deu mais uma rápida olhada para a moça; ele ainda não acreditava que aquele ser tomaria um partido tão inesperado na batalha celestial.

– Só mais uma coisa – falou o Arcanjo. – Tem alguma idéia dos motivos que a fizeram lutar do nosso lado, irmão?

– Não – respondeu, em um tom franco, Uriel. – Se dissesse a você qualquer possibilidade de resposta, não seria correto de minha parte.

– Entendo. Falarei com ela depois, ou quem sabe mais tarde. É fundamental que a demônia descanse agora. Dê-lhe de comer e lhe proporcione todo o conforto de que necessite, está bem?

– Sem dúvida. Se precisarem de algo, chamem Rubiel para a reunião; ele estava conosco na Terra.

– Excelente idéia. Até logo, Uriel.

– Até, irmão Miguel.

Cerca de cinco horas se passaram desde a conversa que os quatro principais Arcanjos das hostes angélicas tiveram. A garota, entretanto, não tinha acordado ainda. Mas foi após um pesadelo que ela despertou, em um sobressalto. Ao sair para o jardim sem o óculos escuros, levou as mãos ao rosto de imediato, pois se dera conta de que estava no templo de Uriel. A mulher voltou à sala principal do local e perguntou ao Arcanjo:

– Como posso estar assim tão bem, se quase morri nas lutas que travei contra Abdiel e contra os rebeldes no planeta Terra?

– Você foi tratada por Raphael, Raguel, Gabriel e por mim – esclareceu.

– Deus! – exclamou. – Isso... Não pode ser verdade!

– Como não, se está curada?

– É. Eu sei. Mas sou um demônio, Fogo de Deus. Como podem me tratar dessa maneira?

– Uma entidade maligna que nos auxilia com muita dedicação.

– Tenho meus motivos para isso.

– Pois é, percebo que tem motivos de sobra para tomar tais atitudes.

– Falando nisso, onde está Castiel?

– No prédio no qual você se encontrava quando não se sentia bem. O General do abismo continua lá com ele, exatamente como lhe pediu.

– Ótimo. Então vou indo. Preciso vê-lo...

– Não se apresse. Tanto Castiel quanto Belzebu sabem que você se encontra aqui e que está bem. Coma algo antes de descer; venha – Uriel a segurou amavelmente pelo braço e a conduziu a outra sala do grande templo que o Todo-Poderoso construiu a ele. Lá havia uma enorme mesa, onde foram colocados inúmeros tipos de frutas e grande quantidade de água fresca.

Uriel pegou algumas frutas para si, enquanto que a demônia olhava para tudo com estupor e admiração.

– Alimente-se; essas são frutas que restabelecem a energia de quem as come.

– Mas não são de uso exclusivo...

– Não. Todos podem nutrir-se delas, desde que estejam em um processo de purificação.

A mulher se ergueu assustada. Em seu íntimo ela sabia que passava por algo desse tipo, mas era complexo demais admitir uma mudança tão drástica.

– Sente-se. Sinto que quer e que necessita se alimentar – falou o Arcanjo. – Não tema; ninguém a machucará aqui.

– Sei disso. Sou muito agradecida a você por tudo.

A garota tornou a se sentar e passou a nutrir-se com as frutas e a beber a água que Uriel lhe ofertara.

– Gostaria de pedir uma coisa a você, se for possível?

– O que é?

– Quero agradecer a todos que me auxiliaram por aqui.

– Isso será feito. Amanhã os levarei até você.

– Obrigada por tudo... Sei que já falei isso, mas como não sei mais o que dizer para expressar minha alegria, apenas repito... Sou muito grata a você – ela estava emocionada; o fato de que se alimentara em uma mesa sagrada reacendeu as esperanças em seu coração. Por mais que soubesse de que não teria para onde ir assim que a batalha terminasse, ter amigos tão queridos lhe trazia inigualável conforto. Após abraçá-lo, a moça rumou em direção à porta.

