Gambiarra, 2014

Debaixo da coberta, com o quarto numa situação de escuridão quase total, Megan fazia de conta que dormia, enquanto Linus se encontrava deitado aos pés da cama.

A porta do quarto se abriu e um corpo se enfiou debaixo da coberta, afundando o colchão do lado oposto ao que a loira ocupava. Uma mão cálida tocou na cintura dela, ao passo que outra mão afagou a face dela, tentando transmitir alento.

– Amor, você tem que comer….- pedia uma voz grave num murmúrio suave, enquanto se ligava um candeeiro.

I´m not hungry, Davi.- respondeu ela, com voz de quem já não conseguia mais chorar.

– Mesmo assim.- continuou ele, a abraçando- Olha, a minha tia deixou aquela torta que você gosta e o meu tio trouxe um carregamento de mortadela… e você está sem comer nada há mais de um dia.

Later.- pediu ela, se aconchegando nos braços dele.

A operação de resgate tinha levado poucas horas a encontrar o corpo de Jack Parker. Aquele que muitos consideravam eterno, tinha perecido para além de qualquer dúvida como um comum mortal.

Agora, os seus restos mortais eram levados de volta para o seu lar, do mesmo modo que se esperava que os seus entes queridos se reunissem na Califórnia para a derradeira despedida.

Mesmo compreendendo as implicações do que tinha acontecido, Megan não conseguia sair da depressão em que tinha caído. Não saindo do lado dela, Davi tentava segurá-la como podia. Pudesse ele trocar de lugar com ela ou de alguma forma absorver o seu sofrimento, ele já o teria feito.

A beijando por todo o lado, ele queria que ela percebesse pelo menos o mais importante: ela era amada.

– Amor, olha, a Luene esteve cá até há pouco, o Danilo e a Danusa dormiram cá no sofá e a Berenice já ligou um monte de vezes para tentar falar com você. Megan…tem muita gente que gosta muito de você. – concluiu Davi, limpando os restos de lágrimas dos olhos vermelhos dela.

– Mas não grandpa. Not anymore. - sussurrou ela, com a voz trémula.

Ele pousou a cabeça na almofada e inclinou-a, colocando-se a milímetros da loira.

– Não diz isso. – pediu ele mansamente. - O Jack pode não estar fisicamente aqui, mas ele vai estar sempre com você e com a Pamela. Quando a gente gosta muito de outra pessoa é assim: a gente passa a fazer parte dessa pessoa.

Um lampejo de luz passou pelos olhos da americana e ela procurou a verdade nos olhos do nerd.

– Você acredita mesmo nisso, Davi?

– Claro que sim, Megan. – respondeu ele, a beijando.

– Mas não é justo. – disse ela quando quebrou o beijo- It´s not fair grandpa ter partido agora. Não quando ele ainda ia fazer muita coisa.

– Então foca no fato de ele ter feito muita coisa. – contrapôs Davi - É, Megan. Ele cumpriu muitos sonhos e foi muito feliz no processo. Jack soube aproveitar a vida, tenho a certeza disso.

Megan fechou os olhos e encostou a face contra o pescoço do nerd.

– Então é selfish eu me sentir assim?- perguntou ela.

– Egoísta? Não, nunca. É muito humano da sua parte. – assegurou ele, correndo os dedos pelo cabelo dela.

Uma batida incisiva soou na porta anunciando a entrada de Jonas Marra que, cabisbaixo, acolheu a filha nos seus braços, a confortando. O jato já os esperava para os levar para a Califórnia e o empresário não podia deixar de acompanhar a filha na derradeira viagem de despedida daquele que tinha sido um pai para ele. One last goodbye, one last time.

Montecito, 2014

A casa estilo colonial tinha sido adquirida por Jack Parker logo no primeiro ano de casamento. Um dia, passando perto dali, Branca tinha ficado encantada com a propriedade e, num gesto de amor e excentricidade, Jack tinha feito uma oferta irrecusável ao proprietário que ficou mais do que feliz com o valor oferecido.

Aquela casa, no condado de Santa Bárbara, albergava muitas memórias dos Parker. Tinha sido naquela casa que Pamela tinha nascido e crescido, enchendo a casa de risos e felicidade, mas também tinha sido ali que Branca tinha falecido, vítima de doença prolongada.

