***

Acordou com a cabeça apoiada no espaldar de uma poltrona. Não estava presa, nem amordaçada. Não parecia ser uma prisioneira. Havia uma dor lancinante cortando da têmpora até o braço direito; sua manga havia sido retirada e seu ombro enfaixado com gaze.

Pacífica gemeu com o desconforto assim que tentou se levantar. O urso de duas cabeças notou e se virou na direção dela (estava há alguns segundos curvado sobre uma pilha de mantimentos, vasculhando por algo).

— Está com fome? — disse uma das cabeças. Era a mesma voz feminina que ela tinha escutado antes de apagar.

— Só não vá esperando um menu completo. Só temos sopa e grãos — retrucou a voz masculina, vinda de outra cabeça do urso.

— Você fala então — disse Pacífica.

— Falamos — responderam.

— O que estão fazendo aqui? Pensei que todas as anomalias da cidade tivessem fugido.

— Fugido? — A cabeça-fêmea fez uma expressão de confusão para a outra.

A masculina deu um riso, ácido de escárnio. — Até parece!

— É isso que estão pensando que fizemos lá em cima? — perguntou a fêmea, usando a garra para abrir a lata.

— Não foi isso que fizeram? Vimos as criaturas se rebelando e drenando a magia da bolha de Gravity Falls. Quando a barreira foi desativada, todos fugiram. Gnomos foram vistos no estado vizinho!

— Eles não fizeram aquilo porque quiseram. Alguma coisa entrou na mente deles. Foram obrigados. — A fêmea virou o conteúdo da lata dentro de uma panela.

— Foi lavagem cerebral. — O macho apontou um dedo para a própria cabeça, encarando Pacífica.

Pacífica teve um arrepio gelado. — Bill Cipher.

O macho começou a gargalhar.

— Qual é a graça? — inquiriu ela.

— Eles acham que foi Bill Cipher — ria ele, cutucando sua irmã siamesa com empolgação. — Bill Cipher foi no máximo um peão na treta daquele cara.

— Do que estão falando? — Pacífica ajeitou a postura onde sentava, fazendo um esforço para se curvar mais perto deles.

— Não, querida — explicou a outra com mais carinho. — Estávamos com medo de Time Baby.

Pacífica teve um vislumbre de memória. Lembrou de tudo que tinha lido sobre ele nos materiais de Stanford.

— O Governador do Mindscape?! Mas o que ele queria aqui? O que ele ganharia sequestrando e possuindo as anomalias?

— Um exército. Para ir capturar ou se vingar de alguém.

Um grito de espanto queimou por dentro dos pulmões de Pacífica. Ela usou tudo em si mesma para conseguir sufocá-lo. “O incêndio na escola de Dipper e Mabel...” Lembrou-se do que uma das testemunhas tinha dito no noticiário.

— E por que não funcionou com vocês? Por que saíram ilesos dos outros?

— Tivemos sorte de encontrar esse bunker e nos escondermos a tempo. De alguma maneira, a hipnose de Time Baby não atingiu esse lugar.

— Deve ter sido uma das adaptações que o cientista que morava aqui fez. — O urso macho apontou para latas de comida enlatada. — Sorte nossa ele ter deixado mantimentos.

— Era do Stanford Pines. E ele não morava aqui.

— Conhecia?

— Ele costumava morar na Cabana do Mistério.

— Ah. Eu me lembro daquele lugar.

Depois de um instante, o urso voltou, bípede, carregando em cada mão uma tigela de mexido. Deixou uma no colo de Pacífica. A sopa ainda estava levemente a borbulhar, com o vapor subindo e o fundo do prato aquecendo suas coxas.

Pacífica torceu o nariz. Não tinha cheiro nenhum. Tinha cara de aguado e velho.

— Não tenho tempo para isso — disse ela, afastando o prato e se levantando com dificuldade. — Tem pessoas em perigo que precisam de mim.

— É melhor você descansar e comer um pouco. Vai ter que ficar aqui por um tempo — disse a fêmea, sentada em outra cadeira a poucos metros.

Pacífica parou.

— Como é?

— Você não deveria ter aberto a escotilha — reclamou o macho pela enésima vez.

— A tempestade ainda está horrível lá fora. Vai levar um bom tempo até que ela passe e a neve que está bloqueando as saídas derreta — explicou a outra.

— Um “bom tempo”? E isso é quanto? — Pacífica cruzou os braços.

