Gambiarra, 2013

Sentados na beira do passeio, Davi e Linus viam os últimos moradores a recolherem às suas casas. Era quase meia noite e a rua estava praticamente deserta. O cachorro descansou a cabeça no colo do nerd que o afagou com carinho.

– Eu sei garoto. Eu também sinto muito a falta dela, mas a gente vai vê-la em breve.- tentou consolá-lo Davi.

No dia seguinte seria o décimo oitavo aniversário de Megan e, com ele, viria a sua alforria. Tinham sido pesados os últimos meses para os dois, tendo de usar subterfúgios de criminosos para se manterem em contato.

Tinham estado juntos uma única vez, na passagem de ano. Ainda que o divórcio do casal Marra não tivesse sido finalizado, haviam acordado na guarda conjunta de Megan, com fins de semana alternados.

Pamela se havia mostrado mais disposta a aceitar que a sua filha tinha a certeza da decisão que tinha tomado e consentiu em acobertar o encontro dos dois enamorados em Nova Iorque.

Enquanto as multidões se comprimiam em Times Square fazendo a contagem regressiva para o novo ano e os Parker viam a multidão ao longe, numa festa exclusiva numa penthouse ali perto; uns cômodos ao lado Davi tinha imprensado Megan contra uma parede num dos quartos vazios do apartamento.

God, como eu sinto a sua falta!- dizia ela enlaçando com as pernas a cintura dele, inclinando a cabeça para trás para ofertar o seu pescoço.

Mordiscando o queixo dela como só ele sabia fazer, Davi a segurou forte.

– Não mais do que eu.- respondeu ele, ofegante.

Quando estavam juntos, mais do que a união de dois corpos, existia a união de duas almas. Yin e yang, energia que fluía entre os dois, positivo e negativo que se encontravam num equilíbrio, criando algo em que o todo era muito maior do que a soma das partes.

Infelizmente, já se tinham passado quatro meses desde a última vez que se tinham sentido inteiros. Mensagens, emails e chamadas não podiam substituir beijos, abraços, pele se tocando e palavras que se diziam sem se dizer.

Com a cabeça noutro país, Davi foi arrancado dos seus pensamentos por Ernesto, que passava por ele em direção a casa.

– Então cara, ainda acordado? Amanhã é dia de trabalho! – disse ele animado a Davi.

Um dia, alguns meses antes, um Ernesto Avelar derrubado tinha batido na porta da PLUGAR à procura de emprego.

Sendo Ernesto demasiado crédulo e optimista, não se apercebeu a tempo quando o seu sócio Bóris resolveu dar um golpe na empresa dos dois.

O empresário foi pego de surpresa quando se deparou com um escritório vazio e com um ex-sócio que sumiu de um dia para o outro, levando consigo não só os sonhos de Ernesto, mas também as economias da sua família, que tinha resolvido apostar nele.

Arruinada financeiramente, a sua família tinha vendido a casa e se mudado para outra cidade. Arruinado moralmente, Ernesto estava comendo o pão que o diabo amassou.

Com uma mão à frente e outra atrás tinha passado por uma série de subempregos para conseguir pagar as contas do dia a dia, mas agora já nem isso estava conseguindo.

Um dia, pensando que já não tinha nada a perder de qualquer maneira, passando pela porta da PLUGAR ele resolveu entrar para perguntar se precisavam de alguém para trabalhar.

Foi recebido por Davi que imediatamente o reconheceu. Mesmo tendo o dinheiro contado para o funcionamento da ONG, Davi decidiu na hora contratá-lo como monitor. Afinal de contas se tratava do cara que, anos antes, havia ajudado a salvar Megan de uma situação hedionda. Só por isso ele já teria a gratidão eterna do nerd.

Contudo, nos meses seguintes Davi se foi surpreendendo cada vez mais com Ernesto. Não só era um cara muito bacana, como era muito esforçado no trabalho e tinha agarrado a oportunidade com unhas e dentes. Mais, tinha um grande talento em potência como vendedor, de tal maneira que o nerd não ficaria surpreendido se ele conseguisse vender gelo para esquimós.

A relação entre Davi e Ernesto se foi também estreitando no plano pessoal, se desenvolvendo numa grande amizade, quase um bromance, em que passaram a contar um com o outro para desabafar em momentos difíceis. Pensar que, ainda que numa situação nada agradável, tinha sido por causa de Megan que se tinham conhecido. Tudo na vida do nerd estava sempre ligado à sua bad girl, qual laço cósmico indissociável.

