Emma

O olho estava perdido.

Pelo menos era isso que afirmava Brennan, enquanto cuidava do olho de Tinker. Jenna estava ao seu lado com uma bacia de água e eu observei ele uma vez mais mergulhar o pano, apertá-lo bem, para então passar cuidadosamente sobre o olho. Segundo meus pais os dois tinham feito aquele mesmo processo o dia todo, de limpar, esperar e limpar novamente.

Deixei-os, fechando a porta do meu quarto para que trabalhassem sem interrupções e sentei-me entre meus pais que me abraçaram quando quebrei em choro silencioso. Era culpa minha Tinker estar naquela situação. Era para o braseiro ter acertado em mim e suas brasas ainda quentes das cartas recém queimadas terem caído no meu olho.

A raiva dentro do meu peito crescia a cada momento, fazendo meu coração bater tão rápido e forte, dando a sensação de que meu sangue estava começando a ferver lentamente, como uma bacia cheia de água colocada no fogo e que aos poucos surgiam as bolhas para provar que estava realmente quente.

Raiva de mim, raiva de Milah.

Eu não deveria ter fugido tão fácil. Não deveria ter sugerido para Killian me tirar da casa. Não pensei que se eu não estivesse lá, Milah tentaria algo com outra pessoa até que por fim me atingisse. E a quenga dos infernos teve a sorte de que sua primeira vítima fora Tinker.

Uma batida tirou-me dos devaneios raivosos que envolviam minhas mãos e o pescoço de Milah, e me desvencilhei dos braços de meus pais para atendê-la. Do outro lado estava Killian, juntamente com o médico da cidade.

—Sr. Odom pediu para que eu acompanhasse o médico até aqui para que ele dê uma olhada em Tinker. – explicou com uma voz sem emoção. Seus olhos estavam caídos e carregavam um pedido mudo de desculpas.

Fora Jones que me explicara o acontecido assim que cheguei das compras, pelo fim da tarde. Encontrei Granny chorando copiosamente e Anny ao seu lado parecendo abalada demais, consolando-a. A mais velha mal conseguia falar, balbuciando o nome de Tink sem parar e Anny tentou, no entanto sua voz tremia tanto que acabou por desistir.

Então ele entrou. Uma expressão sóbria, comedida e seus olhos imploravam por desculpas, exatamente como agora e me contou. Hoje era dia de troca da roupa de cama e Milah sabia. Ela deixara o braseiro que havia acabado de usar, guardado dentro do closet, apenas esperando, tinha a consciência que assim que saísse do quarto alguém já entraria para arrumá-lo, sendo assim as brasas ainda estariam quentes. Os lençóis ficam em uma prateleira alta e Tink não o percebeu posicionado de modo estratégico e puxou os panos...

Foi nesse instante que seu grito cortou o ar, Killian dissera.

Eu era capaz de ver a cena. Tinker deveria ter ficado nas pontas dos pés para conseguir pegar e teria erguido seu rosto tentando enxergar o jogo de lençóis. Sua mão agarrou a ponta de um deles e ela puxara... Milah sabia que o rosto estaria exposto, que quando puxasse as brasas cairiam e atingiria um dos olhos.

Dei um passo para o lado, deixando que os dois homens entrassem e os guiei até meu quarto, onde era capaz de ouvir o choramingo agoniado de minha amiga.

—Já não era sem tempo! – Jenna exclamou irritada, olhando para o filho. – Da hora que aconteceu o acidente, apenas agora você aparece com o médico? Já anoiteceu, Killian! – bradou apontando para fora.

—O médico não estava na vila. – retrucou com a voz baixa. – Sr. Odom pedira que fosse buscá-lo imediatamente para ver a Srta. Bell...

—Eu estava atendendo um paciente em outra cidade. – explicou Dr. Whale, olhando para mim de rabo de olho. Eu o detestava, contudo ele era o único médico da região e infelizmente era ótimo no que fazia, apesar de ser um péssimo homem. – E como anda seu pai, Srta. Swan?

—Pergunte para ele assim que examinar ela. – retruquei com azedume.

Um pequeno sorriso zombeteiro surgiu em seus lábios.

—Uma pena, o que aconteceu com seus cabelos, eram tão bonitos. – comentou, tomando o lugar do pai de Killian e abrindo a maleta. – Não tenho visto-a, na taverna esses dias.

—Isso porque ela não trabalha mais lá. – Killian respondeu estoico.

Whale levantou as sobrancelhas e soltou um suspiro, focando sua atenção em Tinker.

—Vamos ver você. – murmurou, soltando a faixa que Brennan colocara para proteger o olho. – O que aconteceu?

—A louca da minha patroa, decidiu que... Seria uma boa ideia, guardar um braseiro dentro... Do closet... Eu não consigo enxergar nada com o olho direito. – falou, ficando imóvel ao sentir a mão do médico em seu rosto.

Ele fez uma careta e tirou algo de sua maleta, erguendo o queixo de Tinker e Jenna aproximou a lamparina para que ficasse mais claro para o médico.

—Então doutor? – eu indaguei, inclinando o corpo em sua direção. – Tem algum bálsamo ou unguento para passar? Um elixir, talvez?

O olho bom de Tinker o observava com curiosidade, o outro estava vermelho, e um líquido verde cremoso escapava dele e sua íris que costumava me causar confusão por nunca saber se eram castanhos ou verdes, mal se podia enxergar por conta da vermelhidão.

—Aconselho que continue limpando para não infeccionar mais. – falou, guardando suas coisas. – Vou sugerir um bálsamo com vaselina para passar na pálpebra que foi bem queimada.

—Eu não tenho como pag... – Tink começou.

—Não se preocupe. Mande a conta para mim. – falei dando um passo para frente.

—Nós pagamos. É o mínimo que podemos fazer. – Jenna apertou o ombro de Tinker.

—Venho vê-la amanhã. – Whale avisou, levantando-se. – Devo acertar com o senhor agora ou...? – inquiriu para Jones, que me lançou um olhar quando me sentei ao lado de Tinker, abraçando-a.