— Por experiência? No mínimo uns cinco dias.

— Cinco dias? No mínimo?!

— Foi o que ela disse — respondeu o macho, de boca cheia. A fêmea lhe dava de comer, os dois dividiam a mesma colher e o mesmo prato.

— Eu não tenho uma semana pra desperdiçar. Não posso ficar parada aqui!

— A não ser que queira morrer numa avalanche, você não tem outra escolha, querida. Lamento muito — disse a fêmea, rosto piedoso.

— Meus amigos estão em perigo. Eles também foram possivelmente capturados por Time Baby. Eu preciso sair daqui e ir até o Mindscape.

O urso se levantou e caminhou até ela. Olho a olho, a fêmea respondeu:

— E como seus amigos ficariam se a heroína deles morresse numa nevasca?

Pacífica permaneceu um segundo a mais travada, encarando a criatura, com a mão na cintura e olhos semicerrados. É, ela não tinha resposta para aquilo.

— Descanse, senhorita.

Pacífica grunhiu de frustração e chutou a poltrona, a sopa espatifou no piso. Os ursos olharam para a tigela em cacos e de volta para Pacífica, fúria surgindo instantaneamente em ambos os rostos.

Sua...! — o macho rosnou, mordendo o lábio para evitar proferir o resto da ofensa.

Dando as costas para o anfitrião com asco, Pacífica marchou até o outro lado da sala. Começara a andar em círculos. “Isso é inadmissível!” Uma ansiedade crescia cada vez mais em seu peito, e uma náusea infernal passava a dominar suas entranhas. A dor no ombro esquerdo aumentava. Sentiu a pressão caindo, e a raiz do seu cabelo ficar fria com o suor. Segurou na borda de um painel para se manter de pé. Por fim, suspirou. Sabia bem o que era aquilo: ela precisava de um cigarro.

Tateou o próprio corpo, procurando pelos seus itens. Atrás dela, a besta ainda não desistira do desaforo. O urso vinha pra cima da garota, as cabeças latindo:

— Estamos falando com você! — Dessa vez foi a fêmea, pela primeira vez claramente furiosa.

De dentro da roupa, Pacífica encontrara apenas o isqueiro. Então relembrou-se com ira da cigarreira que tinha esquecido lá fora, trancada dentro do carro. “Isso não está acontecendo.” Do outro bolso, retirou o celular. Sem sinal. “Isso não está acontecendo.”

— Merda... — Colocou a mão na têmpora, dando o seu máximo para que o chilique não fosse elevado a décima potência.

— Ei! — A pata pesou em cima do seu ombro direito.

Com um tapa imediato, Pacífica afastou o braço de urso.

A criatura revidou, segurando o braço sadio de Northwest com força.

— O que você quer?! — rosnou Pacífica, subitamente selvagem.

O urso aproximou o focinho bem perto do nariz dela. Com ambos olhando bem fundo nos seus olhos, o macho disse com deboche: — Ajudá-la, gênia. Não percebeu isso ainda?

— Eu não preciso da sua ajuda, preciso de um milagre. E de um cigarro. — Enraivecida, Pacífica usou o salto que não tinha quebrado para esmagar o pé da besta. O urso arqueou pra trás, rugindo de dor e permitindo que Pacífica se desvencilhasse.

Fugindo pela porta lateral, Pacífica e o urso travaram uma corrida a caminho da escotilha. Quando ela estava a alguns passos da escada, a besta de um salto imperial, desmontando em cima da oponente e imobilizando-a. Rapidamente, Pacífica encheu um punhado de terra do chão imundo e atirou nos olhos da criatura, conseguindo se soltar mais uma vez assim que o oponente ficou desorientado. Mas, antes de conseguir alcançar o corrimão, as garras afiadas do animal se enroscaram em volta do se tornozelo, e Pacífica voltou ao chão com uma puxada.

Northwest cuspiu no olho do macho. O urso nem reagiu.

— Vai me matar, é? — provocou ela.

— Não. Mas você irá matar a nós dois se abrir essa escotilha agora! — avisou a fêmea pela última vez.

Os dois rolaram engalfinhados pelo chão, trocando socos, pontapés e mordidas violentas (mas não fatais), como duas crianças no jardim de infância que não se entendiam. Após o que pareceu ser dois minutos inteiros, eles se afastaram, pedindo trégua, ofegando alto enquanto descansavam escorados nas paredes.