– Vai até onde Castiel está?

– Sim, sem dúvida.

– Então vamos. Não deixarei você cruzar sozinha esses portões.

Todo encanto que sentia frente à tamanha atenção que recebia era indisfarçável. Agora, mesmo que de um modo estranho, a confusão de ser ou não filha de Deus se tornava ainda mais forte dentro de si.

Ao chegarem no prédio onde Castiel e Belzebu se encontravam, ela pediu ao General do abismo que voltasse ao trabalho no Vale. Antes, porém, o chamou para um diálogo a sós.

– Desculpe-me por ter tirado você de suas funções. Se houver problemas quanto a isso, peça ao comandante do local para vir falar comigo.

– Não há porque me pedir desculpas, Chefe.

– Não sei se pode me considerar assim ainda.

– Mesmo que tenha sido expulsa, sempre serei leal a você – Belzebu fez uma reverência. – Cuide-se.

– Você também.

Assim que retornou ao prédio, a demônia não encontrou Uriel por lá. Como Castiel percebeu a interrogação em seu olhar, o anjo esclareceu:

– Meu irmão foi convocado a ir ao Quarto Céu pelos outros Arcanjos. Talvez ele volte mais tarde.

– Ótimo. Então está mais do que na hora de irmos embora dessa porcaria de lugar – ela consultou o relógio. – Quatro e meia da tarde! – exclamou. – A que horas você terá de regressar para a casa dos pais de Samuel?

– Não irei para lá hoje. Ficarei por todo o final de semana com você. Só preciso de que me leve lá amanhã bem cedo. Fiquei de lhes dar notícias e de buscar algumas roupas.

– Hum. E o que falou a eles?

– Que estou... – Castiel fez uma pausa e baixou a cabeça. – ... Saindo com você.

– Menino, menino! Tem sido tão criativo que pode, assim, despertar minha criatividade, sabia?

Eles riram bastante do que fora inventado pelo anjo, e depois permaneceram em silêncio por alguns instantes.

– Venha – comentou ela. – Vamos embora desse local maldito – A demônia entrou no carro, esperou o amigo se acomodar, deu a partida no V-8 e, ainda em silêncio, o guiava. Após um tempo de viagem, tornou a falar:

– Ficará chateado se eu perguntar uma coisa?

– Não, pode perguntar.

– Onde está Samael?

– Deve ter voltado ao Vale. Ele me observou por um bom tempo e subiu depois. Por que eu ficaria chateado por responder isso a você?

– Porque estamos saindo, ora – debochou ela. – Posso levar a sério o que falou a eles, garoto –Castiel ficou tão envergonhado com a observação feita pela mulher, que seu rosto se ruborizou. Ela, então, disse: – Relaxe, anjão. Só levei tanta pancada por hoje, que devo estar meio doida da cabeça.

– Estamos no fim de tudo – ele sorriu. – Logo você poderá voltar para o Vale.

A garota engoliu em seco. Por mais que quisesse lhe contar o que a incomodava tanto assim, ela resistia em fazê-lo. Seria demais colocar mais um problema na cabeça do amigo; ele já tinha os dele para cuidar. E era o que bastava no momento.

O veículo parou em frente a uma grande residência – maior do que a que eles ficaram antes. Ambos pegaram suas mochilas, desceram e entraram nela.

– Sente-se ali enquanto vou guardar o carro – ela apontou para o sofá onde Castiel deveria se acomodar. Em poucos minutos a amiga estava de volta. E, bem como o anjo fizera, se sentou ao sofá.

– Muito cansado? – perguntou, iniciando um diálogo.

– Não muito. Só fiquei preocupado com você. Achei que não nos veríamos mais comentou, sem olhá-la nos olhos.

– Isso não vai acontecer, não agora – garantiu.

– Queria que nunca acontecesse – murmurou, o tom insatisfeito.

– É? Por quê?