—Agora. Vamos tratar disso lá fora.

—Doutor. – Tinker chamou, apertando minha mão. – Quanto a minha visão?

Ele ponderou por um instante, brincando com a alça de sua maleta.

—Sua visão não foi afetada, seu olho está apenas irritado. Contudo precisamos cuidar da queimadura e infecção da pálpebra para que a situação não se agrave. – atalhou.

—Então eu vou voltar a enxergar...?

—Sim, Srta.Bell, você irá. – garantiu e não pude deixar de me sentir aliviada com sua fala, assim como minha amiga, que soltou um suspiro. – Com sua licença. – pediu, despedindo-se com um aceno de cabeça.

—Bem... Graças a Deus que eu estava errado. – o pai de Killian comentou. – Vamos deixá-las sozinhas.

—Muito obrigada, Sr. e Sra. Jones, por terem cuidado de mim. Irei retribuir assim que possível.

Jenna se adiantou e beijou a testa de Tink demoradamente antes de afagar seu rosto com carinho.

—Não precisa agradecer e nem retribuir, menina. Não foi nada o que fizemos. Agora descanse que já deve estar enfadada de nossa companhia. – brincou.

Observamos os dois saírem do quarto e eu abracei Tinker, querendo confortá-la da melhor forma possível. Seu corpo miudinho tremia em meus braços e soluços abafados saíam de sua boca.

—Eu irei cuidar de você, Tink. – prometi em um sussurro. – Você virá morar conosco. Não a deixarei sozinha... Eu peço que me perdoe.

—Você não... Não tem... Culpa de nada. Milah que é doida. – retrucou, afastando-se para ver meu rosto. –Eu nunca mais irei pisar naquela casa... É tão injusto... Ela não pagar... Por isso. Se fosse... Ao contrário, eu estaria presa agora... Sendo mandada para aquele lugar.

—Não se preocupe com nada disso agora... Você tem que sarar. – tranquilizei-a dando um beijo em sua bochecha. – Está com fome?

Tink negou e se deitou na cama, encolhendo-se. Entendi que ela estava cansada e peguei o cobertor, jogando em cima dela e deitei-me ao seu lado, fitando-a.

—Eu estou cheia de raiva dentro do meu corpo, Emma. – confessou. – Tanta raiva que está revirando minha barriga... Ela fez isso para atingir você. Tenho certeza.

—Sim, foi... Milah vem desconfiando de Killan e eu. Chegou a fazer ameaças, por isso Jones pediu para que o visconde trocasse minhas tarefas.

—Eu estou com raiva dela e não de você. Então não fique. – pediu. – Conheço a amiga que tenho para saber que está se culpando... Desde... Que eu cheguei aqui... Tudo o que fez foi cuidar de mim... Eu aprecio tanto isso, Emma... Nunca tive uma família. – falou e sequei as lágrimas que desceram por suas bochechas. – Ela vai pagar.

Aquiesci, apagando a lamparina e deixando o quarto escuro para que ela descansasse sossegada. Era por isso que Tink estava ansiando. Havia passado o dia sob o cuidado dos Jones e meus pais, tinha toda a certeza do mundo que eles não haviam deixado que repousasse o corpo e a mente do dia que tivera.

—Sim, Tink. Ela irá. – garanti, fazendo cafuné em seus cabelos. – Agora descanse.

[...]

Saí do quarto silenciosamente, fechando a porta para não ter perigo de acordar Tinker. Os Jones ainda estavam ali. Os três. Cada um segurando um prato de sopa que aparentava estar quente, levando em consideração as fumaças que dançavam saindo do liquido.

—Ela está dormindo. – informei para os cinco pares de olhos que me encaravam.

—Pobre menina... – minha mãe murmurou uma vez mais, seus olhos enchendo de lágrimas. – Ela tinha pedido para ser levada até o quartinho dela. Até parece que a deixaríamos sozinha nesse estado. Você converse com Tinker sobre vir morar conosco.

—Já falei que ela ficará conosco. – assegurei.

—Eu posso... – Killian começou com ansiedade, olhando para o meu pai.

—Não, riquinho. – David declarou determinado. – Não irei aceitar mais dinheiro seu. Esta casa é modesta, porém sempre cabe mais uma pessoa que precisar.

—Vocês podem ter mais conforto. Principalmente você, David, que está nesta situação. – Brennan se intrometeu. – Um chalé. Não muito luxuoso, não será caro.

—Não mesmo. – Jenna concordou com animação. – Um mais perto da vila...

—Nós agradecemos, mas não. – Branca respondeu com ar decidido. – Não é de nosso feitio aceitar as coisas sem poder pagar ou retribuir de alguma forma... Além do mais... Hoje o dia não está para discussão se devemos ou não ter uma nova casa. – atalhou e Jenna abriu a boca para retrucar. – Nós sabemos; que estão fazendo isso, porque no passado quase nos tornamos uma família, no entanto não foi isso que aconteceu e aceitar qualquer quantia a mais do que de fato precisávamos para sair do aperto que nos encontrávamos seria tirar proveito.

Um clima estranho envolveu a sala. Pesado, abafado, o que me deixou desconfortável. Killian pousou o prato de sopa vazio na mesa, terminando de mastigar lentamente o pedaço de pão que segurava. Jenna parecia triste e Brennan mantinha uma expressão neutra, por mais que seus ombros estivessem tensos. As feições de meu pai estavam presas em uma carranca, como sempre acontecia quando um assunto que o aborrecia era trazido à tona e minha mãe, bem, ela parecia perdida em pensamentos, encarando a porta de meu quarto.

—Emma poderia dar uma volta comigo agora? – Jones indagou de repente, olhando para os meus pais.

David e Branca trocaram um breve olhar e ela deu de ombros.

—Se Emma quiser ir... Mas não vão muito longe. – meu pai declarou seriamente.

