Londres, 2009

Davi saiu do táxi no seu estilo despojado que lhe era habitual, ou seja, camiseta, casaco e calça jeans bem velhas, à qual tinha adicionado no ano anterior os óculos escuros e o boné, com os quais tentava passar despercebido.

Pegou na mochila e se dirigiu para a entrada do Hotel Ritz, talvez o hotel mais luxuoso de Londres, sendo prontamente barrado pelo concierge.

Ainda que os funcionários do Ritz estivessem habituados à excentricidade de alguns hóspedes, seria uma anormalidade receber um hóspede com uma indumentária tão miserável.

Suspirando, Davi não teve remédio a não ser retirar o boné e os óculos e se apresentar como Davi, filho de Jonas Marra.

O pobre concierge já não sabia onde se enfiar. Se auto-flagelando intimamente, o funcionário se desfez em desculpas, rezando para que o seu erro não o levasse ao despedimento.

Apaziguando o homem, Davi apenas lhe pediu que o indicasse ao seu quarto.

Quando desabou na cama recebeu um telefonema de Sandra.

– Sim mãe, cheguei bem. Não, ainda não vi ela. Não se preocupa, eu me agasalho. Tá, eu não esqueço de ligar. Claro que eu ainda não almocei, não são nem 10 horas da manhã. Oh, que mãe galinha que eu fui arrumar.- ria-se ele enquanto respondia às questões de Sandra.

Quando, no ano anterior, a verdade sobre Davi havia sido descoberta, Sandra decidiu que não podia deixar de ficar ao lado do filho.

Ainda que tardiamente, tinha descoberto que não existia dinheiro nem status no mundo que justificassem abdicar de estar perto do filho num momento difícil.

Por isso, Sandra tinha contado toda a verdade para o marido, correndo o risco de ser linchada. Ainda que o velho Simmons tenha considerado essa hipótese, resolveu que o tempo do faroeste tinha passado e entendeu castigá-la de um modo mais subtil.

Retirou-lhe os bens, as jóias, esvaziou-lhe as contas bancárias, quis expulsá-la do país e ameaçou-a de morte se ela se ela algum dia voltasse aos Estados Unidos.

Foi, pois, como São Francisco de Assis que Sandra saiu do Texas, tendo que contar com a benevolência de Jonas para lhe comprar a passagem de volta ao Brasil.

Quando chegou, dispensou a esmola dos Marra, e resolveu alugar uma casinha na Gambiarra, bem do lado da casa de Rita e Dante.

De resto, foi a tia de Davi quem lhe arranjou um trabalho na PLUGAR. Quase a chegar aos 40 anos, Sandra recomeçava mais uma vez.

Os habitantes da Gambiarra tinham dado uma lição de moral para muita gente. Ao saberem da situação de Davi, ninguém tentou se aproveitar, pelo contrário.

Todos criaram uma muralha figurativa em redor do bairro, de tal modo que meses depois Davi pode regressar e retomar a sua vida, sabendo que os vizinhos iriam garantir que nenhum paparazzi o iria incomodar aí. E que, se eventualmente um jornalista abusasse de Davi, Sandra e Rita, como leoas, o degolariam.

O povo da Gambiarra mostrou que a lealdade não tem preço e Davi se sentia tão grato a todos que não se via a viver noutro sítio.

Os Marra tiveram que regressar aos Estados Unidos, sob protestos de Megan, que passou a aproveitar todas as oportunidades para regressar à terra dos antepassados do seu dad Jonas.

O celular de Davi voltou a apitar com uma mensagem. Era ela, óbvio.

Ele saiu do hotel e entrou no metro para ir ter com ela. Algumas estações depois, Davi saiu e apressou o passo.

Quando ele chegou em Kensington Gardens, não demorou muito a perceber onde ela estava. Por todo o lado ele viu uma agitação com as equipas de fotografia, guarda-roupa, maquilhagem e cabelos.

E ela. Linda, num vestido longo azul, que parecia saído de um conto de fadas, conversava animadamente com uma senhora loira de meia idade com um porte imaculado.

– Davi, você veio! – disse ela.

Ignorando o valor do vestido de alta-costura que envergava, ela se atirou nos braços dele.

– Megan, sua doida, você vai acabar me atirando ao chão.- disse ele, tentando evitar a queda dos dois.

