Gambiarra, 2014

Naquele ano a organização da festa junina da Gambiarra tinha ficado a cargo de Megan. Só isso explicava o cuidado excessivo ao pormenor nas decorações e a sofisticação exagerada na comida que iria ser servida.

Caminhando de um lado para o outro da praceta, dando as últimas indicações, a loira se certificava que tudo estava de acordo com os altos padrões de qualidade que ela exigia.

Planejar aquela festa tinha sido a forma que ela tinha encontrado para agradecer a todos o carinho com que a tinham tratado desde que ela se mudara para o bairro.

Debruçada sobre a mesa de doces, ela sentiu um corpo familiar se encostar nas suas costas e dois braços a envolverem a cintura dela. Uma boca acostumada mordeu o lóbulo da orelha da americana, comentando numa voz grave:

– Linda e minha!

Sentindo um arrepio agradável, ela se voltou e agradeceu ao seu galante namorado com um beijo na boca, o marcando com o seu batom vermelho.

So, baby boy, o que é que você acha da festa? Too much? – perguntou ela, limpando os lábios dele dos restos do seu batom.

– Te conhecendo, acho que podia ser bem pior. – comentou ele ainda a abraçando, o que não evitou que ela lhe desse um sopapo, ofendida.

– Davi!- se queixou ela, enquanto ele se ria.

As agressões não continuaram porque já começavam a chegar os convidados para a festa.

– Megan, você está de parabéns! Está tudo fantástico. Five stars! - comentou Ernesto, se aproximando do casal.

Thanks, Ernesto. Ainda bem que alguém sabe like, dar valor para sofisticação e o saber montar uma boa party, right? – comentou ela, beliscando discretamente a cintura de Davi.

– Au! - se queixou dele. - Pára com isso, sua doidinha.- disse ele, calando a sua bad girl com um beijo exagerado.

Habituado à excentricidade do casal, Ernesto nem ligou nenhuma para a excessiva demonstração de carinho entre Davi e Megan. Ele já os tinha pego quase pelados numa sala da PLUGAR, depois do horário de expediente. Se a amizade deles tinha sobrevivido àquela cena embaraçosa, iria sobreviver a tudo.

Se Ernesto se tinha revelado um bom amigo para Davi, acabou por se tornar também num grande amigo de Megan. Aliás, desde que ela se tinha mudado para a Gambiarra, o que não lhe tinham faltado tinham sido amigos, formando um grupo cada vez maior.

Temendo que viver juntos fosse demasiada responsabilidade para um casal tão jovem, tanto Pamela como Sandra e Rita tinham aconselhado Megan e Davi a residirem em casas diferentes. E foi assim que Megan resolveu alugar a casa que tinha sido de Sandra, do lado da casa de Rita e Dante, que tinha ficado vazia desde o casamento da mãe de Davi.

Os habitantes da Gambiarra rapidamente se habituaram às figuras que, de madrugada, se esgueiravam pela rua, entre as duas casas. Às vezes era Davi quem ia dormir a casa de Megan, outras vezes era ela quem ia dormir à garagem com ele, outras vezes ainda se encontravam os dois no meio da rua a caminho da casa um do outro. O único problema era o pobre do Linus, que ficava sempre confuso, nunca sabendo em qual das casas era suposto dormir.

Assumindo o seu novo papel de dona de casa, Megan aprendia agora a se tornar auto-suficiente, dentro dos seus padrões de uma Parker-Marra, of course. Limitando a ajuda a uma diarista duas vezes por semana, a princesa Marra executava as restantes tarefas com mais empenho do que resultados.

Não que Davi tivesse razão de queixa. Ele ainda se lembrava daquelas vezes em que tinha acordado do lado de Megan, nus no chão da cozinha dela, em volta de um emaranhado de roupa, resultado das noites que terminavam com uma guerra de comida, porque sendo a bad girl um desastre como cozinheira, qualquer tentativa de confeccionar uma refeição acabava de muitas maneiras, mas raramente com pratos em cima da mesa.

