O Anjo Perdido

Capítulo 1. O início de uma descoberta


Capítulo 1 – O início de uma descoberta

Seis e meia da manhã do dia vinte e um de outubro de dois mil e vinte e cinco. Ele acordava de mais um lúgubre pesadelo – o segundo em uma noite longa e escaldante. Esse, porém, não lhe parecia ser como os repetitivos e costumeiros sonhos da infância triste e solitária que trilhara. O sobressalto ao despertar não se devia somente pelo horário, mas também, e principalmente, pelo terrível pesadelo que tivera há poucos instantes. A expressão carregada, o olhar tenso e a testa franzida denunciavam muito mais do que um simples sonho ruim: a noite tinha sido desagradável ao extremo.

– Vai se atrasar, filho – gritou sua mãe, que parou em frente à porta do quarto para chamá-lo.

Eu sei – remexeu-se insatisfeito.

E mais nada foi dito por ele. O susto ainda era grande; estava se recuperando do confuso e agitado despertar, e a mãe insistia, todos os dias, em acordá-lo de um modo nada sutil. Ele detestava quando isso acontecia.

– Não pago mais um colégio caro para que se atrase desse modo irresponsável – a voz enérgica agora era a do pai, que poucos minutos após Heloísa ter dito algo, o chamava com maior agressividade ainda. Mas nada disse o garoto. Limitou-se apenas a passar a mão pela testa a fim de secar o suor frio que escorria dela, antes de proferir qualquer frase que lhe viesse à mente.

– Eu já vou – falou, assim que saiu do cômodo.

Ele entrou no banheiro para lavar o rosto. Em seguida passou a examinar os próprios olhos azuis através do espelho. Buscava, no interior de si, algo que pudesse explicar tudo que ocorria em sua vida desde os dois anos.

– Mais um dia de aula – pensou. – Que droga! Serei o novo aluno na escola outra vez. Serei observado por mais pessoas com olhares críticos e acusadores, como sempre foi desde a minha infância – o pessimismo o invadia por inteiro. – Mais uma escola. Dessa vez com muitos pedagogos. Provavelmente acharão, em poucos dias de convívio, que sou louco. Mas não sou. Há algo errado na minha existência. Meus pais, por outro lado, só querem saber de me internar em clínicas que apenas tiram o dinheiro deles. – A reflexão do garoto foi demorada. Ele continuava a observar as próprias orbes azuladas sem concluir coisa alguma. Somente questões norteavam o seu monólogo mental.

– Por que será que na maioria dos pesadelos tenho os olhos perfurados? E que seres são os que aparecem em meus sonhos? Essas tinham sido algumas das várias questões que os psiquiatras nunca quiseram ou não puderam entender, ou muito menos, me responder – pensou. – Ah, quer saber, melhor ir tomar café antes que alguém grite à minha procura novamente.

A mãe servia a primeira refeição do dia. Ao sair do banheiro, ele sentou à mesa. Apesar da visível sonolência, fazia todo possível para demonstrar aos pais que estava bem disposto.

– Achei que demoraria toda a manhã lá dentro – ela comentou. – Tome um rápido café. Não pode chegar atrasado em seu primeiro dia de aula, Samuel.

Eu sei – balbuciou, um tanto indiferente.

– Como se sente? – perguntou Felipe.

– Bem, pai.

– Será que não é capaz de falar mais do que duas palavras! – exclamou, com impaciência, a mãe. – Por que age sempre assim conosco?

O rapaz baixou a cabeça. Resolveu não responder aos agressivos questionamentos porque, ao focar os pensamentos no último pesadelo, sequer os escutava com a nitidez necessária.

– Samuel! Estou falando com você! – dizia Heloísa, de modo áspero.

– Desculpe-me... O que foi?

– Nada. Vá se arrumar agora mesmo. E se comporte em seu primeiro dia no colégio. Seu pai e eu não queremos saber de chamadas na direção da escola logo hoje – relembrava, como se o filho fosse uma criança de dois anos, inábil para distinguir o que é certo e o que é errado.