– Porque gosto de você. Não sei se conseguiria passar a vê-la como uma demônia e ignorar tudo que estamos vivendo na Terra. Quando eu subir terei de me doutrinar novamente; aprendi a ser humano.

– Isso não é errado – disse, por fim, após um longo suspiro.

– Não? – questionou, um tanto surpreso.

– É claro que não. Desde que consiga equilibrar as ações, pode ter os sentimentos que quiser.

– Fala por experiência própria? – ele continuava curioso.

– Não. Falo porque não é o que eu faço. Tento, mas sou incapaz de me equilibrar nesse sentido.

– Só não quero passar a tratar você como uma entidade maligna que terei de combater. Não é assim que a vejo – explicou, de maneira carinhosa.

– Nem imagina quão importante é saber que não me vê assim. E o que quero é ajudar você a se reencontrar com Deus.

– Por que não consegue vê-Lo também? É porque pensa que O perdeu? – o tom da pergunta soou inocente.

A demônia suspirou pesadamente. Não sabia se deveria tocar no assunto agora. Talvez fosse danoso para Castiel, que passava por um processo evolutivo bastante desgastante, saber de toda sua revolta para com o Criador.

– Vou contar uma história. Posso? – ela resolveu criar uma metáfora para melhor explicar tudo que sentia.

– Claro!

Castiel se aproximou ainda mais dela. Só agora ele pôde observar toda obscuridade existente em seus olhos. Mas também havia beleza nas orbes enegrecidas.

– Havia um jardim. Nele viviam dois belos pássaros. Um recebera toda atenção e força de quem o criou. O outro, por sua vez, tinha de buscar os recursos de que dispunha – se é que havia onde buscá-los. Ambos, contudo, viviam inicialmente felizes. O segundo pássaro, porém, queria ser livre; voar por aí sem impedimento algum. Ele era curioso e tinha um espírito independente. Já o primeiro, sempre abnegado no cumprimento das tarefas do quotidiano, procurava, contudo sem sucesso, mostrar ao seu companheiro que a liberdade não estava em voar por onde quisesse, em ser destemido e independente. Eles começaram, então, a trilhar seus próprios caminhos. A primeira ave seguiu, sempre obediente e feliz; mas a segunda, que se desgarrara para outros campos, descobrira que seu companheiro tinha razão. O único problema era voltar ao habitat... Não havia como. Desamparada, triste e fraca, a ave, que se julgava destemida, acabou presa nos conceitos errôneos de liberdade e sucumbiu à escuridão, enquanto que seu parceiro cresceu feliz, mesmo com alguns tropeços, vivendo de maneira límpida, segura e bastante simples.

Enquanto contava a história, lágrimas desciam de seus olhos. A moça quis se levantar e se afastar de Castiel,por todo constrangimento que sentia; no entanto ele não a permitiu fazê-lo: abraçou-a pelos ombros.

– Bem, se o pássaro destemido é você, sugiro que contrarie a história: refaça seu caminho.

– Como? – questionou.

– Como eu. Trilhe o caminho até o Pai comigo. Quem sabe não sou um pássaro precisando de companhia? – a mulher sorriu ao ouvir tal sugestão.

– Não posso. Sou um demônio.

Logo verá que pode. Dê tempo ao tempo.

Sem dizer nada mais, o anjo apenas a abraçou forte. Ele também estava confuso sobre o que seria do futuro de ambos, mas sentia que, de algum jeito, trazer palavras de conforto a ela lhe dava maior força.

– Por que não vem comigo. Vamos lá fora apreciar o final do dia?

Eles se levantaram e foram ao pátio da residência. Castiel lhe pediu que se sentasse no chão ao lado dele, para que sentisse a energia da terra fluir em seu corpo.

Após uma hora de silêncio, em que juntos meditaram, o anjo comentou, surpreso e admirado com o nível de concentração alcançado pela amiga:

– O fato de que permaneceu comigo significa que, de algum modo, esteja aberta a possibilidade de que Deus a chame. Estou errado?