Ainda que o velho Parker não parasse muito tempo num local, por conta dos seus negócios, aquele era o sítio mais próximo que ele tinha de um lar permanente.

Contrariando os planos de Jack, atendendo aos danos que o seu corpo tinha sofrido na queda do avião, não tinha sido possível criogenar o velho Parker. A alternativa foi enterrá-lo ao lado de Branca.

Quando Megan finalmente se reuniu com Pamela na casa dos Parker, a dor falou mais alto que as palavras. Ainda que Jack fosse muito estimado, apenas elas sabiam e partilhavam do sofrimento profundo que era perder aquele homem, arrancado irremediavelmente das vidas delas.

Ainda que se tivessem uma à outra, nada seria o mesmo. As mulheres Parker se fecharam no quarto que tinha sido de Pamela durante a infância, aguardando a hora do velório entre as memórias de um passado feliz, enquanto Jonas e Davi se reuniam silenciosamente aos Benson na sala.

Tinham sido muitos aqueles que tinham vindo prestar uma última homenagem a Jack Parker. O edifício escolhido para lhe prestar um último tributo mal acomodava toda a gente a ainda os jornalistas que se espremiam para registar uma imagem da cena.

Sentadas na primeira fila não podiam deixar de estar Pamela e Megan, com Davi do lado da sua bad girl, segurando insistentemente na sua mão e os Benson do lado da princesa Shelda, tentando consolar o inconsolável.

Incapaz de manter o domínio em público que a caracterizava, Pamela aceitou que fosse Jonas a fazer o elogio fúnebre, o que ele fez de uma forma tão emotiva, ressaltando o papel de Jack enquanto pai e avô que não ficaram olhos secos naquele auditório quando ele terminou, a não ser os de Davi, que suspeitava de excessiva emotividade do pai.

No cemitério, quando desceram o caixão, as mulheres Parker se abraçaram, transmitindo uma à outra a força que individualmente não tinham. Reconhecendo que não se conseguia dizer adeus a quem se ama, elas mantiveram o abraço mesmo quando já todos se encontravam dentro da limusine preta, para os levar de volta para a casa.

O mundo não iria esperar. Na qualidade de testamenteiro de Jack, o seu irmão mais novo Peter Parker tinha pedido para fazer de imediato a leitura do testamento, ao que Pamela assentiu.

Reunidos na sala da casa, nem Pamela nem Megan tinham colocado objecção à presença de Jonas e Davi que, sentados no sofá do lado oposto ao sofá em que elas estavam sentadas, ouviram a última vontade do velho Jack.

Straight to the point, o tio Peter explicou que Jack tinha deixado as suas ações da Marra a Megan e o remanescente da sua fortuna a Pamela.

Completamente pego de surpresa, Davi olhou para o pai que mantinha uma expressão imperturbável. Megan seria, a partir daquele momento, a segunda maior acionista da Marra e de fato a peça de xadrez mais importante no jogo da empresa. Se ela escolhesse representar a mãe, ela seria a maior acionista da Marra, mas se ela se aliasse ao pai, ninguém conseguiria fazer frente aos dois.

Entregando uma carta selada a Megan, Peter Parker se despediu das sobrinhas, explicando que a sua esposa Mary Jane o esperava em Nova Iorque.

Tentando perceber o porquê das ações do seu grandpa, Megan se dirigiu sozinha para o quarto de Jack, se enroscando na poltrona que tinha ainda o cheiro do avô. Pegando no paletó preferido do velho Parker, ela o vestiu e abriu a carta que ele lhe tinha deixado. A última.

My little ray of sunshine,

A vida é por vezes muito teimosa. Às vezes, a little bit como a sua grandma Branca, a vida é um furacão que nos vira do avesso, nos destrói e nos obriga a renascer com mais força. Se você está lendo essa carta, você sabe do que eu estou falando.

My angel, eu quero que você saiba que eu tenho muito orgulho em ser o seu grandpa. Te ver crescer, vendo você se transformar numa mulher com um potencial incrível, foi uma das maiores blessings da minha vida.

É por isso que estou te deixando as ações da Marra. Sei que é muita responsabilidade para você, my love, mas acredito que só você conseguirá realizar aquilo que eu não consegui.

Don´t worry Megan, o seu grandpa vai estar sempre velando por você, every step of the way.