Ele sorveu o líquido em apenas um gole e retornou ao quarto. Vestiu-se com rapidez e voltou à sala. Em seguida, encostou-se em uma parede do cômodo, pois se sentiu tonto, fato que os pais nem observaram.

– Estou pronto – falou, o tom vacilante. – Vamos?

– Sim – respondeu a mãe.

Ambos entraram no carro – um Vectra azul que ela dirigia apressadamente. Nenhum diálogo ocorria dentro do veículo. Samuel não fazia a mínima questão de lhe dizer coisa alguma; foi demais para um rapaz de apenas dezesseis anos suportar toda a tensão das quatro últimas internações; os estranhos acontecimentos dentro das instituições psiquiátricas o intrigavam. Além do mais, ele não entendia por que alguém tido como um menino com uma inteligência abismal para adolescentes da sua idade, era adjetivado de anormal; mesmo com tantas habilidades, o tratavam como alguém problemático.

Em poucos minutos estavam à frente da escola. Desceram do carro e passaram a observar o local.

– Bonito lugar, não acha?

– É – respondeu.

– O que há com você? – perguntou, irritada com a aparente indiferença do filho.

– Nada. Só tive um pesadelo.

– De novo! Pelo visto os médicos não fizeram o diagnóstico correto, não é? E que sonho foi esse agora?

– Por favor... Não quero falar sobre isso.

– Mas precisamos ajudar você, filho – ela tentou empregar um tom amigável à frase. – Já pensou se volta aos estudos e começa a manifestar aqueles sintomas estranhos novamente? Devemos agir antes que isso ocorra.

– Agir significa me internar, não é?

– É. Como são questões que fogem ao ramo da medicina no qual trabalho, infelizmente eu não poderei intervir no tratamento.

Eles entraram no colégio. Samuel continuava quieto, como de costume. Ambos seguiram para a sala da pedagoga chefe da instituição. Lá, a mãe do garoto lhe contou tudo que já aconteceu com o jovem em todos esses anos.

– Esta é a terceira escola que ele freqüentará. Depois de muito trabalho que tivemos com as sucessivas paranóias dele sobre demônios, anjos e outras coisas inexistentes, o internamos. Após o último, exaustivo e longo tratamento que foi dado ao meu filho, ele quis voltar aos estudos. Mas preciso que compreenda que há alguns cuidados a serem tomados, senhora Roberta – prosseguia Heloísa que, anteriormente, fizera um longo e massacrante relato dos supostos problemas apresentados pelo garoto.

A pedagoga escutava tudo com a máxima atenção possível. E a cada palavra dita, a cada termo agressivo ou pejorativo colocado pela mãe, Samuel enchia os olhos d’água. Sem, contudo, perder a serenidade ou reagir com indignação. E essa era uma das características que mais aborrecia as pessoas em geral: o jovem era calmo demais.

– Tem algo a falar? – perguntou Roberta ao rapaz, assim que os infelizes comentários, feitos por Heloísa, acabaram.

– Não.

– Ah, isso é outra coisa muito chata no meu filho: ele não diz nada nunca.

O derradeiro comentário feito tinha sido um golpe desleal. Por mais que não sentisse ser parte da família, ele, apesar de tudo, a amava. Ela, porém, se despediu do filho com frieza no olhar.

Assim que ficou a sós com Samuel em sua sala, Roberta o observou por alguns instantes e tornou a perguntar:

– Não quer dizer nada, mesmo?

– Fique na paz de Deus, senhora.

– Apenas isso? – perguntou, um tanto confusa.

– Sim.

A pedagoga se ergueu para guardar alguns papéis na gaveta do armário e para indicar a sala na qual o jovem teria de ir ao primeiro período de aula do colégio, no primeiro ano do Ensino Médio. E ao apertar-lhe a mão, Roberta sentiu algo estranho e indefinível: uma tranqüilidade divina, como se os olhos dele quisessem transmitir algo que se mostrava incompreensível a maioria dos homens. E mesmo com todo o relato que ouvira há instantes, ela não compreendia por que o adjetivavam como louco.

