O Anjo Perdido

Capítulo 12. Momentos Difíceis


Capítulo 12 – Momentos difíceis

A queda foi longa e veloz. Enquanto caía, a demônia segurava a arma de guerra do amigo, ao mesmo tempo em que retomava a forma corpórea – agora com o físico que costumava usar para se apresentar às pessoas em geral: cabelos longos e negros, um e noventa e cinco de altura, olhos também escuros e a capa que a vestia, igualmente negra. Ao desabar no planeta, ela deu de costas em um muro de cimento. Como precisava esperar a insuportável dor passar, permaneceu ali, deitada. A mulher pouco pensava em tudo que discutira com Samael Estrela da Manhã. A única coisa de que tinha certeza era que não morava mais no Vale desse dia em diante. Mas isso não a perturbava – ao menos era no que acreditava; o que a confortava e a alegrava era o fato de que a missão a qual se propôs tinha sido concluída com sangue, suor e, finalmente, com sucesso. Agora, refeita da dor que o impacto de suas costas contra o muro provocara, a moça se levantou para tentar vislumbrar em que local do planeta viera parar. E constatou, surpresa, que estava na frente da residência onde Castiel se encontrava.

– Ao menos uma coisa boa Samael fez – pensou. – Poupou-me as pernas de uma exaustiva caminhada, ou minha energia de um vôo longo.

Após respirar fundo, devido ao cansaço e à fome, a garota entrou na casa, largou a arma de guerra dele em cima do sofá, pôs os óculos e se sentou à mesa, ao lado do anjo.

– Tudo bem? – perguntou, assim que o viu.

– Sim.

– E Belzebu, onde está?

– Foi ao Vale. Leviatã veio aqui chamá-lo; eles foram para lá agora pouco.

– Hum. Vou ter de conversar com esses rapazes – pensou. – Dei-lhes ordens; eles precisavam tê-las cumprido.

Castiel lhe ofertou água; ela aceitou de imediato. E o anjo foi à cozinha a fim de buscar a comida e a bebida; ele serviu o alimento para ambos. Assim que voltou a sentar ao lado dela, a mulher tornou a falar:

– Espere – a demônia se dirigiu ao sofá, enquanto perguntava. – É esta sua espada, não é?

– Sim, exatamente! Obrigado!

– De nada.

– Foi difícil consegui-la?

– Não. O que eu não faço por você? – Castiel a olhou e riu.

– É sério, foi difícil ou não?

– Um pouco. Mas o mais complicado não foi passar pelos guardas de Ediel; coloquei muitos deles para tirar uma agradável soneca enquanto buscava sua espada. Depois tive um pequeno contratempo com alguns rebeldes, mas tudo terminou bem.

– Então o que foi complicado?

– Minha ida ao Vale.

– Por quê? Machucou-se ao cumprir essa missão?

– Lúcifer deu uma bela surtada. Mas como já sei que ele é assim mesmo, e nunca irá mudar, nem me aborreço com isso. – a demônia, porém, omitia a verdade do amigo; ela se chateava muito por jamais conseguir dialogar com Samael como realmente gostaria. Mas isso não era o mais importante agora. O que queria era comer e descansar um pouco.

– Sabe o que, dentre tantas coisas, mais me chamou a atenção quando me aproximei do Quarto Céu? – perguntou, após alguns minutos em silêncio, nos quais ambos se alimentavam.

– Não, o quê?

– A prestesa e a preocupação que Uriel teve para comigo. Jamais imaginei que um Arcanjo confiaria em mim do modo que ele confiou. Até água fui beber em seu templo!

– Talvez Uriel tenha notado que você quer me ajudar.

– É. Mas daí a me dizer que podia beber água no templo dele?... Sei lá, estou surpresa.

– Ele é um anjo; acima de tudo tem amor no coração, além do fato de que desconfia de que há algo errado. E deve ter sentido que você não deseja ludibriá-lo.

– É, pode ser – a moça fez uma pausa. – Sabe o que me preocupa? Que Uriel não esteja bem.