With all my love,

Grandpa”.

Descobrindo que afinal ainda existiam lágrimas dentro dela, Megan viu quando as letras diante de si começaram a ficar borradas pelo produto do seu choro.

Depois do jantar, Pamela, Jonas e os Benson ficaram na sala partilhando histórias sobre Jack, mas Megan quis se retirar para o seu quarto e Davi foi com ela.

Exausta dos acontecimentos dos dias anteriores, Megan caiu num sono profundo nos braços de Davi enquanto ele mantinha uma vigília do sono dela. Ele ainda acabou dormitando um pouco, mas de madrugada acordou inquieto.

Tomando cuidado para não acordar a sua bad girl, ele se levantou da cama em direção ao terraço do segundo andar para apanhar um pouco de ar.

Sentada numa cadeira de balanço vintage, Pamela observava a paisagem noturna, aproveitando a brisa suave e um céu estrelado. Davi anunciou a sua presença colocando as mãos nos ombros da sogra e se sentou no cadeirão do lado dela.

– Sabe que eu ainda me lembro quando a gente era criança e você nos trazia para aqui.- comentou o nerd.

Yeah. Good times.- concordou a princesa Shelda com o princípio de um sorriso nos lábios. – Daddy gostava de ter a casa cheia e vocês dois juntos eram uma animação. Remember quando daddy quis ensinar you two a andar de cavalo?

– Lembro.- riu-se Davi. – Jack queria que fossemos verdadeiros cowboys. Eu era um desastre, claro, mas a Megan apanhou logo o jeito. Não ia ser um cavalo a meter medo em Megan Lily.- completou ele.

No. – riu-se Pamela.- Megan é fearless. Ela se atira de cabeça em tudo e não desiste até conseguir vencer. Just like daddy.

Arrancando Pamela do seu silêncio contemplativo, Davi fez uma pergunta que lhe queimava na garganta.

– Pamela, o meu pai sabia do conteúdo do testamento do Jack?

– Acho que sim. Daddy já tinha discutido o testamento comigo no ano passado, por isso também deve ter falado com o Jonas. Why do you want to know, dear? – perguntou ela.

Davi acabou por nada responder porque Megan se aproximou deles e se sentou no colo do seu baby boy.

– Não consigo dormir sem você do meu lado. – explicou ela, se enroscando nele. – Such a beautiful sky.- comentou ela, olhando para cima.

You´re quite right, sweety.- assentiu Pamela – Faz lembrar aquelas noites em que seu grandpa improvisava um acampamento de faz de conta nos jardins, com direito a fogueira e S´mores.

Mãe e filha olharam uma para a outra, sorrindo de uma forma terna.

I wonder… será que ainda tem marshmallow na despensa?- perguntou Megan, sendo imediatamente compreendida por Pamela e Davi que sorriram.

Rio de Janeiro, uma semana depois

A festa de inauguração da Marra Brasil já tinha sido adiada por uns dias, após a notícia da morte de Jack, mas Jonas não quis esperar mais.

Apesar de ainda não se sentir completamente recomposta, Megan achou que era sua responsabilidade comparecer na referida inauguração, mostrando ao mundo que a empresa se mantinha tão sólida quanto sempre.

Se preparando para a festa como quem se prepara para a guerra, ela acabou de colocar a roupa, analisando o resultado final em frente ao espelho e se encontrou com o nerd, que a esperava na sala.

Quando, uns dias antes, ela tinha tomado a decisão de passar uma procuração a Jonas sobre as suas ações, Davi tinha reagido de uma forma que ela tinha estranhado.

– Você tem mesmo a certeza que quer fazer isso? – lhe tinha perguntado ele, nervoso com algo.

Sure.- tinha respondido ela.- Davi, entre a faculdade, a PLUGAR e a minha empresa, no momento eu não tenho tempo para mais nada. In the meantime, dad trata da Marra. Depois eu vejo como vou fazer.

– Megan…- tinha dito ele inquieto.- Mas essa ideia foi sua ou foi do pai?

– Foi dad quem sugeriu, mas eu quis.- disse ela, encerrando a conversa.

O edifício da Marra Brasil podia não ter ainda a magnificência da sua congênere norte-americana, mas tinha o mínimo de imponência que Jonas exigia.