Samuel deixou, às pressas, a grande sala da pedagoga e se dirigiu ao local onde estudaria. Ao entrar lá, o professor de física o aguardava. Ele cumprimentou o rapaz e o apresentou, de maneira rápida, à turma.

Assim que a aula iniciou, ele tornou a pensar no pesadelo; não entendia como lutava com tamanha agilidade, se nem possuía índole para ferir uma mosca. Mas logo voltava as atenções para o que era exposto pelo professor; mesmo que já dominasse completamente a matéria – fato que os pais consideravam impossível, devido às várias internações –, não queria ser acusado de péssimo aluno.

Após três cansativos períodos, veio o recreio; ninguém conversava com ele. Samuel bem que tentava se aproximar de alguns de seus colegas novos, mas os mesmos o evitavam, incertos se deveriam ou não tê-lo por perto. A persistência demonstrada por ele, contudo, foi maior. Até que um dos jovens lhe disse:

– Por que temos de falar com alguém que já foi internado quatro vezes? Sabiam disso, amigos, o cara aqui é um louco e ainda quer puxar assunto!

– Como ele sabe disso? – questionou-se, em baixo tom, para não ser escutado. Em seguida, ergueu a cabeça e vislumbrou algo diferente no colega que o agredia com palavras tão viris.

– Como sei? Simples! Todos sabem! Você é um fraco, incompetente e inútil – o rapaz o segurava pelo braço.

– O que é isso, Henrique? – perguntou sua irmã Eduarda. – Nós nem o conhecemos... Pare...

– Mas eu sei quem ele é, por isso me refiro a esse tema – respondeu, enquanto desferia um forte soco na testa da jovem.

– Mano... O que é isso!?

– Cale-se! – gritou, descontrolado, o irmão.

Samuel, entretanto, parecia não estar ali. A expressão serena, a postura calma e o silêncio, mesmo com toda a tensão do momento, faziam dele uma intransponível barreira. Mas ele não permitiria que a garota continuasse a ser covardemente agredida por alguém tão familiar.

Henrique ainda segurava o braço do colega, e prosseguia em sua fala, como se quisesse revelar algum segredo:

– Não sabe quem é, não sabe por que motivo tem os pesadelos, não tem a mínima idéia de como se constituiu em alguém tão impassível; fácil de responder; você é um fraco!

Os olhos do transtornado rapaz estavam mudados. As pessoas próximas a eles se assustaram tanto com o fato, que resolveram chamar o auxiliar de escola responsável por monitorar os recreios.

– Vamos fazer o seguinte – falou, observando-o com maior ênfase. – Conversamos após a aula. Certo?

Em um gesto afirmativo com a cabeça, Henrique aceitou encontrá-lo depois dos dois últimos períodos. Quando o auxiliar chegou para apartar a provável briga, tudo estava solucionado.

Assim que o colega o soltou, o jovem tirou o celular do bolso da calça e telefonou ao pai. Após cumprimentá-lo, disse:

– Não necessito que me busque hoje ao meio dia.

– Por quê?

– Ficarei conversando com alguns meninos que acabei de conhecer – mentiu; era a explicação mais óbvia para a ocasião.

– Ótimo. Mas esteja em casa até as cinco.

– Sim.

Ele se despediu de Felipe e regressou à sala de aula. Vez por outra, quando percebia que não o observavam, Samuel olhava para Henrique. Os olhos totalmente enegrecidos do colega lhe indicavam algo sobrenatural.

– Aquilo não pode ser real – pensava. Mas era. O garoto passara por coisas semelhantes antes. – E logo no meu primeiro dia... Que droga – refletiu. A única questão relevante, contudo, era salvar Henrique. Pouco lhe importava se isso ocasionasse sua expulsão da escola; tal fato ocorrera antes, em outras instituições. Mais uma, menos uma, tanto fazia para ele, que só pretendia ajudar o irmão de Eduarda a voltar ao normal.