Encontrei os olhos azuis de Killian e me desencostei da parede, pegando minha capa que tinha deixado pendurada em uma cadeira. Ele me ofereceu o braço e eu o recusei, abrindo a porta e trincando os dentes ao sentir o vento gélido cortar minha pele.

Caminhamos lado a lado, por longos minutos sem pronunciar nada, apenas ouvindo a respiração pesada um do outro. Diferente da outra noite, eu não estava achando o passeio noturno engraçado. Não estava curiosa para saber o que ele queria. Eu estava triste e com raiva de tudo o que tinha acontecido.

—O que quer? – perguntei quando paramos sob uma árvore pelada, sem uma única folha nos galhos.

—Ontem seu humor estava melhor.

—Ontem minha amiga não estava com um olho por pouco perdido. – rebati, cruzando os braços para tentar me aquecer. – Sei que a culpa não foi sua, mas veja só o que nossa amizade causou... Como eu vou ficar perto de você se sua noiva está determinada a machucar quem quer que seja para me atingir? Hoje ela se contentou em ficar dentro da casa e a maldita teve sorte de ter sido a Tink... O que Milah fará amanhã?

—Nada. Vou garantir que ela não faça nada. Ninguém mais irá se machucar.

—Você sempre faz promessas e garante coisas que não pode cumprir. – comentei. – Amanhã trabalharei na casa. Não posso deixar que sua noiva desconte em mais alguém algo que é para mim. – avisei, fungando alto ao sentir meu nariz começando a arder. – E se ela decidir alguma coisa contra meus pais?

—Milah não sairia de casa para machucar seus pais, Swan. – rebateu com deboche.

—Ela não, mas os lacaios da fazenda sim. Depois de hoje, irei considerar tudo. E fugir não é mais uma opção... Você deveria contar para Milah. – sugeri, enfiando o indicador em seu peito.

Killian escrutinou meu rosto com atenção, como se buscasse algo ou não reconhecesse a pessoa em sua frente.

—Contar o que?

—Que tivemos um caso quando adolescentes. Que foi um erro de dois jovens e que não significou nada. – proferi sentindo uma pontada aguda em meu coração ao colocar aquelas palavras para fora. – Acabou há muito tempo. Vai ser melhor.

Jones olhava fixamente para o meu rosto, o redor de seus olhos vermelhos e então negou com a cabeça veementemente.

—Melhor? Ela vai enlouquecer se souber que nós...

—Não. Não vai se você garantir que acabou. Killian, vamos ser honestos aqui: você não vai romper o noivado. Eu sei disso, você sabe. Diz que não a suporta, mas até agora não moveu um dedo para mudar a situação que se encontra. Você precisa do dinheiro e enquanto ele for sua escolha, sempre será infeliz. – concluí com pesar. Respirei fundo, fechando os olhos e dando as costas para ele. – Se você contar e, dizer que acabou; Milah ficará tranquila, saberá que eu não sou ameaça.

Sua mão segurou meu braço e ele me virou, fazendo que eu o encarasse. Então seus braços me envolveram em um abraço apertado, o rosto escondido na curva de meu pescoço, sua respiração aquecendo minha pele e meu corpo todo. Meu ouvido estava encostado em seu peito e eu conseguia ouvir as batidas violentas de seu coração.

—Você tem que se ajudar dessa vez, Killian. Eu preciso cuidar daqueles que eu amo... Tinker já passou por muito... Ela poderia muito bem ter passado sem isso que aconteceu hoje. – murmurei, retribuindo seu abraço.

—Verei o que eu faço... Só, por favor, não volte a me tratar com indiferença. – pediu, fitando meus olhos.

Forcei um sorriso e segurei seu rosto em minhas mãos, enfiando as pontas dos dedos em sua barba macia.

—Seremos amigos quando Milah não estiver por perto e for seguro… - assegurei. - Acho melhor voltarmos. Eu estou congelando. –esfreguei as mãos, começando a andar.

—Significou tudo. – Jones murmurou. Olhei para ele de modo instigador. – O que você se referiu como sendo um erro e que não significou nada. Significou tudo para mim.

—Para mim também. Tanto que eu o esperei por nove anos. Todavia, ninguém precisa ficar sabendo.

—E está errada. Já comecei a ver um jeito de sair desse contrato. – contou, acompanhando-me. – Entretanto não é tão fácil assim, não é algo que em um dia eu iria resolver.

Reprimi um suspiro que quis sair ao ouvir sua fala.

—Então até que resolva, evite se aproximar tanto. – pedi, abrindo a porta de casa.

[...]

Cheguei mais cedo do que de costume na residência da família Odom no dia seguinte. O clima na cozinha estava tenso e todos trabalhavam em silêncio, parecendo presos demais em seu próprio mundo. Aproximei-me de Granny que mexia uma panela sem vontade alguma, com uma cara péssima.

Depositei um beijo em sua bochecha e prendi direito seus cabelos que estavam escapando do coque. Ela olhou para mim e sorriu desanimada.

—Como ela está? O rapaz, o noivo daquela coisa, disse que Tinker está bem, mas não acreditei nele.

—Ela está bem sim. Dr. Whale disse que a visão não foi perdida, apenas a pálpebra que foi queimada e começou a infeccionar. Limpei antes de sair de casa e temos que manter o olho isolado, para que não fique exposto. – expliquei, tomando o seu lugar.

A velha respirou aliviada e se sentou, apertando o avental nas mãos.

—Posso ir visitá-la mais tarde?

—Claro que sim! Tink e meus pais ficarão felizes em receber sua visita... Diga-me... O que Milah costuma beber pela manhã? – indaguei tentando não parecer suspeita.

Granny crispou a testa de estranhamento a minha pergunta.

—Leite com açúcar mascavo... Por que quer saber?

—Por nada. – murmurei, voltando a mexer o conteúdo da panela com vontade. – Apenas ela usa o açúcar mascavo?

—Agora pela manhã sim... – mussitou. – Emma Swan o que está aprontando? – quis saber, enquanto se empertigava.