O macho riu, massageando o antebraço onde Pacífica tinha dado uma mordida.

— Você tem coragem, garota, mas lhe falta discernimento. Sabe que se eu quisesse poderia ter te matado.

Pacífica limpou uma trilha de sangue do pescoço, que vinha do rasgo que tinha feito por acaso no lábio inferior.

— Pelo menos eu não fico parada ao invés de agir.

— E acha isso uma escolha inteligente?

Pacífica suspirou.

— Me desculpa. — Não lembrava a última vez que tinha dito aquilo na vida. Ainda mais sinceramente. — Você está errado sobre mim. Não quero ir pro Mindscape o quanto antes por ser corajosa, na verdade, vou por estar com medo. — Esfregou o braço direito, a abstinência chegava a lhe dar coceira. — Nunca senti tanto medo antes, mesmo sentindo que sempre fui uma covarde. Quando criança, humilhava colegas da escola por covardia de entender suas diferenças. Na minha vida inteira, nunca tive coragem de me impor contra os meus pais e a criação que me deram, que me ensinou a ser submissa às vontades deles. Nunca consegui sustentar algo contra o meu pai por muito tempo, nem mesmo me desculpei com os colegas que perturbei. Porque sou covarde até pra isso. Quero ir pro Mindscape porque uma garota que eu conhecia foi levada pra lá. Porque tenho medo de perdê-la... — inspirou — assim como eu tinha medo de me comprometer de verdade com ela. Assim como eu tinha medo de me assumir e assumir a relação que tivemos.

Houve um longo momento de silêncio em que o anfitrião não soube ao certo o que responder. Despreocupada, ainda imersa em pensamento, Pacífica prosseguiu, e a criatura escutou.

— Sabe, na verdade houve duas ocasiões em que eu realmente senti que tive coragem o suficiente: e, estranhamente, Dipper e Mabel estiveram no núcleo de ambas. A primeira foi quando minha família chamou Dipper pra banir o fantasma que amaldiçoou os Northwests. Nós ainda éramos crianças. — Sorriu. — Meus pais — o sorriso desapareceu — estavam dispostos a deixar todos os convidados morrerem só para não terem que abrir os portões da mansão para o público. E se não fosse pelo choque de realidade que Dipper me dera naquele dia eu provavelmente teria me submetido à vontade deles. Mas depois disso Dipper voltou pra California e nossa amizade ficou, bem, subdesenvolvida. E eu meio que voltei aos velhos hábitos, às conformações, ao silêncio, à obediência... — Distraída enquanto discorria, chutou os sapatos que calçava para longe dela, dando um suspiro de alívio assim que sentiu os pés relaxarem. — Já a outra vez foi quando comecei a me relacionar com Mabel, irmã dele. Eu a amava tanto que não via mais motivo para me esconder dos meus pais, para me limitar. Mas a minha covardia, claro, teve que entrar no caminho de novo, e a distância entre estados que tinha entre nós pareceu ficar maior.

— Essas eram as pessoas que você disse que foram levadas? — perguntou a cabeça masculina.

Pacífica assentiu. — E agora, pra ficar perfeito, a minha namorada de outro estado “decidiu mudar” pra outra dimensão — deu um riso triste. — De uma forma irônica, parece que eu falhei totalmente em cumprir o que aprendi com eles. Talvez tenha uma parte de mim que acredite que eu só poderia ter coragem estando com os dois. E acho que um pouco da minha teimosia seja vontade de provar pra mim que essa crença não passa de uma insegurança.

Ela voltou a olhar os anfitriões nos olhos. — Lamento por isso — apontou para os ferimentos que o urso massageava —, eu já estava estressada há um tempo, e não poder descontar a raiva no meu vício me desestabilizou. — Retirou o isqueiro do bolso e atirou-o com força. O isqueiro saiu quicando pelo corredor metálico, retinindo até sumir na escuridão.

— Não se preocupe, não vou pôr a gente em perigo. Não queria abrir a escotilha, queria uma desculpa pra brigar. — Cruzou os braços e soprou pra fora do seu rosto uma mecha loira que havia se desprendido.

Lentamente o urso se pôs de pé, abanou as mãos sobre a pelugem e aproximou-se de Pacífica.

— Tem algo que precisamos lhe mostrar. Pode ser de ajuda — disse a fêmea. Ela e o macho ambos estenderam uma pata para Northwest.