Ela riu:

Come here. Deixa eu finalmente te apresentar a minha Grand-mère, Madame Berénice Blois.

Davi cumprimentou a senhora, que lhe disse no seu melhor português:

– Muito prazer em conhecê-lo, meu jovem. Minha neta falou muito bem de você.

Não puderam estar muito tempo à conversa porque já estavam a atrasar a sessão. Davi só teve tempo de perguntar a Megan:

– Você está mesmo feliz, não tá?

Of course silly! Grand-mère confiando em mim para fazer esse editorial e o styling também! Vou ser a capa mais jovem de sempre da revista!

– E com mérito próprio. E também não custa mesmo nada perceber o orgulho que a Dona Berènice tem de você, não é?

Oh yeah. Isso também é muito bom.

No último ano, com o incentivo de Davi, Megan havia se reaproximado da sua avó francesa e uma das consequências tinha sido aquela sessão fotográfica que iria estampar a capa da publicação mais importante do grupo Blois, da qual Berènice era presidente.

Davi se sentou num banco só observando enquando Megan se posicionava para as fotos, quando, ao fim de pouco tempo, o cansaço da viagem finalmente o derrubou e as pálpebras dele se fecharam.

Ele esteve a dormir sentado menos de uma hora quando Megan o acordou, lhe atirando com uma laranja.

Temendo que Londres estivesse a ser bombardeada, ele acordou de sopetão, se preparando para se defender do inimigo.

Lunchtime, dorminhoco!- disse a loira, sentando ao lado dele, enquanto mordiscava um morango.

– Droga, dormi muito? – perguntou ele.

Not really, mas você está com um ar detonado. Melhor você voltar para o hotel.- disse ela.

– Cê tem certeza? – insistiu ele.

Oh yeah. O look zumbi não combina com você e eu ainda vou demorar mais duas horas para acabar.- riu-se ela.

Davi se espreguiçou e perguntou a Megan:

– Quando é que o pai e a sua mãe chegam?

Ela lhe respondeu:

Mom vai ficar em Monte Carlo para o festival de televisão e dad só chega de São Francisco hoje à noite. Combinamos jantar no The Ivy essa noite, ok?

– Ok. A gente se vê no hotel?- perguntou ele, se levantando e lhe dando um beijo na bochecha.

In a blink of an eye.- respondeu ela.

Quando Davi chegou ao hotel, resolveu por em prática um dos seus truques recém-aprendidos e se dirigiu automaticamente na direcção dos elevadores de serviço, usados pelos funcionários, de modo a que ninguém o visse subir.

Para seu grande azar não tinha sido o único a ter essa ideia.

Quando chegou ao elevador ainda teve tempo de ver Jonas Marra muito concentrado a beijar uma atractiva ruiva. As portas se fecharam e o elevador subiu com o casal, que já pegava fogo, sem que se tivessem apercebido da presença de Davi.

O nerd gelou. Por muito que antes quisesse, num comportamento típico de adolescente, desafiar o pai pelas suas atitudes enquanto empresário, nunca lhe teria ocorrido reprová-lo enquanto marido.

Davi crescera a admirar o casal Marra. Sabia que eles tinham os seus problemas, por conta do trabalho, mas quando eles estavam juntos as pessoas só conseguiam ver o glitz e o glamour.

Talvez a todos estivesse a escapar o fumo e os espelhos. Talvez as falhas do casamento do Marra Man e da Marra Woman estivessem cobertas por uma fina camada de maquilhagem.

Enojado, Davi saiu apressadamente do hotel, sugando o ar da rua. Com a cabeça a mil, pensou em Megan e decidiu que ela não podia saber daquilo.

Voltou a fazer o percurso para Kensington Gardens e interceptou Megan no momento em que ela terminava a sessão:

Back already? Sentiu mesmo a minha falta, right?– perguntou ela quando o viu.

– É….- foi tudo quanto ele conseguiu dizer.

Ok, baby boy. Deixa eu mudar de roupa, pegar a minha bolsa e já podemos ir para o hotel.

– Não! Vamos dar uma volta.- insistiu ele.

Megan, que ainda ostentava um penteado elaborado e maquilhagem carregada só riu e disse:

– Davi, olha para o meu cabelo e a minha maquilhagem.

– A gente tá em Londres, ninguém liga. Vamos, muda de roupa e vem comigo.