Tirei a panela do fogo e ergui os ombros, indo para a despensa. Levei a mão até o bolso da capa e apertei o vidrinho que Regina havia me dado dias antes para que eu usasse em Killian. Eu não sabia qual efeito aquele pozinho iria causar, todavia estava determinada a descobrir.

Milah iria aprender que aquele jogo era para dois a partir do momento que machucou Tinker de forma tão cruel. Eu sabia que dentro daquele vidrinho não continha veneno, Regina nunca me daria algo assim já que não era uma pessoa má, por isso não hesitei em virar todo o seu conteúdo no açucareiro colorido onde ficava guardado o açúcar mascavo. Olhei por cima do ombro para ver se ninguém me observava e com a colherinha remexi até que estivesse bem misturado e devolvi o potinho ao lugar, guardando o vidro e saindo de lá como quem não quer nada, voltando a ajudar a preparar o café da manhã.

O barulho agudo do sininho ecoou pela casa, anunciando que a família já estava acordada e pronta para o café. Livrei-me da capa, deixando-a em cima de uma cadeira e peguei a bandeja da mão de Anny.

—Mas...

—Vá com Marcos hoje. – falei, encarando seus olhos arregalados.

—Mas o visconde...

—Eu me entendo com o visconde, Anny. Vá. – indiquei a porta com o queixo, e a moça olhou para cima como se estivesse agradecida de não ter que ficar na casa e se virou, indo para fora.

Caminhei lentamente atrás dos outros dois criados que levavam a bandeja e assim que entrei, encontrei os olhos de Killian, que logo me censuraram.

—Emma querida! – Milah exclamou, quando coloquei uma xícara na sua frente, um sorriso surgindo em sua face. – Senti sua falta ontem.

Arqueei as sobrancelhas, esticando os lábios.

—Bom dia Srta. Odom. – atalhei, sem dar atenção para ela.

—Achei que havia mandado que trocasse as tarefas, Emma. – Sr. Odom comentou, parecendo aborrecido.

—Imaginei que depois do acidente de Tinker ontem, seria melhor eu ficar aqui para auxiliar nas tarefas domésticas. - expliquei, servido o leite para Milah. – Quantas colheres, senhorita?

—Duas. Não muito cheia. – respondeu alegre demais.

—Está vendo? É isso que dá dar liberdade demais para as criadas. Elas não o respeitam. – a viscondessa zombou para o marido, que nem se limitou a olhar para ela.

—Da próxima vez converse comigo sobre o que será melhor, entendido?

—Sim, senhor. – afirmei com um aceno de cabeça, afastando-me da mesa quando os pais de Killian entraram e olharam confusos para mim e então para Milah. – Bom dia Brennan e Jenna. – cumprimentei-os , vendo os ombros de Milah ficarem tensos e sua feição cínica se fechar de uma vez.

—Bom dia, Emma. – Jenna retorquiu, sentando-se ao lado do marido que me saudou com um aceno e um sorriso.

Fiquei no canto, observando o grupo comer em silêncio. Eles mal ousavam levantar os olhos dos pratos, como se fossem estranhos. Às vezes eu sentia o olhar de Killian perfurando-me a pele, contudo me mantive firme para não retribuir, fingindo estar alheia ao que estava acontecendo. Eu esperava impaciente pelo momento que algo se mostraria errado com Milah. Uma alergia, uma coceira insuportável... Algo e de preferência que acontecesse logo.

Porém senti-me desanimada, quando ela empurrou o prato para frente e nada havia acontecido. Muito pelo contrário. Um sorriso de júbilo continuava a enfeitar seu rosto, ao encarar os Jones, que a retribuíram sem jeito.

—Iremos almoçar fora. – Brennan anunciou, limpando a boca. – Um velho amigo nos convidou. Gostaria de ir, filho? – inquiriu para Killian que relanceou o olhar para mim e o homem o seguiu. – Claro que se a senhorita quiser pode ir junto. – ofereceu para Milah.

—Ah, eu irei adorar. Assim começamos a nos acostumar a ser uma família. – deu ênfase, virando o rosto em minha direção e precisei de todo meu autocontrole para não revirar os olhos. – Irei escolher um vestido bem bonito... Você me chama quando estiverem para sair, querido? – perguntou para Killian, a voz tão doce e macia que me questionei quem ela queria enganar.

—Claro que chamo... Querida. – atalhou com uma falsa animação.

Balancei a cabeça em uma negativa mínima, como se o estivesse repreendendo e a sombra de um sorriso surgiu no canto de seus lábios, quando ele voltou a se concentrar em seu prato.

O resultado que eu tanto esperara veio quase perto da hora do almoço, quando a viscondessa apareceu na cozinha, parecendo aborrecida.

—Será que algum de vocês; poderiam levar um penico extra para o quarto de minha filha? - murmurou. Sabíamos muito bem que era uma ordem disfarçada de pergunta, mas ainda assim, permanecemos parados, esperando por mais detalhes. – É uma emergência. – acrescentou dando as costas.

Prontifiquei-me a levar o “amigo” para Milah, querendo ver com meus olhos qual seria sua emergência e Granny acompanhou-me com o olhar desconfiado, enquanto eu lutava com o sorriso de contentamento que queria despontar em meus lábios.

Tentei controlar meus passos, assim como acalmar a euforia que aumentava a cada passada que dava em direção ao quarto de Milah. Bati na porta, tentando manter a expressão plácida e ouvi sua voz abafada pedindo que eu entrasse.

Escrutinei o ambiente com atenção, até que vi a porta do quarto de vestir fechada e aproximei-me com cautela.

—Srta. Odom. – chamei, inclinando-me para ficar mais perto.

A porta se abriu, e uma Milah muito pálida e com gotículas de suor enormes ornando sua testa, apareceu. Um odor forte e pútrido veio do lado de dentro, o que me fez prender a respiração. Ela me olhou com uma carranca e estendeu a mão, pedindo o penico.

—A senhorita está bem?

—Eu pareço estar bem, sua inútil? – inquiriu irritada.