Rendida, Pacífica aceitou. O urso ajudou-a a se levantar, e guiou-a até um andar abaixo. Ao chegarem ao final de um saguão, uma porta de aço se abriu, dividindo-se ao meio, captando a presença deles.

Assim que pisaram para dentro uma fileira de luzes verdes se acendeu, ladeando-os. Pacífica prendeu a respiração. As três paredes estavam cobertas de armas, de diversos tipos e tamanhos; similares, porém extremamente diferentes das da Terra. Era um arsenal alienígena. A quarta parede tinha um espelho empoeirado enorme, uma arara com roupas fardadas, com ampulhetas verdes bordadas nas lapelas. Ela reconhecia aquele símbolo, vira nas anotações.

— Essa nave... veio do Mindscape?! — Pacífica falou tão baixo, tão surpresa, que o urso teve de se esforçar para ouvi-la.

— Parece que a usavam para algum fim militar, mas abandonaram a missão. Ou então a tripulação morreu no acidente, vai saber — disse ele.

— Vai precisar mais do que uma lata de laquê e um isqueiro se quiser sobreviver na dimensão do Time Baby — prosseguiu a fêmea.

— Isso será mesmo necessário?

— Acredite. Lá não é brincadeira. E não: só essas armas não serão necessárias.

Pacífica travou confusa e revolveu-se até o urso.

— O que quer dizer?

— Quer dizer que elas serão inúteis se você não souber usá-las. E mais ainda se você não souber lutar como a Guarda Temporal luta.

— E como eu aprenderia isso exatamente? — Inclinou a cabeça para o lado.

— Como nós, é claro — responderam em uníssono. Orgulhosos, empertigaram a coluna e estufaram o peito, ficando com quase o dobro da altura de Pacífica. — Afinal, somos da espécie de ursos lutadores.

Pacífica revirou os olhos mesmo que ainda animada com a oportunidade. — Que conveniente.

— Bem, você até agora não perguntou nada sobre quem somos, não é? — Simpática, a fêmea deu de ombro com o único ombro que tinha disponível do seu lado do corpo.

Pacífica teve um arrepio de constrangimento. — Realmente. — Ficou levemente cabisbaixa. — Me perdoem pela falta de consideração.

— Meu nome é Karl. — Meio a contragosto, o macho esticou sua pata tímida para a convidada.

— E o meu: Perséfone — disse a fêmea, com uma piscadela.

Pacífica deu um aperto de mão com Karl. — Prazer. Pacífica Northwest.

— Agora que nos conhecemos formalmente, posso pedir um favor, “Pacífica Northwerst”? — Karl perguntou, imitando o tom da outra.

— Salvaram a minha vida, claro que pode.

Num sorriso forçado, Karl completou:

— Volte já pra sala onde estávamos e limpe a bagunça que você deixou lá.

Humilhada demais para pensar numa resposta atrevida, Pacífica deixou o aposento sem dizer nada. Sozinha do lado de fora, ela voltou despretensiosa pelo mesmo caminho que havia sido traga. Sua caminhada foi interrompida assim que ela percebeu que as laterais do corredor eram espelhadas. Esfregou a ponta do cardigã sobre a parede empoeirada para que pudesse se enxergar melhor. Era a primeira vez que fazia isso em horas.

Ela tinha hematomas, arranhões e pequenos cortes no rosto. Sob o olho direito havia um borrão roxo que Pacífica inicialmente achara ter vindo de algum golpe, mas que depois percebeu ser sua maquiagem; a sombra púrpura, irreparável. A sua calça de inverno e a meia arrastão estavam em frangalhos, marcas de garras dilaceravam fiapos e rombos pelo denim; o top branco de renda chantily – que tinha custado uma fortuna – abrigava tantas marcas de umidade que agora devia valer menos que um pano de prato. O cabelo era indiscutível. Um brinco de argola se encontrava desaparecido.

Seu primeiro pensamento foi, “Como me permiti acabar assim?”.

O segundo foi, “Selvagem!”

E, depois de um sorriso involuntário, o terceiro:

“Gostei.”

***

— Desiste! — rugiu Pacífica entredentes, gotículas de cuspe sendo expelidas.

— N-Nunca... — Karl esganiu. Em volta do pescoço dele, Pacífica enroscava seu antebraço.