Acabaram por caminhar os dois meio sem rumo e já tinham atravessado os jardins de Kensington e metade de Hyde Park, quando Davi resolveu descansar e se deitar no gramado.

Megan se deitou perpendicularmente a ele e apoiou a sua cabeça no tórax dele:

– Você está estranho. What happened? – perguntou ela, enquanto tirava uma fotografia dos dois.

Brincando distraidamente com os cabelos dela, ele respondeu:

– Nada Megan. É só cansaço mesmo.

Megan ia dizer algo quando ouviu o seu celular apitar:

Look, é Danusa. Quer saber como correu a photo shoot.

– Você está mesmo coleccionando família, Megan Marra.- brincou ele.

– Nem vem Davi Marra, que eu sei que você também acha Danusa uma good girl.

– E você acha o Danilo um nice guy? – perguntou ele.

– Um pouco peganhento, mas yeah, ele é um bom amigo.- respondeu ela.

O clã Marra era agora mais alargado, a partir do momento em que os filhos de Jonas e de Sílvo se tinham aproximado ao encontrarem afinidades próprias da idade.

Os Marra mais velhos também se tinham aproximado, mas aí mais pela necessidade de Jonas manter controlo sobre a boca da mãe no período crítico que tinha sido o ano anterior.

Naquela noite, sentados à mesa do restaurante de uma ostentação que continuava a deixar Davi desconfortável, os dois jovens Marra continuavam à espera de Jonas, quando assistiram à chegada de um elemento da família real inglesa.

Ao passar por eles, o jovem ruivo piscou o olho na direcção de Megan, que lhe piscou o olho de volta, sob o olhar de reprovação de Davi.

Relax Davi.- disse ela.- Harry é um nice guy.Só isso.

Sei. – disse ele.

Quando Jonas finalmente chegou, com um atraso nada britânico, foi efusivamente recebido por Megan e friamente recebido por Davi, que se controlava para não deixar transparecer os seus pensamentos.

– Davi, foi uma surpresa muito boa te encontrar aqui. A Peanuts não me tinha dito que você vinha para Londres. – disse o empresário.

“Claro que não. Senão você se teria encontrado com sua amante noutro horário.”- pensou Davi.

– É. Vim dar um apoio pra Megan.- disse o jovem nerd.

– Dad, sabe quem eu encontrei à entrada? O idiota do seu sócio Jesus Hernández.- disse Megan.

– Megan, Jesus é tudo menos idiota.- criticou Jonas.

Oh no. Ele disse que tinha visto o senhor no início da tarde no hotel.Eu disse que era impossível, porque você ainda não tinha chegado, mas ele não acreditou em mim. Of course he´s an idiot.- afirmou Megan com certeza.

Jonas desviou a conversa como um professional:

– Ele deve estar com jet lag e se equivocou com o horário. Davi, foi bom te encontrar aqui porque precisava falar com você.- disse Jonas.

– Sobre o quê?- perguntou o jovem Marra.

– Já está na hora de você começar a representar um papel na empresa. Conto com você para iniciar um estágio na sede da Marra dentro de pouco tempo.- disse Jonas, mais informando do que fazendo um pedido.

– Eu não quero me mudar para os Estados Unidos. A minha vida está no Brasil.- afirmou Davi.

– Davi, eu tive muita paciência esse ano, mas já não há motivo para você não ocupar o seu lugar como meu filho.- disse Jonas calmamente.

– Jonas, o meu lugar continua sendo na Gambiarra, com a minha família, os meus amigos e a PLUGAR.

– Davi, eu sou seu pai. E a Marra é uma empresa com valores familiares, você não pode fugir disso.- disse Jonas, perdendo a calma.

“ Não, mas aparentemente você pode.” – pensou Davi.

Perdida com o rumo da conversa, Megan só olhava de um para outro, sem se atrever a intervir.

– Meu filho, você vai. A bem ou a mal, mas você vai para os Estados Unidos .- indicou Jonas, tentando por um fim na conversa.

– Eu não quero ser o novo Jonas Marra. E o que é que você vai fazer com alguém que quer ser diferente de você?- perguntou Davi.

– Você é meu filho. O que é que você quer fazer da vida?- irritou-se Jonas.

– Eu quero ser o que eu já sou: Davi Reis. Eu não quero ser um mau carácter feito você.

E com isso, Davi se levantou da mesa e saiu, deixando Jonas num estado semi-apoplético e Megan sem entender nada.