—Quer que eu...? – indiquei o urinol cheio do lado de dentro e Milah fechou a porta, empinando o queixo.

—Não há necessidade. Pode deixar que eu mesma livro-me do conteúdo... Agora saía daqui! – ordenou, praticamente gritando e voltou a se trancar no quarto de vestir.

Reprimi a risada de deleite que subiu por minha garganta, mantendo-a presa em minha boca e gostando da forma que pulava ali dentro. Saí sentindo-me bem e, morrendo de vontade de contar para Tinker que Milah estava pagando pelo o que fizera.

—Perdeu a viagem. – comentei para Killian que vinha em minha direção. – Sua noiva não sairá do quarto tão cedo. – cantarolei.

Jones apertou os olhos.

—O que você aprontou?

Dei de ombros, andando de costas, afastando-me dele.

—Nada... Acredito que todo mal está sendo expurgado dela agora. – observei com divertimento e o deixei, voltando para a cozinha sem conseguir conter o sorriso vitorioso.

[...]

—Você fez o que?! – Regina exclamou incrédula, olhando-me de olhos arregalados.

Assim que saí do trabalho, senti necessidade de ir ver Regina e contar o que eu fizera antes de voltar para a casa. Informá-la que eu havia usado e agora sabia para o que servia o pozinho.

—Coloquei o conteúdo daquele potinho que me deu para usar com Killian no açúcar de Milah. – repeti, praticamente pulando sentada enquanto contava. – Regina aquilo não é um laxante e sim um expurgante!

—Na verdade, é um estimulante. – ela corrigiu. – Um estimulante tem reação mais rápida e forte do que o laxante. – explicou, balançando a cabeça de leve. – Meu Deus; não acredito que você teve coragem de fazer isso.

Fiquei séria, brincando com os joguinhos de montar que Roland havia deixado em cima da mesa.

—Ela machucou Tink. Eu não podia deixar barato... Minha amiga poderia ter perdido a visão, Regina.

—E se Milah tivesse atingido você, como planejava... Teria feito o que fez? – quis saber, servindo-me um pedaço de bolo.

Neguei com a cabeça. Minha mãe sempre me dissera que não deveríamos devolver na mesma moeda, que um dia tudo que fizemos voltava em nossa direção. Se fossemos bons, coisas boas viriam em retorno. E eu sempre segui a risca essa fala dela. Sempre. Cada vez que era passada para trás, evitava a todo custo soltar uma praga em direção à pessoa. Toda vez que um pensamento ruim e raivoso cruzava a minha mente, rapidamente eu me repreendia por ele.

No entanto, dona Branca teria que me perdoar dessa vez. Eu não havia feito aquilo por mim e sim por Tinker. Quando descobrira sobre Killian, minha amiga deu um jeito de se vingar dele no meu lugar, quando me recusei a fazer algo por não ser correto. Era hora de retribuir.

—Sabe, Regina; quando ela apronta essas coisas comigo, eu não me importo. Deixo passar, porque não vale à pena.

—Está errada, porque você nutre toda essa raiva dentro de você. Você não deixa passar como afirma, apenas guarda para não chatear a sua mãe.

Quebrei um pedaço de bolo com as pontas dos dedos e levei a boca.

—Eu não sou uma pessoa boa, Regina. Não como a minha mãe... Eu queria ser, mas não sou. Tento fazer o que é certo. Tento gostar de todo mundo, porém... É tão difícil. Sim, consigo perdoar fácil quando vejo que a pessoa está de fato arrependida, no entanto... – suspirei cansada, lembrando como todo meu corpo tremia tamanho ódio que sentia da Srta. Odom. – Meu sonho é enfiar a fuça de Milah na lareira. – contei. – Eu sinto tanta raiva dessa mulher que ferve meu sangue e inunda as minhas veias como aquele líquido que sai dos vulcões.

—Lava.

—Isso... Minha mãe não ficará feliz, mas dessa vez eu precisava fazer.

Regina se sentou ao meu lado e segurou minha mão, forçando-me a olhar para ela.

—E como esse coraçãozinho está se sentindo depois de ter feito isso? – quis saber austera.

Ponderei por uns instantes, antes de conseguir respondê-la.

—Na hora eu mal me aguentava de contentamento... Porém agora, sinto como se meu coração estivesse pesado de culpa, porque não sou acostumada a fazer isso... Posso perguntar algo? – instiguei, ajeitando-me na cadeira. – Como você sabe fazer essas coisas? – inquiri, mudando o foco de mim para ela.

—Minha mãe... Ela veio de uma família de boticários, então aprendeu tudo com eles. Como preparar elixires e tudo mais... Quando ela se casou com esse nobre espanhol, meu pai, era bem comum ela ficar entediada, então pegava minha irmã e eu, e saíamos à caça de plantas, sementes. Cora nos ensinou a limpar, ressecar e como armazenar essas coisas, além de nos mostrar como preparar... E não, não costumo usar desses artefatos para me vingar das pessoas. Apenas quando necessário e nunca vai além de uma baita dor de barriga. Não se sinta assim, Emma. Evacuar nunca fez mal a ninguém... E como diz minha mãe “faz bem para a pele, porque tira as impurezas do corpo”. – concluiu e eu ri daquilo.

—Vou contar para a minha mãe. Acho que irei me sentir melhor. – refleti para mim. – Acho melhor ir, só queria ver como estava e contar que usei seu presente.

—Apareça mais vezes. – pediu, levantando-se. – Por sinal, Robin e eu queremos saber se você e seus pais gostariam de passar o natal conosco. Será apenas nós três, já que minha mãe não conseguirá vir esse ano. Está ocupada com o casamento de Zelena.

—Conversarei com eles. Contudo é tão difícil fazer meu pai sair de casa. Mas obrigada pelo convite. – agradeci, seguindo-a para fora. Robin chegava no mesmo instante e um forte tremor percorreu seu corpo com a mudança de temperatura. – Olá. – cumprimentei-o animada. Vi seus olhos bondosos se fixarem em meu rosto.

