Rio de Janeiro, 2024

Por vezes quando nos olhamos no espelho, vemos alguém que parece um estranho e pensamos: “Quem é esse?”. Não era propriamente o caso de Davi que, naquele momento, examinava a sua face no espelho do banheiro.

Era certo que se tratava da manhã em que festejava trinta e dois anos de existência, mas ele ainda se sentia um moleque por dentro. Contrariando o mito popular de que a ruindade conserva, ele era da opinião contrária. Era o fato de ser tão feliz que o fazia sentir uma eterna criança alegre.

Confirmando que a barba estava devidamente aparada e o cabelo suficientemente arranjado para passar pelo exame exigente da esposa, ele sorriu enquanto saía do cômodo. Ainda uns meses antes, Megan tinha ameaçado usar uma tesoura durante a noite, visto que ele tinha deixado crescer o cabelo e a barba num desastre de proporções e aparência de personagem bíblico.

– Isso é um tributo ao late Steve Jobs? – tinha perguntado na época uma Mrs Reis Marra de braços cruzados, muito pouco impressionada com o sentido de moda do marido.

Constatando que, para variar, ela tinha razão, Davi correu para o barbeiro mais próximo para resolver a situação.

Já tinham chegado quase todos os convidados para o churrasco em honra do aniversário de Davi em casa dos Reis Marra, quando o aniversariante acabou de descer as escadas e foi atacado por dois pequenos ninjas que se penduraram no pescoço dele.

– Nossa, o que é que vocês andam comendo? – perguntou o nerd, mal se conseguindo equilibrar com o peso dos filhos.

Se Megan conseguia ter os dois filhos ao colo, mesmo estando em cima de saltos de quinze centímetros, era uma vergonha completa ele não aguentar alguns segundos. Era bom mesmo ele começar a fazer exercício físico, ou aqueles monstrinhos adoráveis iam dar cabo das costas dele em dois tempos.

Se desequilibrando, ele saltou com um pé feito um saci, evitando um desastre quando conseguiu depositar as duas crianças no sofá mais próximo. Os pequenos Marra, claro, gargalharam na cara do aflito pai.

Daddy, você é tão silly! – ria-se a mais jovem dos Marra.

Jacqueline Rose Schmidt Parker Reis Marra, Jackie para a maior parte da família e princesa para o seu pai, tinha conseguido simultaneamente escapar aos receios maternos de que ela herdasse as feições marcadas do pai e aos desejos de Davi de que ela fosse uma réplica de Megan.

Muito pelo contrário, com três anos de idade acabados de fazer, ela era uma mistura muito engraçada entre os Parker, os Marra e até os Blois. Jackie era uma verdadeira salada de fruta em forma de gente.

Herdando os olhos azuis do bisavô cujo nome próprio homenageava, conseguia-se ver na pequena alguns traços faciais do avô Jerôme, a coloração da mãe, o cabelo do pai e às vezes até o mau feitio do seu avô Jonas.

– Essa garotinha vai ser um dia Presidente do Brasil, uma top model ou uma medalhista olímpica.- tinha vaticinado de uma forma brincalhona Ernesto, na primeira vez que pegou nela ao colo.

A beleza de se ser criança é que tudo é possível no futuro. Jackie seria aquilo que ela sonhasse ser. E tanto Megan quanto Davi estavam preparados para estarem ao lado dos filhos, os guiando passo a passo, mas sem pressões.

Às vezes o bom moço encontrava a bad girl a meio da noite encostada na ombreira da porta do quarto de um dos filhos, meditando em silêncio.

– Já está cheirando a fumo. - era invariavelmente o comentário de Davi, a abraçando por trás.

Rodando naquele abraço, ela o abraçava de frente, apoiando o queixo no ombro do marido e deixando vir à tona aqueles pequenos receios que tinham surgido fruto da sua infância e que, como ervas daninhas, de vez em quando ainda renasciam.

– Tenho medo, you know?– explicava a loira - Medo de errar com eles. Medo de não estar lá quando eles precisarem de uma mom.