No entanto, mesmo que quisesse auxiliá-lo, como o faria? Se usasse os poderes que instintivamente sabia possuir, tudo terminaria mal.

A aula acabara. Os alunos saíam para a rua. Ele seguia Henrique com um olhar atento. Assim que chegou ao portão de saída do colégio, pôs-se a andar o mais depressa que conseguia. O colega o acompanhava de longe; o menino, contudo, se permitia correr tamanho risco.

Passaram-se uma, duas, três ruas. E poucos minutos que pareciam ser muitos, devido à tensão do momento. O plano arquitetado pelo sempre sereno Samuel não era tão brilhante como gostaria, porém não havia outra medida a ser tomada. Deixar-se ser vigiado era a única saída plausível.

O clima de aparente tranqüilidade, entretanto, foi quebrado porque ambos entraram em um beco vazio e estreito, um local bastante adequado para que quem possuía Henrique se aproximasse.

– Vamos ficar brincando de gato e rato, é? – debochou, assim que puxou um canivete e parou ao lado de Samuel.

– O que quer? – perguntou o jovem. – Se nem me conhece direito, por que diabos me segue desse modo? Por que bateu em sua irmã lá na escola?

– Ela não é minha irmã, cara. E sabe disso desde que nos falamos no recreio. Não se faça de idiota, não torne tudo mais difícil para si.

Essa era a resposta que o garoto não queria ouvir. Mas, embora não acreditasse, a escutou com atenção.

Agora ele sabia bem o que estava a sua frente. E não era Henrique. Na verdade já desconfiava de que não fosse o colega no recreio, exatamente como a entidade dissera. Só pretendia ter certeza disso. Assim, o próximo passo a ser dado era libertá-lo o mais rápido possível de tamanha opressão.

– Por que vocês vêm atrás de mim assim durante esse tempo todo?

– Não sei do que está falando, cara.

– Sabe sim. Desde pequeno sou perseguido. E quero tanto achar alguém que me dê um motivo.

– Hum... Seu lugar não é aqui. Bem, também não seria conosco; nós apenas o adaptaríamos às circunstâncias, por assim dizer.

Não compreendo – contra-argumentou, aflito com a situação.

– Não precisa. É só continuar com o plano idiota de seguir preso a uma família sem fé. Você é o contrário disso; mas não importa. A vontade deles sempre prevalece. Tanto faz se não quer ser internado. Você não tem vez e nem voz. E isso é excelente para nós.

– Como ele sabe de tudo isso? – questionou-se, em baixo tom, admirado.

– Sei porque sou um dos tantos que você deixou marcas profundas – a entidade lia os pensamentos e os murmúrios do oponente e usava o corpo de Henrique para atingi-lo. Ele acertou alguns golpes no garoto que, sem reação, não conseguia se defender. E não era porque não podia, mas sim porque estava paralisado frente ao inimigo.

– Não vai lutar? É tão covarde que só sabe nos prejudicar quando usa seus poderes de herói de histórias em quadrinhos? Escute aqui cara, nós todos tememos seus dons; fomos e ainda somos mandados para buscar você, mas nunca obtemos o sucesso que desejamos. E continuam a nos enviar para cá. Isso não vai ter fim. Caso decida cooperar comigo, porém, o levarei e tudo terminará bem.

– Para onde? – perguntou, enquanto caía ao chão.

– Não terá graça alguma se eu disser para qual lugar iremos. Só posso revelar que recebo ordens. Não tinha nada contra você antes; só depois da primeira vez em que nos encontramos. Lembra-se da garota na clínica? O que fez com ela foi monstruoso demais, e espero que tenha consciência disso – Samuel permanecia quieto. Não sabia se dizia ou não alguma coisa.

