Não basta abrir a porta

20 anos depois - Julia


Por Julia

Ainda me surpreendo até hoje com o mecanismo próprio da vida. Pois por mais que tudo seja decorrente das nossas escolhas, penso que ao mesmo tempo não decidimos nada e que as coisas acabam acontecendo porque tem que acontecer.

Quando olho para trás e penso na minha infância tenho memórias lúdicas, com imagens das flores de Gramado, o cheiro da cozinha de minha mãe Manu ou o som da bolinha de tênis nos treinos que assistia da minha mãe Ana.

Hoje sou psicóloga formada, especialista em psicologia infantil e com propriedade intelectual tento analisar as teias familiares que me envolveram e ainda não consigo entender como as peças foram se encaixando nas vidas de meus pais ao ponto de resultar na minha própria vida.

Lembro quando eu era adolescente e conhecia pessoas novas o quanto odiava quando por alguma razão descobria-se que as minhas duas mães eram irmãs.

Claro que era super comum ser filha de pais separados, ter um bom relacionamento com a Madrasta ou o Padrasto, mas convenhamos que nunca foi meu caso, afinal a separação de meus pais era a única coisa normal no cenário...

Não tinha madrastas e sim mães, que eram irmãs e se amavam mais do que tudo e meu pai Lucio, apesar de eu não ter o mesmo elo que tinha com o pai Rodrigo, era meu pai e pronto, nem cogitava dizer que ele era apenas o marido de minha mãe biológica... Uma confusão sem fim.

Tenho vergonha de tantas vezes ter omitido em situações mais simples que minha mãe Manu não era minha mãe biológica... era tão mais fácil manter aquela ideia de família que foi a minha primeira noção... Era mais fácil ser a Julia filha da Manuela e do Rodrigo e irmã da Lara.

Mas como negar minha mãe Ana? Vejo hoje a absoluta impossibilidade de seguir adiante com essa farsa de família perfeita e sinto alívio de ter conseguido abraçar isso ainda na minha adolescência.

Quando finalmente entendi de verdade que não era importante me encaixar na ideia de família dos outros, quando já tinha amizades de verdade que me conheciam e sabiam como funcionava a minha dinâmica familiar, tudo ficou mais fácil e maravilhoso.

Adorava passear com meus dois irmãos que na verdade eram primos e embaralhar a cabeça do máximo de pessoas que eu podia. Achava hilário!

Só não curtia mesmo ter que levar algum namoradinho novo pra ser avaliado não só pelo meu pai explosivo e ciumento Rodrigo, mas também pro meu pai alto e intimidador Lúcio... Pelo menos minhas mães sempre me ajudaram nesse ponto.

Por falar em mães, como Deus foi generoso comigo, sério.... não poderia ter tido mais sorte.

Já sou uma mulher adulta, madura, absolutamente independente dos meus pais e mesmo assim quando vejo aquelas duas mulheres – normalmente juntas e de mãos dadas – me sinto uma menininha de 11 anos que só quer um colo compartilhado.

A minha mãe Ana é excepcional! Um verdadeiro milagre! Toda vez que eu escuto que ela passou anos em coma eu sinto vontade de duvidar apenas pelo absurdo da afirmação.

Como pode essa treinadora famosa, bem sucedida, cheia de discípulos no tênis, ter sido incapaz de segurar uma raquete por tantos anos? Como é possível que alguém tão realizada na sua própria família ter tido o inicio da vida adulta roubado e ainda por cima ter feito tanta bagunça quando acordou?

É estranho ouvir falar dessa época... claro que ninguém nunca me contou nada direito e eu acabei tendo que ouvir historias fragmentadas de uma confusão que rolou entre os meus pais quando a minha mãe Ana acordou.

Lembro quando encontrei o diário dela, uma continuação de um blog da mãe Manu, e me torturei lendo tudo com a sabedoria incontestável de uma menina de 16 anos que na verdade só pensa que conhece a vida.