Castiel não estava equivocado. Mas era algo muito difícil de expressar naquela hora, quando o peso pelos inúmeros assassinatos vinha à mente dela.

– É complicado dizer algo assim. Mas aos poucos vou me acostumando.

– Olhe, amiga, não sei se estamos em um bom caminho, mesmo que minha intuição diga que sim. A única coisa que quero é que isso acabe logo para que possamos viver em paz. Sinto-me culpado por você estar nessa guerra desse modo estúpido. Às vezes percebo que está tão sozinha, e eu não consigo suprir isso...

– A solidão é um estado de espírito. E sei que não irei me libertar dele tão cedo. Não se preocupe. Você faz o que pode para estar comigo; entendo isso perfeitamente.

Ambos permaneceram no jardim até altas horas. Ficaram a conversar sobre tudo que ocorreu nos dias que se passaram; expuseram muito mais de suas angústias, aflições e incertezas. Mas ela não revelava seu nome, ainda que tivesse imensa vontade de fazê-lo. Castiel, porém, não a forçava a dizer quem era. Mesmo que estivesse curioso o bastante para saber o nome de sua querida amiga, ele queria era deixá-la à vontade para proferi-lo quando se sentisse apta.

Após saírem do jardim, eles comeram algo e foram dormir. E com toda a exaustão das lutas que travaram durante o dia, não foi difícil deixar que o sono lhes viesse, em uma noite tranqüila demais – longe do padrão agitado das últimas horas.

No dia seguinte, cedo da manhã, eles foram à casa dos pais de Samuel, bem como disseram que fariam. Apesar de toda insistência por parte de Heloísa e de Felipe para que ambos ficassem para o almoço, eles não quiseram. Era bem melhor regressar à casa da amiga para que pudessem aguardar um retorno dos arcanjos, que ainda estavam reunidos. Porém o anjo e a garota consideraram indelicado simplesmente entrar no lar dos Wolkmmer e sair logo depois. Ambos decidiram, então, ficar ali por cerca de duas horas, a fim de que os pais do garoto pudessem observá-la mais de perto.

Ao saírem da moradia, decidiram andar, sempre de carro, pela cidade. Castiel ainda se perguntava: – como alguém tão educada, centrada, calma e amável poderia ser tida como uma criatura maligna? – Tudo que ele aprendera na escola angelical ia por água abaixo com a agradável convivência que eles tinham.

Ambos passaram o dia inteiro na rua. Até saíram da cidade para ir a um município próximo, onde havia um pequeno lago de água transparente e limpa – um dos poucos existentes –, pois o homem poluíra grande parte deles. A demônia considerava surpreendente o fato de que ele não se lembrava quão bom era nadar. Por isso, ao invés de rememorá-lo mexendo em suas longínquas recordações, ela o mostraria na prática. E o anjo gostou muito do novo aprendizado.

– Os pais de Samuel foram capazes de cometer esse crime: não ensinar você a nadar... – espantou-se. – Que coisa!

– Pois é – comentou, enquanto saía do lago. – Eles só queriam saber de internações; não dispunham de tempo para isso.

– Mas eu tenho – falou, enquanto o puxava de volta para a água. – Venha cá. Quero que veja isso. – a moça fez uma pausa e apontou para a grande quantidade de água existente ali. – Veja como o brilho do líquido é fascinante. Contrasta com o do sol – comentou. – Diga-me, você que está há muito tempo neste planeta maravilhoso, pode me explicar o que há com os humanos, que não atentam para isso?

– Hum... Não sei – respondeu, surpreso. – Talvez estejam materialistas ao extremo. Eles, de um modo geral, só atentam para o belo quando se sentem ameaçados.

Após um bom tempo juntos, ambos saíram da água, entraram em uma pequena cabana que montaram e trocaram as roupas de banho pelas usadas antes. Castiel estava maravilhado com o apurado senso de observação que ela tinha. Ele jamais imaginaria que a amiga notaria coisas que não são perceptíveis a maioria dos humanos.