Eles poderiam nunca ser um casal normal, mas pelo menos nunca seriam monótonos. Eles se amavam e se desafiavam, trazendo à superfície um do outro as facetas das suas personalidades que ocupavam o seu espaço mais íntimo. Perto de Megan, Davi virava um homem de verdade, anulando a estranha tendência que ele tinha para ser um mole. Se a vida dele tinha brilho e se ele tinha personalidade, o devia na íntegra à sua bad girl. Por outro lado, o amor de Davi acalmava a impaciência de Megan e focava a sua energia incontrolável em projectos que não só a preenchiam, como ajudavam outros.

Tinha sido assim que ela tinha resolvido cursar Pedagogia e se tornar professora voluntária de inglês na PLUGAR. E tinha sido assim que no ano anterior, com o incentivo de Davi, ela tinha começado o seu próprio negócio.

Notando a capacidade artesanal das mães de algumas crianças da PLUGAR, conjugada com os seus conhecimentos de moda, Megan resolveu lançar uma linha exclusiva de bolsas, que seriam confeccionadas por habitantes da Gambiarra e desenhadas pela própria da americana. Se tudo corresse bem e ela conseguisse lucro, ela conseguiria apoiar pelos seus próprios meios não só a PLUGAR, mas toda uma comunidade carente.

Com os contatos da sua Grand-mère na Europa e com um pequeno empréstimo do seu grandpa Jack, não lhe tinha sido difícil arrancar com o negócio. Depois de muitas noites mal-dormidas trabalhando afincadamente em desenhos e planos de negócio, a marca de bolsas Megan Parker Marra foi finalmente lançada, com aplausos dos críticos da especialidade e muitas notas de encomenda para lojas europeias e norte-americanas.

No dia da festa de lançamento, uns meses antes, mesmo sem saber a diferença entre uma tote e uma satchel, Davi se posicionou na primeira fila, com um orgulho tremendo da mulher que ele tinha a sorte de ter do lado dele. O único problema que ele tinha tido tinha sido uma crise de ciúmes, por conta da ajuda que o empresário Arthur Nigri tinha prestado a Megan para o arranque do negócio.

– Você vai ter que me explicar o que é que esse cara percebe de bolsas. – tinha comentado de uma forma ácida o nerd, não gostando da forma como o referido Arthur olhava para a loira.

Nothing.- respondeu ela, divertida com a cara de aflição do seu baby boy– Mas ele percebe everything sobre negócios e é isso que me interessa.

Pamela também fez questão de comparecer à festa de lançamento, orgulhosa do rumo que a vida da filha estava tomando. Tinha passado pouco tempo sobre a sentença final de divórcio do casal Marra e a princesa Shelda estava seriamente a considerar se mudar permanentemente para o Brasil, para estar mais perto da filha, o que faria com certeza a alegria de muitos nerds, especialmente de um certo Ernesto Avelar, que só faltava babar quando via Pamela a visitar Megan na Gambiarra.

Se não existia dúvida que Davi e Megan se amavam, isso não evitava que de vez em quando eles tivessem algumas brigas e desentendimentos. A razão para isso era normalmente uma única: Jonas Marra.

Sabendo que Davi, acompanhado pelos seus colegas hackers, continuava a lançar ações de protesto contra as políticas da Marra, acobertado pelo alter ego Golias, Megan se revoltava com as atitudes do namorado.

– Davi, é o nosso dad. Você não pode continuar fazendo isso.

– Megan, justamente por ser o nosso pai é que eu me tenho controlado. Eu podia fazer muito pior. Você sabe que os piores podres dele estão guardados. Eu só o estou a controlar.

– Até quando, Davi?

Depois do divórcio dos Marra, a posição de Jonas dentro da empresa tinha ficado fragilizada. O cauteloso Jack Parker tinha incluído uma cláusula no contrato pré-nupcial da filha que obrigava Jonas a entregar 10% da sua parte das ações para Pamela no caso de divórcio, o que tinha feito com que, naquele momento, a soma das ações de Jack com as de Pamela os tornasse nos maiores acionistas da Marra, com poder de decisão acima do de Jonas.

– Deve ser complicado para o seu pai, ficar assim dependente das decisões da ex-mulher e do sogro sobre a sua própria empresa.- tinha comentado Ernesto com Davi.

– A Pamela não é vingativa.- tinha respondido Davi – Ela aceita que o Jonas sabe o que faz com a empresa e não acredito que ela se vá meter muito nisso.