À resistência dele, Pacífica restringiu mais ainda sua chave de braço no urso.

— Admite... a derrota... Karl... — implorou Perséfone num rosnar engasgado, com lágrimas nos olhos, sua traqueia também sendo esmagada pela chave de perna da oponente.

Karl esganou por mais um segundo, lutando contra o próprio orgulho. Por fim, usou a mão que conseguia mexer sob o peso de Pacífica para anunciar a derrota, dando dois tapinhas no chão acolchoado. — Ok... ok.. — Pacífica manteve-o imobilizado mais um pouquinho. — Ok! Você... — seus olhos ficando vermelhos e esbugalhados — venceu!

Pacífica relaxou toda a musculatura do corpo, rolando para o lado e dando um suspiro. O urso saiu da sua armadilha e se sustentou de quatro; Persefone tossindo alto, Karl chiando de tão ofegante.

Northwest virou de lado, já indo recorrê-los: — Estão bem?? Oh céus, não passei do limite?! Achei que acabaria enforcando um de vocês!

— Não... — Com uma risada fraca, Perséfone abanou a mão pra ela como quem diz “não foi nada.” — Está... — arquejo — fazendo certo. É assim mesmo, não pega leve.

Karl se levantou pelo seu lado, massageando o próprio pescoço. — Quem diria que esse bracinho era tão forte. — Karl olhou de soslaio para o braço esquerdo da garota, que esteve enfaixado até o dia anterior.

— Ai, só admite vai. — Pacífica ajeitou o cabelo sobre o ombro – suas mechas loiras agora estavam devidamente penteadas, domadas num rabo de cavalo bem firme na base da cabeça. — Dois dias de repouso foram suficientes, e já estava me sentindo bem no terceiro. Foi você que não acreditou em mim — provocou, ficando sentada e fingindo conferir o estado das suas unhas para evitar contato visual.

Perséfone usou a pata para dar os seus dois tapinhas no ombro de Pacífica. Pacífica já estava a ficar acostumada com aquele gesto; afinal, Perséfone já vinha reproduzindo-o a quatro dias. Significava “parabéns.” — Não liga pra ele.

— Ah, não se preocupe. — Encarou o oponente, imitando o seu soslaio irônico. — Eu não ligo.

Karl não conseguiu ficar sério com essa. Deu uma gargalhada involuntária. — É. Tenho que admitir que, de tudo que ensinamos, imobilização é sua melhor performance.

— Ah, é? — Ágil feito gato, Pacífica puxou a espada de esgrima da aparadeira da sala de treinamento. Brandiu a lâmina para o urso, que conseguiu desviar por pouco. — Achei que era combate.

— Danadinha! — ofendeu-se Perséfone. — Atacando o oponente desarmado.

— Onde aprendeu a ser baixa assim? — alfinetou Karl com um sorriso ácido, presas à mostra.

“Dos milhares de barracos que me meti desde o Ensino Fundamental,” embora a resposta estivesse na ponta da língua, Pacífica não tinha a coragem de dizê-la.

— “O Mindscape não vai jogar limpo com você.” Não foi isso que me disseram? — Arqueou uma sobrancelha, desafiadora.

Perséfone sorriu e bateu palmas, instruindo as luzes automatizadas do ringue a se apagarem. — Ok, ok. Paramos por hoje. A mensagem é clara, você é uma boa aluna.

Pacífica fez uma reverência teatral. — Obrigada, querida.

Enquanto desciam de volta para os corredores, uma introspecção acometeu Pacífica. E, da distância do ringue ao corredor, algo repassou pela sua mente: “Já fazem quatro dias aqui...”

— Você acha que amanhã as condições estarão melhores? — perguntou ela, quase sem querer, a voz ínfima, pouco à vontade. Abraçou o próprio corpo. — Você sabe... para voltarmos à superfície.

— Tomara que sim. Você já se lembrou de checar a meteorologia hoje? — perguntou Perséfone.

“Foi a única coisa que fiz o dia inteiro”, pensou Pacífica. — Vou conferir agora — disse ela. — Até amanhã — prosseguiu assim que notou o urso já virando para dentro dos seus aposentos.

— Até! — responderam. Perséfone num chilro; Karl num grunhido rabugento.