– Por que diz isso, amiga?

– Encontrei-o no portão principal do Quarto Céu. Ele saía; eu entrava. O Arcanjo do raio rubi me comentou que iria falar com Metatron, a fim de lhe relatar coisas que descobriu acerca dos rebeldes.

– E acha que ele foi pego?

– Não vi nada que me leve a pensar isso. Porém não tive uma boa impressão ao vê-lo ir sozinho para lá. Tive vontade de lhe dizer que me esperasse para irmos juntos ao templo de Metatron, que fica no Quinto Céu, mas considerei uma afronta lhe sugerir isso, sendo que Uriel é um guerreiro muito bem qualificado.

– Bem – dizia Castiel. – Há duas opções aqui. Ou vamos ao templo de meu irmão para verificarmos se o Arcanjo precisa de ajuda, ou esperamos até amanhã para investigarmos isso.

– Talvez seja melhor aguardarmos os acontecimentos. Enquanto isso, eu reavivarei um pouco mais de suas lembranças. O que acha?

– Boa idéia.

Eles jantaram em paz, conversaram um pouco mais e, logo após, ela fez o ritual que reavivou boa parte das memórias do anjo. Ele já tinha nítidas lembranças de seus irmãos: Gabriel, Miguel, Raphael, Raguel, Azrael, Camael, Uriel, entre muitos outros. E sabia, de algum modo estranho, que não fora jogado no planeta azul somente porque teria relevantes missões como o mais novo Arcanjo de Deus; Castiel entendia que os motivos que o fizeram cair na Terra eram bem mais contundentes.

– Sabe o que vi no Quarto Céu? – perguntou, emendando a resposta logo em seguida. – Um templo que Ele dedicou a você.

– E como é o local?

– Digno de sua beleza e de sua graça. Tem paredes tão reluzentes que tive de fechar meus olhos em certos momentos. E havia uma linda inscrição ao fundo do templo.

– O que estava inscrito lá?

– “A espera de Meu filho, Castiel”.

– Sério! Deus me aguarda ainda?

– Sempre. Por que acha que não?

– Sabe... As coisas aconteceram de um modo tão estúpido. Tentei defender o território dEle, e acabei por manchá-lo de sangue. Sinto que meus esforços foram inúteis, que não cumpri com meus propósitos, pois era o sangue de meus irmãos, ainda que fossem rebeldes. Sei lá, nunca imaginei que Deus fosse atentar para mim assim.

– Você é um anjo. Merece ser querido não só pelo Todo-Poderoso, mas também pela humanidade. Só está confuso porque teve de se defender quando foi atacado antes de sua queda; isso, contudo, não deverá ser considerado um crime – eu não consideraria. Não tenho o conhecimento de todas as leis de seu Pai, mas sinto que Ele é bom o bastante para readmitir um filho que foi covardemente atirado aqui.

– É, tem toda razão. E como deixou a mensagem para mim no templo que Ele construiu, talvez eu não esteja em uma situação tão ruim...

– E não está. Deus sequer sabe que você se encontra em solo terrestre. Ele crê que se encontra em Plutão.

– Mas será que Uriel não o avisou de nada?

– Talvez o faça hoje. Enquanto isso nós vamos descansar e nos preparar. A verdadeira batalha terá início de agora em diante. Sei que não está seguro do que teremos de fazer, mas quero que saiba que aqui estou para confortar você e para prestar todo meu apoio caso seja necessário.

– Obrigado, amiga. Também gostaria de que soubesse que pode contar comigo. A defenderei de tudo e de todos.

– De nada. Eu é que agradeço. Escute, amanhã o deixarei na casa de Heloísa e de Felipe. E preciso que faça uma coisa para mim.

– O que é?

– Diga-lhes que sairá comigo para comermos um sorvete. Nós teremos de continuar a reavivar suas memórias.

– Está bem.

– Agora descanse. Ficarei no quarto ao lado. Venha se precisar de algo.

– Certo.