– E o Jack?- tinha perguntado Ernesto, o que deixou Davi a pensar no assunto.

Outro ponto em que Megan e Davi discordavam muitas vezes era sobre o seu estilo de vida. Continuando a trabalhar para a revista da sua Grand-mère, com a sua empresa e os presentes que recebia da sua mom e dos seus avós, a loira estava financeiramente muito mais segura que o teimoso do seu baby boy, que insistia no seu estilo de vida mendigo-chic

Baby, bem que a gente podia ir de férias para as Seychelles. Você nunca foi…- tinha proposto ela numa tarde quente na Gambiarra, com os dois despidos debaixo de um lençol, ameaçando adormecer.

–Megan, com o meu orçamento, já está de bom tamanho se eu te conseguir levar no pão de açúcar.- tinha respondido ele de olhos fechados, a puxando para cima dele.

A exposição à vida pública não tinha sido também fácil para os dois. Quando o namoro entre os filhos de Jonas Marra se tinha tornado do conhecimento geral, estourou um escândalo a nível mundial. Pela internet corriam notícias difamatórias sobre o comportamento do casal, mas estando eles resguardados na Gambiarra, preferiram esperar pelo escândalo seguinte, que iria com certeza desviar as atenções deles.

Ainda que se tivesse passado mais de um ano, eles ainda tinham que lidar de vez em quando com mentes pouco iluminadas. Mesmo na gala da Parker-Tv no Brasil eles tinham lidado com comentários desagradáveis.

Controlando a sua timidez, Davi tinha desfilado pela passadeira vermelha de mão dada com Megan, mas teve que a segurar firme quando sentiu que ela ia partir para cima do repórter Shin-Soo, por conta de um comentário desagradável por parte dele sobre amor fraterno.

Agora, depois de tudo o que tinham passado, mereciam aproveitar a noite que Megan tinha organizado na Gambiarra, a festa caipira mais elegante de que se teve memória.

Matias tinha tirado Megan para dançar e, sentado do lado da tia, Davi ouvia as recriminações de Rita sobre a figura sisuda que se tinha pespegado num canto da festa, com um copo na mão, evitando conversar com quem fosse.

– Filho, não acho que a Manuela funcione como monitora na PLUGAR.

– Tia, a senhora também? A Megan está sempre me enchendo a cabeça com isso.- queixou-se o nerd.

– E com razão, Davi. A Manuela não leva o menor jeito com criança e tá na cara que ela faz um frete quando está na PLUGAR. Então, o que é que ela quer com a gente? Ninguém gosta dela. Pior, filho, eu já vi ela mexer no seu computador quando você não está…

– Deve haver aí alguma confusão, tia. A Manu é uma grande programadora, das melhores que eu conheço.

Davi não podia explicar para a tia que, quando ele olhava para Manuela, não era ela quem ele enxergava, mas sim o avatar da grande guerreira Maya, uma lenda entre os hackers. O que o tonto do Davi não percebia era que a realidade nem sempre correspondia ao idealizado no mundo virtual.

Megan e Matias vieram ter com eles e a danadinha já estava servindo de cupido, incentivando o primo emprestado a convidar a sua prima Danusa para dançar.

Puxando pelo seu baby boy para dançar um forró com ela, Clint e Sandra se vieram despedir deles, tendo que regressar cedo para casa.

No final do ano anterior a família Schmidt-Adams havia crescido mais um pouco. Clint e Sandra tinham adoptado uma menininha adorável de quatro anos de seu nome Emília que, com a sua energia inesgotável e personalidade travessa, parecia muito mais adequada como irmã de Megan do que como irmã de Davi.

Emília, a little doll , como Megan lhe chamava, rapidamente se tornou na nova princesa da família. Não só Sandra se sentia realizada vivendo aquilo que lhe tinha sido tirado no passado com Davi e Clint experimentava as delícias da paternidade, como se sentiam todos ainda mais entrosados, como se aquela garotinha fosse parte de todos.

Da primeira vez que Clint e Sandra tiveram que se ausentar por alguns dias, por conta de uma conferência sobre tecnologia no Recife, foi com Davi e Megan que eles deixaram a sapeca Emília.