Os sensores de presença captam a presença de Pacífica se aproximando, e as portas duplas se separam para recepcioná-la. Seu quarto improvisado era simples. Parecia ser a cabine de algum dos antigos tripulantes, nos quais Pacífica nunca conseguiu extrair nenhuma informação sobre. Havia duas camas e uma arara para vestimentas, repleta de trajes militares abandonados. Pacífica tinha se desfeito das roupas nas quais tinha vindo. Passara a usar os uniformes disponíveis na nave. Não era exatamente o seu estilo, mas ela não ligava muito. A roupa nova tinha bolsos de sobra pra guardar em segurança todos os seus pertences, armas principalmente.

Retirou o traje de combate e ficou apenas com a roupa de baixo (uma regata branca e um short preto). Quando voltou para o cabideiro, procurando por um casaco, encontrou o celular em um dos bolsos. O objeto que costumava ser tão comum lhe causou uma estranha surpresa inicial. Fazia quase uma semana que Pacífica não havia tocado naquilo. Também pudera, era inútil onde estava. Soterrado a metros na terra, o smartphone não tinha um pingo de recepção ou de internet.

Talvez fora um arreio de saudade que a fizera continuar deslizando o dedo sobre a tela. E fora uma curiosidade que a fez checar um dos aplicativos: o player de áudio. Na memória interna do aparelho ainda jaziam algumas músicas antigas, desatualizadas, que ela até mesmo se esquecera de ter baixado um dia. “Melhor do que nada”, pensou, extasiada com poder ter o “luxo” de ouvir música após 4 dias de silêncio absoluto naquela caverna de sombras.

Sem ter os fones, o celular ficou numa quina de cabeceira, com o autofalante virado pra cima, tocando Wolf Alice -You’re a Germ.

Ela sentou-se na cama, próxima um painel de controle que ficava na parede ao lado. Bateu uma palma e a tela se acendeu ao comando. — Mostrar meteorologia. — Como a inteligência artificial da nave entendia inglês ainda era um mistério para Pacífica, porque tudo que estava nos painéis e na tela estavam numa língua que ela nunca tinha visto parecido antes na vida. Parecia algo antigo, bruto, mas ao mesmo tempo sofisticado o bastante para ser minimalista: pequenos hieroglifos de triângulos, quadrados, círculos e traços em xis, alguns salpicados de acentos e pontuação gramatical, como um código. Já tinha tentado explorar o sistema, mas não tivera muitas descobertas que não fosse os míseros truques de comando vocal e palma nos quais se limitara.

— 4 GRAUS CELSIUS. RAJADAS DE NEVE — atendeu uma voz artificial, andrógena de tão neutra.

— Previsão geral para amanhã.

— 12 GRAUS CELSIUS. NUBLADO.

Um alívio. Era a temperatura mais alta que ela ouvira desde que descobrira o sistema na segunda noite ali.

— Altura da neve amanhã?

A máquina levou um tempo para calcular. De uma certa distância, Pacífica sentia a lataria estremecer de leve, como se as entranhas mecânicas se ajustassem.

— PREVISÃO DE REDUÇÃO DE 30 PARA 5 CENTÍMETROS.

“Bom o suficiente para eu voltar a dirigir.”

Da cabeceira, a banda Wolf Alice encerrava sua performance, e o player do celular já selecionava a próxima faixa no modo automático. De repente, Anya Marina passou a cantar Satellite Heart.

Imediatamente, um apito novo veio da tela. Uma mensagem codificada apareceu e o sistema fez um novo processamento em voz alta: — FAIXA Stellite Heart Anya Marina mp3 RECONHECIDA. BEM-VINDO DE VOLTA, Stanford. GOSTARIA DE ABRIR A PLAYLIST?

“Uepa.”

Pacífica se levantou num salto. Tão rápido que o sangue despencou da sua cabeça e ela teve que voltar a sentar com a vertigem. Haviam sido duas surpresas de uma vez: “Stanford” e “playlist.”

“A inteligência artificial acha que eu sou o Stanford?! Como? E “playlist”? Como ele foi colocar uma playlist aqui?”

Voltou a grudar os olhos na tela, esperando alguma resposta da nova caixa criptografada que tinha se maximizado. Do meio da tela azul, uma animação de loading familiar apareceu girando. Em seguida, um logo que Pacífica conhecia: “da Microsoft!” Era algo estranhamente humano instalado no meio de um mecanismo totalmente alienígena.