Como um rei que recupera o trono após um golpe de estado, o Marra-Man esbanjava o seu charme insolente, circulando pelo meio dos convidados que o bajulavam, distribuindo migalhas de atenção entre os seus súbditos.

Sorrindo como um gato satisfeito, os olhos dele pousaram sobre Verônica que recepcionava alguns convidados VIP. Ela era não só uma mulher muito interessante, como uma que o interessava muito.

Jonas só se irritou quando ouviu a voz da sua progenitora mesmo atrás de si.

– O que é que você está fazendo aqui? – perguntou ele bruscamente, a puxando por um braço para uma das salas.

– Ué, os meus netos me convidaram. – respondeu Gláucia, entrando na sala. - Aliás, eles convidaram a família toda. Você ainda sabe o que é isso, Jonas? Uma família?

– Eu não quero você aqui! - disse ele, carregando num botão para chamar a segurança.

– Mas eu vou ficar.- declarou Gláucia Beatriz, colocando a bolsa em cima de uma cadeira. – Porque quer você queira quer não, eu continuo sendo a sua mãe.

– Infelizmente. – comentou o empresário de uma forma azeda. – O que é você quer de mim? Dinheiro? Pois você não vai ver nem mais um centavo. Ou você sai da minha vida ou eu te obrigo a sair.

Colocando de novo a alça da bolsa no ombro e baixando a voz, Gláucia comentou antes de sair do cômodo:

– Pensei que você tinha aprendido a lição, Jonas. Você sabe que eu também sei o que é ter um filho que tem tanto nojo da gente, que não consegue olhar na nossa cara.

Quando Megan e Davi entraram na festa, os fotógrafos se precipitaram sobre a nova acionista da Marra. Fazendo a sua melhor imitação do papel do Kevin Costner no filme “O guarda-costas”, Davi protegeu Megan até chegarem numa zona mais reservada.

Clint e Sandra, que os tinham acompanhado, estavam impressionados pela negativa com o circo montado.

– O seu pai nunca vai mudar. – comentou Sandra, abanando a cabeça.

Maybe not.- se intrometeu Clint.- Mas ninguém pode negar que essa infraestrutura é amazing.- apreciou ele, soltando o nerd dentro de si.

Davi não lhes prestou atenção porque tinha reconhecido uma figura no piso superior. Deixando Megan com o casal Schmidt-Adams, ele foi no encalço da figura.

– O que é que você está fazendo aqui?- perguntou Davi quando se encontrou frente a frente com aquele ser encapuçado conhecido.

– Estou no meu futuro local de trabalho, Golias. E você? – atacou ele.

Descendo completamente o capuz, Zac Virus sorriu maquiavelicamente perante o silêncio do adversário.

– O que foi, Golias? Pensou que eu não ia descobrir que você é, Davi Marra?

– Quais são os seus planos? – disparou Davi.

– Por agora, trabalhar na Marra Brasil. Aliás, recebi um convite diretamente do seu daddy. E relaxa porque ele não sabe nem sonha que você é o hacker responsável por aqueles ataques à Marra.

– Nós dois e a Manu fizemos essas ações.- contrapôs Davi.- E agora você se vendeu.

Olhando Davi de cima a baixo, Zac não conseguiu evitar um riso irônico.

– Você não tem espelhos em casa, Davi?

Taquara, 2014

Dias depois da inauguração da Marra Brasil, Davi se deslocou à Taquara, a pedido da avó, que queria que ele servisse de intermediário entre ela e Jonas.

Geralmente, era Megan quem tratava desses perrengues dentro da família, mas querendo tirar peso dos ombros sobrecarregados da namorada, ele se ofereceu para tratar do assunto.

Horas depois, ele saiu com os cabelos em pé do apartamento dos Marra da Taquara. Gláucia Beatriz podia ser a avó dele, mas era preciso uma paciência de santo para lidar com ela, ainda que debaixo daquele invólucro de trambiqueira pudesse estar um vislumbre de uma outra Gláucia que até fazia jus ao seu papel como matriarca dos Marra.

Distraído, ele não percebeu que estava a ser seguido até que um fantasma do passado chamou por ele. Incrédulo, Davi se voltou encontrando quem nunca mais pensava encontrar.

– Herval….- reconheceu Davi, franzindo a testa com a surpresa.