Li a explicação que tanto ansiava quando menina do porque meus pais tinham se separado, relembrei o breve namoro entre mãe Ana e pai Rodrigo, entendi e sofri de novo com o tempo longe da minha mãe Manu, revivi a hepatite e o cuidado e carinho do meu pai Lucio e finalmente enxerguei todo o trabalho por trás das reconciliações que seguiram, principalmente entre minhas mães.

... como julguei meu pai Rodrigo nessa época... mal conseguia olhar na cara dele, até pedi pra passar as férias com a Bisa em Gramado... Justifiquei que a culpa era mais dele, já que a mãe Ana estava tão confusa do coma, afinal eu li tudo do ponto de vista dela...

Parece que foi ontem que a mãe Manu sacou tudo – sabe Deus como – e me sentou para uma conversa que levou dias para ser concluída, uma conversa na qual ela me viu adulta o suficiente para finalmente entender tudo que tinha realmente acontecido nesse período.

Ela me instou a conversar com meu pai Rodrigo e a verdade é que nunca cheguei a confronta-lo ... pra que eu ia mexer nessas feridas, quando desde que me lembrava nitidamente ele era louco pela mãe Manu?... Vivia surtando com os ciúmes besta dele e roubando beijos e sorrisos dela, me mostrando o tipo de amor que eu sempre quis ter....

Como eles são lindos juntos! Lembro que quando eu já era maior e achava tudo um saco eu sempre desviava minha atenção de qualquer coisa só para prestar atenção no jeito que meu pai olhava pra minha mãe... Acho que ela nem tem ideia da intensidade daqueles olhares roubados, que ele ficava embasbacado como sem acreditar que ela existia...

Também pudera... a minha mãe Manuela tem que ser estudada! Que mulher incrível!

Claro que ela não é perfeita, mas fica muito fácil esquecer disso... Ela mistura firmeza e doçura de um jeito que não consigo dosar... Fico imaginando o que é conhece-la hoje e depois saber de toda a sua trajetória na vida... Deve ser de cair o queixo..

Pensa que alguém te conta a historia de uma menina rejeitada dentro de casa, sem muitos amigos, calada, preterida pela mãe e apenas amiga de uma irmã cuja luz rivaliza o sol... Daí essa menina é expulsa de casa, tem que criar uma criança que não é dela, descobre que ama o mesmo cara que a irmã (que está em coma), casa com ele, vive um conto de fadas pra tudo virar de cabeça pra baixo quando eles – a irmã e o marido - resolvem tentar ser um casal de novo... Daí a pessoa tenta reconstruir a vida com outras pessoas, fazendo outras coisas, para no fim ter que enfrentar outra barrar e acabar reconstruindo as pontes queimadas.. Conseguindo resgatar a fé no casamento com o mesmo cara que sacaneou ela e no relacionamento com a irmã que tanto ama... ufffaaaa... coisa de doido!

Então.. essa mulher hoje é uma super chef de cozinha e empresaria, está linda, vive um casamento completamente apaixonado, tem duas filhas e uma irmã que idolatram ela, amigos para a vida toda e ainda por cima continua generosa, com um coração enorme e ao mesmo tempo firme, decidida, justa... Então... essa mulher é minha mãe Manuela e não tem ninguém no mundo que eu admire mais do que ela ou ainda que tenha uma historia mais surpreendente.

Até meu marido Antonio, quando sabe que eu não estou pensando direito – ainda que numa briga – sempre dá um jeito de sugerir que eu converse com minha mãe Manu.

A Lara, minha irmã de 21 anos vive dizendo que se somar eu e ela talvez a gente quase consiga uma Manuela.... A nossa mãe ri e fala que isso é bobagem e exagero, que não devíamos colocar ela em um pedestal... Eu particularmente concordo plenamente com a minha maninha e espero ser para o meu bebê que cresce dentro de mim, uma mãe a altura.