A apertando nos braços, o bom moço queria tirar aquele peso imerecido dos ombros da esposa.

– Megan, você é a melhor mãe que eu conheço. É impossível não cometermos erros. Mas vão ser os nossos erros, não os dos nossos pais. O Júnior e a Jackie sabem que podem contar com a gente para tudo.

Era um pouco ilusório considerar que se pode ter tudo nesta vida, sem ter que fazer cedências ou aceitar compromissos.

Talvez fosse afinal dentro da contabilidade que se encontrasse a melhor metáfora para a vida. Segundo o método das partidas dobradas, o total de débitos deve ser igual ao total de créditos.

Megan e Davi sabiam que, entre família e vida profissional, alguma coisa teria que ficar um pouco para trás para terem espaço para prosperar dentro da sua felicidade. Nenhum dos dois teve dúvida qual era o ponto mais importante.

A vida profissional podia não avançar tão rapidamente, mas eles sabiam que iam acabar chegando onde queriam. Ainda antes do casamento, Megan tinha recebido o seu diploma em Pedagogia, o que tinha sido uma grande mais-valia para a expansão da Brazuca.

Combinando o seu conhecimento, o casal Reis Marra tinha trabalhado numa linha de aplicações direcionada para crianças, sempre com grande sucesso a nível mundial e eram agora Júnior e Jackie as cobaias, sempre que o casal tinha uma nova ideia e a desenvolvia em conjunto.

Parecia ter sido no dia anterior, mas já se tinham passado seis anos sobre a inauguração da sede da Brazuca. Por opção, tinham criado o edifício bem do lado da Marra Brasil e tinha sido um verdadeiro presente da vida ver as duas empresas crescendo lado a lado e ajudando a manter projetos como a PLUGAR, agora a cargo de Sandra e Rita.

Ernesto tinha segurado o barco a nível do funcionamento burocrático da empresa, ainda que após o seu casamento com Pamela, os dois tenham tirado alguns anos sabáticos para produzirem um filme que valeu à princesa Shelda mais um Globo de Ouro para a sua coleção e para se dedicarem ao menino que tinham adotado, voltando ao Brasil definitivamente apenas aquando do nascimento de Júnior.

– Qualquer dia vou ter que desenvolver uma aplicação para me lembrar do nome do tanto de gente que faz parte dessa família. – tinha brincado Davi na época.

– Davi, eu já te desejo good luck para você conseguir explicar para esse baby boy a nossa crazy family tree. – tinha comentado Megan, com Júnior adormecido nos braços.

– Espera, eu pensei que o baby boy dessa família era eu. – brincou o bom moço, afagando a bochecha rosada do filho recém-nascido.

Sorry, você foi desbancado de posto.- riu-se a bad girl.

Momentos depois começou a entrar a família para visitar o bebê e, olhando um para o outro, o casal Reis Marra acabou rindo. Não parecia mesmo fácil explicar ao filho que o dad de Megan era também o pai de Davi. Mais tarde, o casal Reis Marra constatou que afinal as crianças tinham muito mais poder de encaixe do que muitos adultos.

Claro que, de vez em quando, passavam por períodos em que os filhos e o trabalho ocupavam quase o seu tempo todo, mas Megan e Davi faziam questão de ter tempo um para o outro.

Quando Davi cometia a asneira de fazer da cama uma baia de trabalho, espalhando o computador, o tablet e a papelada, a esposa fazia questão de lhe mostrar com quantos paus se fazia uma canoa de uma maneira que só podia ser muito Megan.

Davi ia recordar para sempre aquela ocasião em que estava testando um código, deitado na cama afogado em papelada e com o tablet sobre a sua cabeça quando Megan surgiu na sua frente fantasiada de Marilyn Monroe, montando um showzinho bem convincente enquanto cantava um Happy Birthday Mr President bem inspirado para o bom moço. Escusado será dizer que só faltou o tablet e a papelada voarem pela janela enquanto o nerd atacava a esposa:

– Megan, você já está pedindo demais do meu autocontrole. - foi o único comentário de Davi, antes de ocupar a boca de outra forma.