Ele continuava a ser atingido. Agora, porém, resolveu agir. Como aquele não era Henrique, e o principal objetivo de ter atraído a entidade ao beco tinha sido o de salvá-lo, o menino passou a atacar a criatura, mesmo que soubesse que, de alguma maneira, o colega também seria prejudicado.

– O problema é que não possui força física; não sabe lutar e nem nunca aprenderá – comentou a entidade, que derrubou o jovem ao chão novamente, após poucos instantes de esforço mental.

Dessa vez, porém, os ferimentos nas costas de Samuel eram bastante profundos. Ele sequer conseguia se mexer.

– Tudo bem. Leve-me e deixe o garoto – propôs, o tom sereno.

– O que? Está se sacrificando...

– Deixe-o em paz e eu irei com você – prosseguiu, interrompendo o raciocínio do outro.

– Nem pensar; essa possibilidade não existe.

– Então como chegaremos a um acordo?

– Não haverá acordo. Não quero conversa com você. Só quero saber se é quem penso ser, para que possa dizer ao meu chefe.

– Sou Samuel Wolkmmer, não entendo o que mais pretende...

– Engraçadinho – dizia, enquanto o chutava. – Sei que seu nome terreno é esse. Mas quero descobrir quem é de verdade. Entendeu?

Surpreendido e assustado, ele nem respondeu nada. Apenas tentava se defender do melhor modo possível.

– Largue o menino, Euronymous – ordenou uma mulher, que acabara de chegar ao beco.

– Não obedeço a você, não tenho trabalho algum em sua horda, então não farei o... – o demônio parou de falar, porque fora derrubado e dominado pela recém-chegada de maneira violenta.

– Experimente não fazer o que mando para ver o que acontecerá. Você me deve obediência, seu imundo.

– Pode tirá-lo do corpo de Henrique? – questionou o menino.

– Seja feita a vossa vontade – respondeu, com um meio sorriso.

Em poucos instantes o rapaz estava consciente de novo, após quase um dia inteiro no qual não conseguia controlar o próprio corpo. Ele não compreendia como aquilo tudo tinha ocorrido, mas, em seu íntimo, sabia que fora preso por algo ruim. Sentia alguma dor, no entanto era pouca. E a única preocupação era com o novo colega, Wolkmmer.

– Está bem? – perguntou.

– Ele ficará – respondeu a mulher. – Vá embora, por favor, Henrique. Tenho de conversar com este jovem. E não conte a ninguém o que houve aqui.

Mesmo contrariado, resolveu atender ao pedido dela. Antes, porém, entregou ao colega um cartão no qual tinha seu número de telefone.

Assim que ficaram sozinhos no beco, a moça passou a cuidar dos ferimentos dele. Os machucados não eram muito graves, entretanto necessitaria de um pouco de repouso.

– Descanse pelo resto do dia – pediu. – Como o líquido que passei é medicinal, isso tudo sumirá.

– Quem é você? Por que me auxiliou assim? Como chegou aqui? Esse corpo é seu, ou não?

– Uma pergunta de cada vez, rapazinho. Este corpo é meu, sim. O ajudei porque preciso ter a certeza de que é quem penso ser. E cheguei nesse beco porque rastreei a energia daquele demônio idiota.

– E quem é você?

– Ainda não – disse. – Não é bom que saiba quem sou eu.

– Mas como...

– Escute, só peço que confie em mim, está bem?

Samuel a observou com calma. Ela não era muito alta – media aproximadamente um metro e setenta e cinco centímetros –, tinha cabelo comprido, carregava uma mochila às costas e uma espada na mão esquerda.

– Está bem, tentarei confiar em alguém que conheci há poucos minutos, mas não sei se conseguirei.

– Então tente, pois não tem escolha alguma. Quando necessitar, nem precisa me chamar; estarei por perto.

– Posso perguntar uma coisa?

– Sim, o quê?

– O que aquela criatura disse... De eu não ser eu... É...

– Sim, é. Não sabemos quem é, só sabemos que não é Samuel Wolkmmer, como crê.

– Mas então o garoto não existe?