A demônia o deixou sozinho. Mesmo que o anjo quisesse pensar em tudo que conversaram durante a noite, ele não suportou tamanha exaustão e dormiu meia hora depois. Sua amiga, por outro lado, estava inquieta demais. Por algum motivo desconhecido, o sono não lhe vinha. Ela bem que tentou dormir, porém as palavras ríspidas e insensíveis de Samael não a deixavam em paz.

Sem ter o que fazer frente à falta de sono, a moça se postou no quarto onde o anjo dormia, a fim de zelar por ele. Permaneceu por muitas horas ali, protegendo aquele que era a única motivação para continuar viva. Agora que fora expulsa do Vale, quase que do mesmo modo trágico com que foi atirada para fora do Reino de Deus – ainda que o Pai não a tratasse de maneira grosseira naquela ocasião –, ela procurava pensar sobre seu futuro incerto. O que faria dele quando Castiel retornasse para casa? Por quem lutaria? Pelos humanos, que na opinião dela não valiam tamanho esforço de sua parte? A demônia estava apavorada. Poderia acordar o amigo para conversar um pouco; necessitava de alguém que a escutasse e a aconselhasse. Entretanto não quis interromper o sono dele e retornou ao seu quarto.

– Talvez eu vá embora para jamais voltar a Terra – pensava. – Porque para o Vale dos Caídos não retornarei em definitivo nem que me paguem. Samael foi longe demais dessa vez. Ele pôs em dúvida meu caráter. Eu mais o amei do que o agüentei durante gerações inteiras, lutei pelo seu trono maldito, o auxiliei em diversas missões e nunca me envolvi com homem algum – e olha que muitos que solicitavam a minha presença para os pactos que fazíamos me desejavam desse modo –, porque sempre fui leal ao Primogênito. E como sou tratada por ele? Agora sou um demônio que não vive sob o teto de Lúcifer Estrela da Manhã, então não tenho de cumprir nenhuma das regras que regem aquele lugar sórdido.

Mesmo com tamanha amargura e rancor, a garota conseguiu dormir depois de muito tempo – eram quatro e meia quando finalmente descansou.

Ao amanhecer de mais um dia, Leviatã veio avisá-la de que os pais de Samuel acordariam em quarenta minutos, tempo mais do que suficiente para que Castiel fosse levado de volta a casa deles. Agora no carro, o anjo notou que sua amiga estava inquieta e resolveu perguntar:

– O que há? Não dormiu direito?

– Tive um sono agitado. E você?

– Dormi bem. Apenas um pesadelo.

– Isso é bom.

– Não está assim somente porque teve de dar novas ordens a Leviatã, ou porque não teve um sono adequado, não é?

– Não. Há algo estranho... Mas não sei bem o que é. Deixarei você na residência deles; faça o que combinamos ontem, certo?

– Sim, pode deixar.

O restante da viagem prosseguia no mais absoluto silêncio. O Arauto se preocupava com ela, porém sentiu que não era a melhor hora para lhe perguntar algo. Assim que a demônia parou o veículo, ele comentou:

– Estarei na praça em frente a esse lar às duas e meia. Combinado?

– Sim. Cuide-se bem – A mulher de negro beijou a testa do anjo e se preparou para dar a partida no veículo. Entretanto Castiel a chamou.

– Tem certeza de que não precisa do meu auxílio para nada?

– Tenho. Por quê?

– Porque disse ter uma sensação estranha; queria ajudar você com isso.

– Fique tranqüilo, anjão querido. Eu estou ótima.

Mesmo que tenha lhe dado uma resposta aparentemente segura, Castiel não estava convencido de que sua amiga se sentia, de fato, bem. Entretanto decidiu esperar que ela retornasse para verificar o que estava acontecendo. Enquanto isso, ele entrava na casa dos pais de Samuel e ia à cozinha beber água e preparar um café para eles. Quanto à sua amiga, rumava às pressas para um parque que ficava mais afastado da região central da cidade; havia algo lá que a chamava de um modo estranho. Era sua intuição a avisando de algo gravíssimo que estaria por vir.