Foi apenas por pura coincidência que Jackie veio a nascer nove meses depois daquela noite.

Era nessa reminiscência do passado que o bom moço ocupava a cabeça naquele momento. Já que era o dia do seu trigésimo-segundo aniversário, bem que podia pedir à esposa para fazer um bis daquela performance.

Davi sorria enquanto pensava nos seus planos para aquela noite, mas teve que acordar para a vida quanto viu que o filho corria perigosamente na direção da porta-janela fechada.

– Júnior! - berrou o pai, o puxando a tempo de não bater com o nariz no vidro.

De tudo o que o filho de cinco anos podia ter herdado dele, às vezes Davi se afligia vendo como o filho era um cabeça no ar, propenso a acidentes de percurso. Só podia ser um castigo ver como o filho era um tapado adorável, com a mesma descoordenação motora que afetava o pai, ainda que se tratasse de um pequeno gênio no que dizia respeito a tecnologia.

– Garoto, um dia você me mata do coração.- brincou Davi suspirando, pegando nele ao colo e o abraçando com força.

Expedita, a filha já tinha saído para o jardim e Davi a seguiu, pousando o filho no chão.

– A minha sogrinha favorita! – brincou Davi, abraçando Pamela quando a viu perto da piscina.

– A sua única sogrinha, young man! – respondeu a brincalhona princesa Shelda, devolvendo o abraço. – Happy birthday, my dear.

Naquele momento já os netos trepavam pelas pernas da sua grandma Pamela, mas a quem estivesse de fora seria difícil conjecturar que aquela loira fenomenal tivesse idade para já ser avó de duas crianças.

Ernesto brincava muitas vezes que a esposa tinha descoberto a fonte da juventude e talvez não estivesse muito longe da verdade.

À sogra, se seguiram a mãe e o padrasto, acompanhados pela irmã adolescente, que apertaram Davi nos braços. Depois de os cumprimentar, o bom moço levantou a sobrancelha perante a roupa que deixava a barriga de Emília de fora e Clint assumiu uma expressão de solidariedade e concordância em relação à falta de propriedade daquela indumentária, naquela que eles ainda consideravam a sua pequena doll. Sandra apenas sorriu perante aquela comunicação masculina muda tão pouco complexa, mas antes complexada.

– Os kids também crescem, Davi. – comentou Megan, se materializando vinda do nada do lado dele e colocando um braço em volta da cintura do nerd.

– Mas também não precisava ser tão rápido. – comentou o bom moço, procurando com os olhos os filhos. - Já chegou todo o mundo?

– Falta só a madrinha do Júnior, mas ela já deve estar chegando. – respondeu a bad girl muito bem humorada, apertando a barriga do marido.

– Que é que foi, sua doidinha? – riu-se ele.

Oh, estou só aproveitando essa pancinha gostosa, my love. – brincou ela, fazendo correr as mãos para as costas de Davi e as deixando cair até um ponto mais estratégico.

Feliz, mas com reticências por estar em público, o bom moço correu os olhos pelos convidados, para se certificar que ele e Megan não estavam a dar um espetáculo maior do que o que usualmente já faziam.

Bad girl, o que é que você está fazendo? – comentou ele sorrindo, enfiando o nariz na curva do pescoço da esposa – Juízo, que tem mais gente em casa. E eu não tenho pancinha nenhuma, sua doida. – concluiu ele, beliscando o traseiro da americana.

– Ué, gente! Esse casarão tá cheio de quarto. Se tranquem num e resolvam o problema! – comentou Luene rindo, se aproximando deles arrastando os seus agregados.

Se algumas pessoas tinham percursos profissionais pouco usuais, Luene Michelle Almeida batia os pontos à maioria. Quando Megan deixou de ter tempo para a sua empresa, que já tinha crescido ao ponto de se tornar numa das principais da área, foi Luene quem assumiu a marca.