– Sim, claro. Permanece escondido aí, em algum lugar dentro do campo energético que possui.

– Como assim? Não compreendo e nem acredito...

– Escute – dizia, se aproximando ainda mais dele. – Fique calmo, e isso sabe bem como fazer. Espere-me; o ajudarei a desvendar o que significa isso tudo.

– E qual é seu interesse em minha história?

– Que não o peguem.

– Mas...

– Vamos combinar o seguinte, menino? Podemos marcar um encontro e eu terei todo tempo possível para esclarecer isso tudo a você. Mas necessito de, no máximo, dois ou três dias. Assim que tiver alguma resposta, o procurarei, certo?

– Está bem.

– Vamos. Eu o levarei para casa.

Eles entraram no carro – um V-8 preto. Ela o guiava com serenidade, sempre atenta à energia que circulava a volta deles. Enquanto isso, Samuel tentava vislumbrar algo em seus olhos, porém não era possível. A garota usava óculos escuros. O veículo parou, quinze minutos depois que saíram do beco, em frente à residência dele.

– Obrigado por ter ajudado meu colega – falou, assim que desceu do carro.

– São ossos de um novo ofício, garoto – comentou.

Mesmo sem entender bem o que foi dito, o jovem se despediu da moça. Várias questões preenchiam-lhe a mente. Entretanto ele se mostrava disposto a aguardar tudo que a misteriosa mulher pudesse conseguir a respeito de seu passado.

Ao entrar em casa, procurou se certificar de que estava só. Como não havia ninguém além dele na residência, decidiu ir tomar uma ducha. E, após, ignorou, momentaneamente, tudo quanto queria descobrir a seu respeito e começou a meditar. Só que estava tão exaurido, que dormiu.

– Mais um pesadelo – pensou, ao acordar, em um sobressalto. Ele se levantou assustado; olhou para o relógio e constatou que os pais chegariam ao lar em poucos instantes.

– Certamente farão inúmeras questões relativas ao primeiro dia que tive na escola – refletia o garoto. – Como fui tratado pelos colegas, o que conversei com eles, entre outras perguntas. – É. Wolkmmer sabia que teria de ser bem criativo em suas mentiras.

Antes disso, porém, resolveu retomar a meditação que começara; agora se propunha a não dormir em meio a ela. Não só porque não queria ter o pesadelo de sempre a perturbá-lo, mas principalmente porque considerava sagrado demais o ato de meditar.

Só que ele não contava que fosse ser interrompido pelo pai. Felipe já o tinha chamado umas quatro vezes, quando finalmente o menino se deu conta de que alguém queria lhe falar algo.

– Escute – dizia o homem enquanto o puxava rudemente pelo braço. – O chamei várias vezes. O que há agora?

– Nada. Só estava meditando – explicou, ao mesmo tempo em que se erguia de maneira brusca.

– E por que esse gesto grosseiro? – perguntou o pai.

– Qual? – o rapaz não compreendia os motivos que levavam Felipe a estar tão exautado.

– O de se erguer como se eu fosse um inimigo ou alguém estranho. Não sou um qualquer para que deixe de me responder desse modo e em seguida se levante como se eu não fosse nada; tem de ter mais respeito por mim, garoto – o homem tornou a puxá-lo e começou a sacudi-lo pelo braço. – Está me ouvindo?

– Sim. Mas expliquei que meditava. Por isso não o escutei; desculpe-me.

– Vá para o inferno com essa droga de meditação – o pai tornava a ser violento frente à calma do filho – fato que ocorria quando somente os dois estavam em casa. – Vai aprender a me respeitar na marra – Felipe o empurrara. Com isso, Samuel bateu as costas recém-curadas contra um grande armário que havia no quarto.