Davi e Ernesto ainda estiveram batendo um papo durante alguns minutos. Ernesto, agora já muito mais feliz com a vida em relação a meses antes, qual gato na sua segunda vida, se despediu do nerd e seguiu para o seu quarto alugado.

Davi se levantou para ir para casa, mas não havia maneira de Linus se levantar para ir com ele.

– Então garoto? De que é que você está à espera? – perguntava ele, tentando incentivar o cachorro a seguir para casa.

Linus ganiu resistindo aos incitamentos do dono, mas se levantou subitamente quando um táxi parou a poucos metros de distância.

O cachorro largou a correr se atirando sobre a ocupante do táxi, quando ela saiu dele. A loira respondeu ao carinho do animal enquanto o taxista tirava a mala do veículo.

Recuperando da surpresa, Davi foi ter com ela quando a viatura já se afastava.

– Megan…- disse ele sorrindo.

Enlaçando-a, foi com estranheza que ele reagiu quando ela rejeitou o beijo dele.

– Mas… mas o que é que… - titubeou ele.

Ela riu e pegou no pulso dele, olhando para o relógio:

– Six…five…four… three…two… one. Meia noite. Finalmente livre. Happy birthday to me.

– Feliz aniversário indeed. – respondeu ele, rodopiando com ela- Agora o meu beijo.- continuou ele, pousando Megan no chão e colocando as mãos na face dela, para ela não ter como fugir.

Grudados um no outro, ele já nem queria saber como é que ela tinha conseguido a saída precária da sua prisão. Pegou na mala dela e se dirigiram aos beijos para a garagem. Chegando na porta ele pegou nela ao colo, pedindo desculpas a Linus.

– Desculpa garoto, mas hoje você dorme cá fora. – disse ele enquanto fechava a porta no focinho do pobre animal.

– Davi!- protestou Megan, rindo nos braços dele.

– Amanhã eu compenso ele.- respondeu o nerd, depositando-a com carinho no sofá.

Devagar, saboreando o momento, foram tirando a roupa um do outro. Agora eram livres para serem um do outro sem que ninguém os pudesse separar. Ele a fez dele, ela o fez dela e, aproveitando meticulosamente a noite, repunham aquilo que o tempo não podia tirar.

Horas depois, Davi improvisava uma cama encostando o colchão no sofá.

– Não é o Ritz, mas…

– Eu não trocaria essa cama por nenhuma outra, my love. – completou ela, o puxando para se deitar com ela.

Davi se deitou e Megan colocou a cabeça no peito dele. Retomando o hábito, ele brincava com os cabelos dela, deixando que a mão de Megan percorresse incessantemente o caminho familiar entre o tórax e o abdômen dele.

– Não é que eu esteja me queixando, mas a gente não tinha combinado que você vinha hoje ao Brasil. – comentou ele, beijando o topo da cabeça dela.- Você quis me fazer uma surpresa?- perguntou ele sorrindo.

No.- respondeu ela de uma forma manhosa.- O mundo não gira à sua volta, Davi. Eu tinha outros assuntos para tratar. – continuou ela com um sorriso brincalhão.

Ele a fez levantar a cabeça, se sentando, perguntando sem compreender:

– É o quê, bad girl?

Ela se sentou também, pulando no colo dele para responder:

Well, eu ainda vou ter de voltar por uns dias para a Califórnia para a minha graduation, but..

But…- incentivou ele.

But como passei no vestibular para pedagogia right here no Rio, tinha de vir para tratar de tudo para a minha mudança.

Ele abriu um sorriso capaz de derreter um iceberg.

– Megan, a gente não tinha combinado como ia fazer, mas isso me faz tão feliz, tão feliz, meu amor. – disse ele, não parando de a beijar por todo o lado.

Ela também estava muito feliz. Não só ia ficar ao lado do homem que amava, como encontrava ali a oportunidade de começar de novo, não como a filha do Marra-Man e da princesa Shelda, mas como a sua própria pessoa. Megan Lily, meio maluquinha, meio sensível, totalmente apaixonada pela vida e pelas possibilidades que ela lhe oferecia.

– O que é que você quer fazer para festejar o seu aniversário? – perguntou ele, massageando as pernas dela.

Ela lhe votou um olhar sugestivo acompanhado por um sorriso sacana.

– Ah não, você está sempre pensando besteira.- riu-se ele colocando as mãos na cintura dela – Agora a sério, você merece fazer alguma coisa bem especial.

Don´t worry.- respondeu ela - Tomorrow chega um batalhão da Califónia: mom, grandpa, Dorothy e Brian. Amanhã jantamos em família na casa da sua mom e no sábado vamos dar uma festa para todo mundo.