Era quase hilário ver a ex-piriguete explosiva da Gambiarra sentada na primeira fila das semanas de moda de Paris e Milão, representando a marca Megan Parker Marra. Vander, convertido em marido troféu, fazia questão de ir sempre junto, para alegria dos jornalistas da área, que tinham muito material com que trabalhar só à conta dos escândalos deliberados do casal.

Em abono da verdade, desde que o filho tinha nascido, parecia que tanto Luene como Vander tinham aprendido a controlar mais a sua impetuosidade. Pudera, o pequeno Anderson sugava a maior parte do excesso de energia que caracterizava os pais.

Saltando dos braços do pai, o pequeno ruivo de quatro anos correu na direção das outras crianças.

– Eu juro que esse garoto é pior do que um demônio da Tasmânia. – comentou Vander suspirando.

– Cala a boca, que é o teu filho! – respondeu Luene, dando um sopapo com força na cabeça do seu amado marido.

– Quem se deu bem foi o Danilo. Dirigindo a Marra dos Estados Unidos e com aquelas gringas todas atrás dele. – comentou o ruivo, apertando o ponto em que tinha sido agredido.

True. Mas o Danildo mostrou que pode ser um bom gestor e gosto muito do advogado que ele levou para trabalhar com ele. Um verdadeiro prince. – respondeu Megan, pegando um suco.

– Isso é para eu ficar com ciúmes? – brincou Davi.

Oh, dear. E já te aturo faz vinte e dois anos. Já nem posso elogiar o profissionalismo de alguém da Marra que você fica assim? É só business, baby. – retrucou a bad girl, se aninhando nos braços do marido.

– Falando de trabalho num dia de aniversário? Eu eduquei vocês dois muito mal. - comentou Jonas sorrindo, se aproximando dos filhos e os apertando num abraço.

Nos últimos anos, o Marra-Man parecia também ter conseguido fazer andar o relógio para trás. Satisfeito com a sua vida de stay-at-home dad e grandpa, era no convívio estreito com as crianças que ele se sentia rejuvenescer.

Jonas tinha gostado tanto da experiência de voltar a ser pai que depois dos gêmeos ele e Verônica tinham tido mais uma filha. Maria Antônia tinha a mesma idade de Júnior e tinha vindo fechar em beleza aquela família.

– Aí, menino. Desculpa, mas o Vicente não pode vir. Foi conhecer a família da namorada. – explicou Verônica perante o enteado.

– Tudo bem, o que não falta são festas de aniversário nessa família. E o meu abraço? – pediu Davi aos irmãos.

Apertando os três de uma só vez, o nerd se viu distraído quando viu que Gláucia já pegava em mais uma cerveja. Temendo um barraco, já que a avó flirtava indecentemente com Vander, o bom moço largou os irmãos, mas Jonas já tomava bonacheiramente conta da situação:

– Mãe, já chega. – pedia ele mansamente , tirando o copo da mão de Gláucia.

Assentindo, a matriarca Marra sorriu e se deixou conduzir pelo filho para se sentar numa espreguiçadeira.

– É uma relação estranha a desses dois. – comentou Sandra, se aproximando para entregar um copo para o filho.

– Mãe, às vezes a gente aprende a demonstrar amor de uma forma pouco normal. – respondeu Davi.

Depois de Sílvio e Marisa se terem mudado para casa do filho, em São Francisco, tinha sido Jonas a chamar sobre si a responsabilidade de velar por Gláucia Beatriz.

Era uma festa simples, descontraída, despretensiosa e com clima família, aquele churrasco em casa dos Reis Marra. Era completamente a cara do aniversariante.

Com a família e os amigos espalhados informalmente pela piscina e pelos jardins, era uma confusão de risos entre os adultos e as crianças, correndo e brincando, já nem se sabendo quem era quem.

Davi estranhou quando Megan não quis jogar futebol com a molecada, como era seu hábito, mas não teve muito tempo para pensar no assunto porque foi engolido por um mar de crianças.