—Emma! Como é bom vê-la. Estamos sentindo sua falta. – comentou, esfregando as mãos. – Principalmente ela. Regina se sente muito sozinha. O cabelo já está bem maior. – apontou para minha cabeça, onde os fios louros começavam a se alongar, fazendo com que fosse impossível arrumá-los.

—Acho que tenho sorte de ter cabelos que parecem determinados a crescerem logo. Juro que não estou passando esterco de cavalo. – garanti. Várias pessoas haviam indicado que usasse, afirmando que iria incentivar os fios a crescerem rápidos.

—Fico feliz em ouvir isso. – respondeu com a testa franzida. – Já está de saída?

—Sim, preciso ir para casa. Só passei para conversar um pouco com Regina, já que ela estava quase morrendo com a minha ausência. – expliquei com dramaticidade, fazendo a mulher ao meu lado revirar os olhos e sorrir.

Robin saiu da porta, deixando a passagem livre e assumiu o lugar ao lado da esposa.

—Ficamos sabendo o que aconteceu com sua amiga... Precisando de qualquer coisa... – ele deixou a frase morrer, indicando os dois.

—Eu sei. Muito obrigada e nos vemos. – despedi-me, escapando para fora e no mesmo instante cruzando os braços na frente do corpo com o frio.

Não via a hora que o verão voltasse. E pensar que na semana seguinte a neve começaria a cair incessantemente, desanimava-me.

Comecei a caminhar em direção de casa, respirando fundo e mexendo os dedos a cada instante para que não congelassem. Parei em frente a uma residência grande que ficava na entrada da vila, tentando escutar algum som, como fora outrora. Era comum se ouvir gritos ou risadas. Assim como tinha aqueles moradores que pareciam viver dentro de si mesmos, nunca sendo afetados por nada do mundo. A dona da casa não apreciava que ninguém se aproximasse e as pessoas que ali moravam, não gostavam muito de contato com outras.

Eu sentia falta de tê-los ali.

—Quanto tempo faz que fechou? – uma voz rouca e conhecida perguntou do meu lado. Sorri, apertando os lábios. – A instituição.

—Eu sei ao que está se referindo, Killian. – respondi com certa rispidez. – Têm uns quatro anos. Não muito tempo... É estranho, mas eu sinto falta deles, eu cresci vendo este lugar cheio e agora... Consegui fazer amizades com alguns. – contei, olhando para ele, logo atrás estava à carruagem o esperando. – Eles adoravam abraçar e receber carinho... A dona disse que... Conseguiram um lugar melhor para eles em Londres. Eu não acredito. – segredei.

—Estou cuidando de um passarinho que encontrei. – comentei com Killian que estava com os olhos fechados, enquanto eu brincava com os pelos de seu peito. – Minha mãe disse que ele foi expulso do ninho, que a mãezinha dele percebeu que ele não teria capacidade de se virar sozinho.

—Mas é verdade. Os animais sentem. – respondeu. – Se percebem que não tem como sobreviver, eles acabam com o sofrimento dos filhotes.

Fiquei em silêncio, pensando em suas palavras. Nos arredores, próximo a vila, existia uma casa cheia de pessoas que possuíam algum tipo de problema. As famílias os jogavam ali, onde ficavam longe da sociedade. Às vezes eu os via passeando, parecendo alheios a tudo, ou os ouvia, já que gritos eram comuns. Nenhuma daquelas; pessoas eram normais e sabia que estavam naquela casa, porque achavam que não podiam sobreviver no meio dos outros.

—Nós também fazemos isso. – observei. – Aquela residência próxima à vila... São pessoas que não conseguem sobreviver sozinhas, por isso são jogadas ali. A única diferença é que não acabamos com o sofrimento deles e sim com o nosso.

Killian abriu os olhos, fitando-me.

—E o que você faria? – quis saber.

—Cuidaria da mesma forma que estou fazendo com o passarinho. Todos merecem uma chance, Killian. Não é por que não é igual a todo mundo, que não merece viver.

Seus lábios se esticaram.

—Você tem uma visão muito romantizada, minha menina. Não é tão fácil assim cuidar daquilo que é diferente. Muitas pessoas não gostam ou sentem asco de algo que não é semelhante...

Empertiguei-me, encarando-o horrorizada.

— Você mataria ou se livraria de um filhote seu, se por acaso nascesse diferente do que as pessoas consideram normal? É disso que estou falando. Como é horrível determinar que alguém merece morrer, porque não tem o padrão que uma pessoa decidiu que seria o normal para outra... Ou de um passarinho.

Jones se sentou e afastou meu cabelo, depositando um beijo no meu ombro e pousando o queixo ali.

—Eu nunca faria isso. – respondeu, distribuindo beijinhos pelo meu pescoço. – Você tem razão. Ninguém pode decidir algo assim. Toda vida tem valor, até aquela que é diferente.

—Em Londres existem esses hospitais que estão procurando uma cura. – atalhou, chamando minha atenção para si.

Olhei-o de modo cético.

—Aquelas pessoas não precisavam de cura, Killian. Elas nasceram daquele jeito. O que precisavam era de alguém paciente o suficiente para cuidar delas. – retruquei.

Ele murmurou um “talvez” com um dar de ombros e então indicou a carruagem.

-Milah não pode vir... Está com um desarranjo. – falou sorrindo discretamente. – Posso deixá-la em sua casa.

-Até que enfim está agindo como um cavalheiro. – brinquei, aceitando a carona. Ele abriu a porta e encontrei seus pais lá dentro, encolhidos. Jones me ofereceu sua mão para subir e eu a segurei, encostando-me ao máximo contra a parede do veiculo. – Olá novamente. Como foi o dia?

-Agradável. – Jenna falou sorrindo para mim. – O seu?

-Bom. Milah não saiu do quarto pelo resto do dia e levando em consideração que ninguém lá de casa apareceu, significa que Tinker está bem, então tudo ótimo.