Assim que largou o braço do jovem, o Sr. Wolkmmer voltou à sala; Heloísa tinha chegado. Quanto ao menino, só parecia ser alguém alheio a tudo isso. Na verdade ele estava cansado do ambiente negativo que tinha em casa. E a dor que sentia devido ao impacto das costas contra o armário era intensa demais para ignorá-la. O demônio que possuíra Henrique tinha toda razão. A família que o considerava como filho era sem fé alguma em Deus. E isso, para a existência de Samuel, era danoso demais.

– Por que demorou a responder ao seu pai agora pouco? – perguntou Heloísa, ao entrar no quarto dele para tentar conversar sobre o mais novo conflito familiar.

– Já disse... Estava em meditação. Quando fico assim, me desligo completamente. Quantas vezes eu terei de repetir a mesma coisa?

– E por acaso essa porcaria é mais importante do que o fato de termos chegado em casa Felipe antes, e eu agora –, e de que queremos falar com você? Para quem meditava? Para Deus? Não aprendeu ainda que Ele não existe? Não tirou você da clínica; não agiu para que melhorasse em todos esses anos; não fez absolutamente nada para trazer paz a esta família e muito menos a você; diga-me, filho, onde está o seu Deus?

–Sem proferir uma palavra sequer, o rapaz se limitou a fechar a porta do quarto. A mãe tentou sair, entretanto ele a reteve no cômodo, com um leve toque nos ombros dela. Após se sentar na cama, lhe pediu para fazer o mesmo. E iniciou sua fala:

– Quando interrompo vocês, em qualquer circunstância, qual reação tem? – o tom era, até certo ponto, amigável.

– Se quer insinuar que...

– Não sou do tipo que insinua. Se me conhece sabe disso; eu falo. Responda-me apenas, qual reação vocês dois têm?

– Não gostamos de ser interrompidos – a mulher não sabia bem o que dizer.

– Isso é o que sentem. O que quero saber é: como reagem frente ao fato em si?

– Ficamos irritados com você – comentou, assustada com o modo sério com que o filho a questionava e a encarava.

– Então peço, por favor, que não cometam o mesmo equívoco outra vez. Não interrompam minha meditação; ela é importante para mim. Tanto quanto o Deus que vocês dois dizem não acreditar. Como sempre respeitei a posição que têm frente ao Criador, solicito que, por gentileza, respeitem a minha. Amo a Deus e não tenho problema algum em afirmar isso, ao contrário. Sou feliz por amá-Lo e por adorá-Lo; O Todo-Poderoso me trouxe a graça de viver Samuel tornou a ficar de pé; sem, contudo, tirar os olhos de Heloísa. – E, por tudo que é mais sagrado, não gostaria de que isso virasse um motivo para que eu fosse jogado em outra clínica uma vez mais – ele caminhava de um lado para o outro do quarto. Seu olhar era profundo e sereno. – Não que isso me prejudique no momento; sei como lidar com tamanha indiferença; vocês já fizeram essa tentativa tantas e tantas vezes, já me jogaram para tudo quanto é lado, então só peço que me deixem um pouco em casa – ele se sentou ao lado da mãe novamente. – Algum problema?

– Não – respondeu, impressionada com a atitude firme do filho.

– Ótimo. Então podemos ir à sala conversarmos como qualquer família normal faria? Ou vocês não me querem por perto?

– Claro que queremos você por perto, querido. Não diga bobagens!

– Está bem. Só solicito mais alguns instantes; preciso dar um telefonema para um amigo. Posso?

– Sim, sem dúvida.

Heloísa o deixou sozinho e foi conversar com Felipe. Ela lhe explicou o teor do diálogo que tiveram. O pai do garoto, por sua vez, ficou tão impressionado como a mãe a respeito das frases firmes proferidas por Wolkmmer há poucos minutos.

O jovem, por outro lado, se ocupava agora de outra relevante tarefa: telefonar para Henrique; ele queria saber como o colega se sentia após toda aquela balbúrdia ocorrida à tarde. E Samuel se acalmara ao ter a certeza de que o rapaz estava bem. Ambos apenas tinham enorme curiosidade em descobrir quem era a mulher que os auxiliara no beco.