Ele os virou na cama comentando divertido:

– A danadinha já tinha planejado tudo! Mais alguma surpresa, ou vai continuar a me tentar matar do coração?

Oh no baby, eu vou cuidar bem de você. – respondeu ela sorrindo.

– Não. Eu é que vou cuidar bem de você.- contrapôs ele, juntando as mãos dela no topo das suas cabeças.

Ela não resistiu a brincar com ele:

You better, baby. Não se esqueça que grandpa é um dos melhores pistoleiros que o oeste americano já viu.

Na manhã seguinte ela foi a primeira a acordar. Ela gostava de observar o rosto de Davi adormecido, relaxado, como um anjo só dela com o seu braço quente a rodear a cintura dela. Aliás todo ele era calor, um lar que a sustentava, um porto seguro durante tempestades.

Se encostando ainda mais a Davi, ela queria tentar da cabeça um fragmento de uma discussão de dias antes.

Temendo o aproximar da maioridade de Megan, Jonas tinha tentado ter uma última conversa com ela.

Peanuts, pelo amor de Deus, pensa no que você vai fazer. O Davi é seu irmão…

– O Davi nunca foi meu irmão! Never! – cortou ela imediatamente – Look, eu compreendo que seja difícil para você, but dad, você já teve tempo suficiente para aceitar.

– Megan, eu nunca vou ter como aceitar uma situação dessas. Tenta entender.

I get it. I do. Mas se eu fiz um esforço para te perdoar pelo que você fez com a mom, porque é que você não tenta aceitar que eu amo o Davi?

Obstinado, Jonas não conseguiu evitar explodir:

– Porque vocês são os meus filhos! Vocês são tão parte de mim quanto os meus braços e as minhas pernas! Eu não posso aceitar o que vocês querem fazer.

Compreendendo que não haveria outra hipótese que não a cisão com o vínculo paterno, ela pediu num fio de voz:

Dad, please, não me obriga a escolher entre você e o Davi.

Naquele momento os dois sabiam que as suas decisões já haviam sido tomadas.

Agora, passeando de mão dada com Davi pela Gambiarra ela sabia que havia tomado a decisão correta. Rita e Dante a haviam recebido mais uma vez como uma filha, mas agora também como nora, felizes com a felicidade que ela trazia ao sobrinho. Algumas pessoas do bairro torceram o nariz ao verem o casal, mas eles compreenderam que seria uma questão de tempo até se habituarem.

Quando eles entraram na PLUGAR as crianças vieram correndo até ao casal, que passou a distribuir abraços por todos. Sorrindo, Megan se sentia em casa. Aliás, desde que estivesse com Davi ela sempre se sentia em casa.

Abraçada ao seu baby boy ela agradecia mentalmente a sorte que tinha em estar ali, quando os seus olhos bateram na figura de uma morena que não tinha parado de olhar para eles e Megan sentiu um arrepio a descer-lhe pela espinha. Confiando no seu sexto sentido, como mulher Parker que ela era, Megan intuía que nada de bom poderia vir daquela mulher de gosto duvidoso a julgar pela sua indumentária, que parecia querer aparentar o que não era.

Alheado como sempre, Davi não se tinha percebido dos pensamentos dela e, dando um beijo na sua bad girl a relembrou que tinham que se ir trocar para o jantar, não reparando que Manuela estava a reportar os movimentos deles pelo celular.

O referido jantar decorreu em casa de Clint e Sandra, que fizeram questão de acolher o jantar de aniversário da nora, juntando a estranha família que eles eram.

– Calma que eu vou ficar com ciúmes dessa atenção toda com a minha namorada.- tinha brincado Davi com a mãe e o padrasto, fingindo um amuo.

Os Parker e os Benson tinham chegado pontualmente e Pamela, após abraçar a sua baby, pediu para falar com Davi.

No escritório da casa, a princesa Shelda se sentou em frente a Davi, indo direta ao assunto.

My dear, você sabe que me custou também um pouco, mas eu compreendi you two e me coloquei do lado de vocês.

– Eu sei, Pamela. E agradeço muito a você por isso.

Pamela parecia algo inquieta, como se algo a preocupasse.

– É só que sweety, Megan entrou em Yale para estudar pedagogia e na Parsons para estudar fashion design e ela jogou tudo pela janela para vir para o Brasil, so… o meu coração de mãe fica com medo que Megan Lily esteja arriscando demais e possa ver o seu coraçãozinho partido. Megan tem essa casca dura, you know, mas ainda é a minha baby, uma menina frágil.

Davi tentou reassegurá-la da melhor forma que podia.