-Sua amiga irá ficar bem. – Brennan garantiu, seus olhos fixos na mão do filho e eu segui seu olhar com confusão. A mão de Killian estava próxima a minha, como se considerasse segurá-la. Apertei-as no colo, tirando-a de perto dele e comecei a tagarelar sobre nada importante, como se ainda fosse à garota de quinze anos que ia visitá-los, até finalmente chegarmos a minha casa. Convidei-os para entrar e me senti aliviada quando a resposta foi negativa.

Eu queria sossego pelo resto da noite.

E foi o que eu tive. Contei para Tinker o que eu fizera, e ela explodiu em uma gargalhada tão gostosa e divertida, que por um momento deixei de me sentir mal e apenas ri com ela. Não tive coragem de contar para Branca, com medo da decepção que surgiria em seus olhos, mas deixei marcado em minha mente como algo que eu deveria fazer e logo.

Naquela noite, ainda me sentindo incomodada por esconder o que fizera de minha mãe, embrenhei-me em sua cama, no meio deles, dando um sorriso sem graça e pedindo desculpas por agir como uma criança. Os dois riram e recebi um beijo demorado na bochecha de meu pai, seguido de cosquinhas, como ele costumava fazer e eu o abracei, aconchegando-me em seu peito protetor, sentindo seu cheiro de herói e quase que instantaneamente meus olhos começaram a pesar ao sentir as pontas dos dedos de minha mãe, fazendo-me cafuné.

[...]

Como eu previra; na semana de natal a neve chegou para ficar. O trajeto para a casa da família Odom era uma verdadeira tortura de se fazer, com neve entrando por toda parte e minhas roupas ficando molhadas. Sem falar que o clima na residência estava estranho e eu começava a me sentir assustada com a falta de melhora de Milah. No dia seguinte, eu havia jogado todo o açúcar fora, entretanto, por algum motivo sua barriga não voltava ao normal. Ela estava pálida e parecia cansada, sem falar da fraqueza que aparentava. Insistia em descer para tomar café com a família, porém se contentava em aparecer usando um robe por cima da camisola.

Nenhum dos pais dela pareceu perceber o seu estado, apenas os Jones, e encontrei Jenna, cuidando de Milah de bom grado, sem caretas ou palavras ásperas como de costume.

Tentava estar sempre por perto para tentar captar alguma melhora. Tinha receio de algum modo, eu causar a morte dela... Apesar de odiá-la com todas as minhas forças, eu não chegaria tão longe ao ponto de matá-la.

Em compensação Tinker já estava melhor. Seu olho aparentava quase estar normal, se não fosse à falta dos cílios. Ela ainda mantinha-o tampado para evitar que muita luz o atingisse, segundo o médico isso poderia afetar a visão, já que a proteção dele estava fraca. Graham havia ido visitar-nos umas duas vezes, sendo todo atencioso com minha amiga e sempre insistindo para que prestássemos uma queixa contra Milah. Tinker se limitava a negar, afirmando que ela já havia recebido a lição dela.

Naquela tarde, estava limpando o quarto dos pais de Killian, enquanto observava os flocos caindo e se acumulando no peitoril da janela; quando os gritos apavorados de Milah cortaram a quietude da casa.

No mesmo instante corri para o corredor, olhando assustada para ela, que estava com uma expressão apavorada, segurando com força a maçaneta da porta, como se temesse abri-la.

—Srta. Odom? – chamei com incerteza, dando um passo mais perto. Ela abriu seus olhos e me fitou. – Qual o problema?

—Nunca fiquei tão contente em vê-la, sua inútil. – comentou com a voz falha, afastando-se da porta. – Tem um rato no meu quarto. – informou e lágrimas gordas desceram pelo seu rosto. – Tem um maldito rato aqui dentro.

—Um rato? Tem certeza?

—Claro que eu tenho certeza! – berrou. – Acha que não sei reconhecer uma praga da sua laia? – instigou com cinismo e eu revirei os olhos.

—Pobre rato que teve o azar de entrar no seu quarto. Você deve tê-lo assustado mais do que ele a assustou... – balancei a cabeça tristemente, falando comigo mesma.

—O que aconteceu? – Killian surgiu com afobação da escada e estudou Milah que cruzou os braços com força na frente do peito.

—Tem um rato no quarto dela. Eu irei tirá-lo. – avisei.

—É para matá-lo. – pediu.

Parei, arregalando os olhos de pavor ao ouvir suas palavras.

—Matá-lo? Mas o pobrezinho deve estar atrodoado com o frio... Se eu soltá-lo lá fora, não será preciso...

—Atordoado. – Jones corrigiu baixinho. – Emma está certa. O frio o matará se jogá-lo lá fora.

—Mas eu quero que ela o mate... Não ficou claro? Ande. Pegue essa vassoura que está segurando e bata no bicho. – indicou o quarto com seu ar mandão. Pressionei os lábios, desejando poder dizer que ela não estava em posições de ordenar nada. Não quando tudo que ela vestia nos últimos dias era a mesma camisola.

Fechei a cara e passei por eles, entrando no quarto, ignorando a forma que meu coração batia tão forte, não querendo fazer aquilo. Não querendo ter que matar o bichinho e ver seus olhinhos me acusando.

—Meu Deus! – exclamei. – Acho que ele já está morto, Srta. Odom... Jesus que carniça. – reclamei alto de propósito para irritá-la.

—Isso não é o rato. – sussurrou em minha direção, como se Killian não fosse escutá-la.

—O que aconteceu, minha criança? – Killian indagou parecendo preocupado. – Está tão quieta e com uma carinha tristonha... Não parece você.

Deitei-me, olhando o céu negro com os pontos brilhantes e contrai os lábios para não chorar ao me lembrar da tarde horrível que tivera.

—Apareceu um rato hoje em casa. – comecei, não querendo olhar para ele. Sabia que iria rir, do mesmo modo que meu pai fizera quando chegara e me encontrara aos prantos. – Eu tentei tirá-lo, mas ele era muito rápido e quando eu o peguei, ele me mordeu. – funguei, passando o polegar na mordida. – Eu tive que matá-lo, porque eu o encontrei no armário que guardamos comida e...