Inocentemente, o nerd e a bad girl achavam que iam tirar de letra tomar conta da pequena e encantadora pestinha. Depressa chegaram à conclusão que estavam redondamente enganados.

Na casa de Megan, apesar de tentarem fazer de várias maneiras adormecer a garotinha no sofá do escritório, a pequena parecia uma bateria sem jeito de descarregar, pelo que, exaustos, Davi e Megan não tiveram outro remédio que não fosse levá-la para a cama deles e contar histórias de contos de fadas até a pequena doll adormecer, o que levou horas.

Se Davi achava que teria algumas horas de sossego, achou errado. Por um daqueles fenômenos que ninguém entende, sempre que a pequena Emília se mexia na cama (e ela não se mexia tão pouco assim), o nerd acabava sendo agredido, ainda que Megan escapasse incólume. Depois de Emília lhe espetar um dedo no olho, já depois de lhe ter dado involuntariamente um murro na garganta, o nerd equacionou passar o resto da noite no sofá, mas a imagem de Megan dormindo abraçada a Emília era tão bonita que ele se deixou ficar. Ele foi acordado quando passava pelas brasas, ao ouvir um barulho na cozinha de algo a cair e Megan resmungar de olhos fechados:

– Davi…you go. Deve ser Linus de novo.

Os dias seguintes se passaram de uma forma semelhante, de tal forma que o nerd e a americana já pareciam farrapos humanos, ainda que se estivessem a divertir muito.

Uma tarde, aproveitando que tinham conseguido com que Emília fizesse a sesta no quarto deles, o casal se deixou desabar em conjunto no sofá da sala, quase já pegando no sono.

– Sabe que eu acho que a minha mãe fez de propósito para deixar a Emília com a gente. Ela deve pensar que assim ela não é avó tão cedo.- tinha dito Davi, com a fala arrastada, passando os seu braços protectores em volta da sua bad girl.

Great. – tinha comentado Megan de olhos fechados, abraçada a Davi, já meio a dormir.- A sua mom descobriu o melhor anticoncepcional de todos os tempos.

A festa junina da Gambiarra já estava quase no fim, quando Davi não aguentou mais para raptar a sua bad girl. Dançando perto da fogueira, ele desceu a mão da cintura dela, apertando travessamente o traseiro da americana, ao mesmo tempo que arrastava uma boca nada bem comportada pelo pescoço dela até chegar ao seu ouvido:

– A festa continua no seu quarto?- pediu ele.

Yes, please. – respondeu ela, acenando um rápido adeus para os presentes, enquanto levava rapidamente Davi pela mão dali para fora.

Sentada no colo do seu peguete ruivo, Luene assobiou comentando:

– Mas esses dois, viu...

–…..só não são piores que a gente, não é cachorra?- completou Vander a abraçando ainda mais, usando o epiteto afectuosamente.

– É, cachorro. – assentiu a funkeira, dando um beijo caprichado nele.

Com uma cara preocupada, Danilo veio ter com eles com o celular na mão.

– Que é que foi, cara?- perguntou Vander, assustado com a expressão do Marra.

– O meu tio…o Jonas…..ele teve um acidente grave em São Francisco e estão levando ele para o hospital. Como é que eu vou contar isso para a Megan e para o Davi?

São Francisco, 2014

Imobilizado em cima de uma maca, Jonas só via o teto a se deslocar a grande velocidade e ouvia o barulho das rodas da maca que se arrastavam pelo corredor do hospital. Ele ainda estava a tentar perceber como é que tinha sido possível ele perder o controlo do carro, quando entrou na sala de emergência e a equipa médica o começou a assistir.

Sentindo os olhos progressivamente pesados, ainda compreendeu quando uma enfermeira lhe perguntou se ele queria avisar algum familiar que estava ali e a mão dele se arrastou até ao bolso do casaco que tinham colocado do lado dele. Ele queria tirar do bolso a fotografia dos filhos, mas o corpo já não lhe obedecia.

Ele só pensava que aquela situação não era possível. Não agora. Não sem antes ter oportunidade de fazer as pazes com os filhos e lhes dizer o quanto os amava. Se ele pudesse voltar atrás no tempo talvez tivesse feito as coisas de uma forma muito diferente. Se ele tivesse uma segunda oportunidade, talvez….