– Pamela, eu te garanto que a Megan é a pessoa mais importante da minha vida e eu seria incapaz de a magoar. E Pamela… eu não sou o meu pai.

A princesa Shelda se levantou e abraçou Davi, concedendo que devia confiar naquele garoto que ela havia visto crescer. Ele a abraçou de volta, sorrindo ao pensar que até na escolha de sogra ele tinha tido sorte.

Quando voltaram para a sala, uma comovida Pamela se abraçou a Megan.

Oh minha baby, vai ser tão difícil estar longe de você!

I know mom, mas quero que você me venha visitar muitas vezes.

Os olhos das duas se encheram de lágrimas e elas encostaram as testas.

I will, my dear.- respondeu Pamela, afagando a face da filha - Me desculpa se eu não fui muitas vezes uma mom presente.

Megan ficou comovida e respondeu sinceramente:

Oh mom… você foi a melhor mom que eu podia ter tido. I love you.

Agora elas já choravam e fungavam e os restantes presentes também já tinham os olhos marejados ao assistir à cena, principalmente Jack que lutava para não deixar cair as lágrimas. Que tantos ciscos tinham entrado naqueles olhos.

Dorothy resolveu quebrar o clima indo buscar duas garrafas, anunciando triunfalmente:

– Campanhe para quem tem sede!

Distribuíram as taças cheias e Davi aproveitou para fazer um pequeno discurso, com um braço em volta da cintura de Megan:

– Hoje estamos aqui para festejar a existência da pessoa mais extraordinária que eu conheço: a Megan. Todos os dias ela me ensina alguma coisa nova e todos os dias ela me inspira a querer ser melhor.

Megan o beijou, arrancando um coro de palmas de todos, e Davi acabou prosseguido:

– E eu queria também agradecer às mulheres que me criaram e me ensinaram a dar valor para a mulher da minha vida.- agora ele estava vermelho e encabulado com o que tinha saído da boca dele.- Por isso tia, mãe, Pamela, obrigado por tudo. – rematou ele, elevando a taça.

Tocando taça com taça, os presentes foram desejando votos de felicidade para o novo casal. O último foi Brian que, colocando as mãos sobre as suas cabeças e fechando os olhos os abençoou.

– Megan e Davi, o Mistério me diz que com esta união o Universo se encontra finalmente alinhado. E os desígnios do Mistério não devem ser contrariados.

São Francisco, 2013

Sabendo de antemão que a mansão estaria vazia, Jonas Marra aproveitou a ocasião para fazer uma incursão ao passado. Sozinho naquela imensa casa deslocava-se de cômodo em cômodo sem sequer ligar as luzes, guiando-se somente pelas luzes de presença.

A madrugada era o período do dia que sempre mais lhe custava a passar. Se durante o dia ele tinha o trabalho para ocupar a cabeça, na noite avançada estava apenas acompanhado pelos fantasmas dos seus demônios.

Entrando no quarto que tinha sido de Davi se recordava daquelas noites, muitos anos antes, em que ele chegava tarde a casa porque havia sido retido pelo trabalho e os filhos já estavam dormindo.

Nessas alturas ele tinha por hábito passar pelo quarto dos filhos, ainda que eles não o soubessem, para dar um beijo de boa noite a cada um.

Não era raro ele chegar no quarto de Davi e acabar por de ter de lhe tirar os óculos e um livro da mão, porque era invariavelmente assim que ele adormecia. Jonas corria os dedos pelos cabelos do filho e o cobria para aquele danado não passar frio durante a noite.

Seguindo para o quarto ao lado, ele se sentava na poltrona ao lado da cama só para ver Megan dormindo. A sua princesa Marra parecia sempre um anjo adormecido. Aí ele ria contendo o som, porque na realidade a personalidade da sua Peanuts não podia ser mais diferente.

Do pouco tempo que ele tinha com o filho, tanto tempo desperdiçado. Do muito tempo que ele teve com a filha, muito tempo a que ele não soube dar valor.

Agora, sentado na cama de Davi, apertando a almofada dele contra o peito, Jonas deixava cair as lágrimas silenciosas que tinha guardado durante muito tempo.

Naquele momento ele se lembrou de uma ocasião, quase uma década antes, em que Pamela tinha chegado a casa cansada de um dia intenso de gravações e os garotos tinham puxado por ela para jogar futebol com eles. Mesmo com saltos de quinze centímetros e confundindo as regras do soccer com as do futebol americano, a princesa Shelda tinha tentado jogar com a filha e com o enteado. Claro que tinha sido uma comédia ver Pamela tentar chutar sem sucesso uma bola, mas pelo menos ela tinha tentado. Porque é que ele não tinha feito o mesmo?