—Você está triste assim por que teve que matar um rato? – inquiriu com descrença. – Emma, isso não é nada.

—Geralmente meu pai que mata... Contudo hoje eu estava sozinha e... Foi tão horrível. Ele gritava de medo. Aquele barulhinho guinchado de desespero... Então ele fez questão de olhar para mim. – falei e Killian soltou uma gargalhada. –Eu estou falando sério! O rato virou a cabecinha para o meu lado, aqueles olhinhos negros me fitavam e estavam assustados... Porém eu continuei o pressionando contra a parede com a vassoura, até que ele ficou todo molenga e vi seus olhos ficarem opacos. Eu vi a vida saindo dele, Killy e eu me senti um monstro. – esfreguei as mãos em meus olhos para secar as lágrimas. – Sei que está achando que sou uma tonta, mas era um ser com um coraçãozinho batendo ali dentro. E se ele tinha mãe? E se ela decidir se vingar de mim? Aposto que ele estava gritando por ajuda... Nunca mais quero ter que matar um rato na vida. – grunhi tampando o rosto de vergonha e me odiando por ter contado aquilo para ele. Killian devia estar achando que eu era de fato uma criança, com todo o meu ataque.

Senti suas mãos segurando as minhas e ele as tirou de meu rosto, fitando-me com um sorriso leve nos lábios, os olhos fitando-me com a ternura e amor de sempre, que eu tanto gostava de encontrar nas orbes azuis.

—Você nunca mais precisará matar um rato na vida... Pelo menos não quando eu estiver por perto.

—Promete? – perguntei em um fiapo de voz, afagando seu queixo.

—Prometo; minha menina.

Respirei fundo criando coragem e ouvi a porta fechar de leve as minhas costas, Milah provavelmente a teria encostado. Senti os pelos se eriçarem e agucei os ouvidos. As cortinas estavam abertas, o que deixava o quarto iluminado de um modo opaco. Olhei ao redor atentamente, quando vi um vulto correndo para o closet.

—Ah merda, merda, merda! – praguejei, seguindo para lá e ouvindo o chiado agudo que fazia meu estômago revirar de pavor.

E ali estava. O animalzinho de olhinhos brilhantes e pelo negro me fitando, parecendo tão apavorado quanto eu.

—Por que você tinha que aparecer aqui? – inquiri ao fechar os olhos, apertando o cabo da vassoura em minhas mãos e prendendo o ar.

Ergui os braços acima da cabeça e entreabri uma fresta do olho, para me certificar que o rato ainda estava ali e ao encontrá-lo, observando-me cerrei os dentes e me preparei para descer a vassoura com tudo, quando a mão de Killian a segurou, tirando-a das minhas.

—Espere lá fora, por favor. – apontou para fora do closet.

—Mas Milah pediu para eu... – tentei argumentar, mesmo que estivesse aliviada que ele tomara partido da situação e entrara para matar o bicho.

—Eu prometi para você que nunca mais teria que matar um rato na vida enquanto eu estivesse por perto, não prometi? – questionou com a voz baixa, como se estivesse contando um segredo. – Estou cumprindo com a minha palavra.

—Obrigada, Killy. – agradeci com toda sinceridade, fugindo para fora do closet e ficando de costas. Apertei as mãos em minhas orelhas com força, não querendo ouvir os barulhos que o rato iria fazer antes de morrer.

Ouvi as pancadas e me encolhi, apertando os olhos bem forte até que o quarto caiu em um silêncio profundo. Girei lentamente, vendo Jones se agachar, tirar o lenço do bolso e enrolar o animal nele, não parecendo nem um pouco afetado de ter feito aquilo.

Se fosse eu estaria em lágrimas.

Ele estendeu o embrulho, soprando o ar para cima, tentando tirar um fio que caíra em sua testa.

—Falei para Milah que iria auxiliá-la encurralar o rato, não matá-lo para você... Por isso ela me deixou entrar sem um chilique. Acha que consegue se livrar do corpo?

Aquiesci, pegando o peso em uma das minhas mãos e a vassoura na outra.

—Muito, muito, muito obrigada. Fico lhe devendo essa.

Um sorriso malicioso surgiu e ele arqueou a sobrancelha, como se já tivesse algo em mente e tive a sensação que meu coração saiu do lugar, indo parar na barriga que estava se remexendo de forma esquisita.

—Pare de flertar comigo no quarto de sua noiva, pelo amor de tudo. – o repreendi.

—Estou apenas brincando. – garantiu. – Não está devendo nada. – acrescentou indo para a porta, contudo parou bruscamente ao ouvir relinchos de cavalos, vindo do lado de fora. Ele correu para a janela com agitação sua feição se iluminando com um reconhecimento ao encarar seja lá quem chegava.

Fui para o seu lado com curiosidade e encarei uma carruagem azul clara com detalhes em vermelho e as malas presas no teto. Possuía um brasão que eu não era capaz de enxergar de onde estava, mas sabia que era alguém da nobreza.

—Visitas?

Killian virou o rosto para mim, a alegria começava a tomar conta de cada pedacinho dele.

—Condessa de Berkshire. – respondeu como se isso devesse significar alguma coisa para mim. – Minha prima Belle. – acrescentou, voltando a olhar para baixo. Segui seu olhar a tempo de ver uma mulher pequena de cabelos castanhos claros, descer da carruagem e estudar a fachada da residência com atenção. – Você irá adorá-la, Emma. – disse, empertigando-se e correndo para a porta.

Dei de ombros, ainda sem entender toda a sua animação. Milah entrou no quarto, com uma expressão confusa no rosto e se aproximou da janela, observando a movimentação do lado de fora e então olhou para minha mão, onde eu segurava o rato morto e com um único maneio de cabeça, ordenou que eu saísse; sua feição grave ao voltar olhar pela janela.