Então, após o branco momentâneo dos seus pensamentos, a eureca: “Era por isso que o sistema reconhecia inglês.” Ela colocou as duas mãos trêmulas em cada lado da tela. Diante dela, agora havia um desktop comum de Windows. Imediatamente, esfregou a ponta do indicador sobre o papel de parede e um cursor rudimentar surgiu, seguindo o seu toque.

Havia uma única pasta: “X”. Dentro, Pacífica se deparou com uma lista de novas pastas.

— O Stanford hackeou essa inteligência?! — Dizia, pasma, enquanto vasculhava. “PLANTAS”, “MANUAIS DO PORTAL”, “RECONSTRUÇÕES DIÁRIO 1”, “BACKUP DIÁRIO 3”. Meu deus. Era um baú do tesouro!

Entretanto, o ícone que mais tinha prendido ela era o com o título mais curioso. Não era uma pasta, pdf ou planilha do excel como os anteriores, e sim um arquivo .exe.

Projeto Satélite”, dizia o título.

No fundo do quarto, a letra da música continuava engrandecendo a epifania:

Sou um coração-satélite, perdido no escuro

Eu me afastei tanto

Você parava, eu começava

Mas continuarei leal a você

Ainda conseguindo te encontrar...

Pacífica clicou. O programa se iniciou.

Mas continuarei leal a você

Ainda conseguindo te encontrar...

Assim que compreendeu o que enxergava, Pacífica ficou de queixo caído.

*

A porta do quarto de Karl e Perséfone se escancarou. E Pacífica penetrou na escuridão sem cerimônia, aos gritos de animação:

— Stanford, seu gênio filha da mãe! — Repetira a frase que ouvira Stanley reproduzir diversas ao falar do gêmeo. E queria tanto que Stan estivesse ali para que ela contasse as novidades.

De um canto, o urso acordou com um susto e rolou para fora do colchão, ficando em posição de ataque, ambos sonolentos. — O quê?! Que foi?! — diziam, zonzos.

Pacífica o sacudiu, fazendo os dois despertarem por completo. Quando tinha a total atenção, anunciou: — O cientista que usava esse lugar.

— O que tem ele? — resmungou Karl.

— Ele ficou anos preso no Mindscape. E quando fui bisbilhotar no escritório dele procurando por pistas eu achei esse mapa rudimentar da dimensão. Parece que ele estudou e mapeou o local no tempo que esteve lá.

— E daí?

— Daí que acabei de descobrir que ele estava usando o satélite da nave para interceptar o sinal de rádio do Mindscape. Ele usou isso e as rotas de trajeto na memória da nave para fazer um GPS Multiversal!

— Não estou entendendo — disse Perséfone.

— Vem comigo.

Pacífica a pegou pela mão e arrastou os dois até o quarto ao lado, onde a tela holográfica ainda jazia aberta.

— Veja. — Pacífica apontou para uma reprodução holográfica 3D do planeta Terra.

— O que isso significa?

— Significa que agora eu tenho todas as latitudes e longitudes do Multiverso! E o melhor de tudo — apontou para um pontinho vermelho que piscava de um canto do globo. Ao interagir com a tela touch, Pacífica conseguiu aproximar o mapa ao extremo. O sinal vinha dos EUA, do estado do Oregon, da cidade de Gravity Falls. Aproximou mais ainda e estavam próximos dos Penhascos Flutuantes, a bolinha vermelha piscava sob a montanha. —: consegue localizar números celulares.

— Isso... somos nós?

Pacífica assentiu. — Se ativou quando eu liguei meu celular por perto.

— É o que estou pensando?

— Sim. Posso fazer a mesma coisa em outros universos e dimensões. — Pacífica virou-se para a tela de novo e bateu uma palma para ter a atenção da inteligência artificial. — Localizar Mindscape em Projeto Satélite.

Em alta velocidade, o holograma diminuiu de tamanho. A Terra e o Sistema Solar ficaram cada vez mais distantes. Por quase um minuto inteiro, o sistema atravessou camadas densas de estrelas; então, escuridão absoluta. Finalmente um novo e enxuto planeta apareceu no visor. #3012 – Sistema Unipartidário do Tempo Mindscape.

Com a voz emocionada, Pacífica gaguejou um novo comando:

— Localizar número 201 1 67355318. — Ela sabia aquele telefone de cor.

A tela ficou em loading por mais um tempo. Pacífica, Karl e Perséfone aguardaram, prendendo suas respirações em apreensão crescente.

Um novo pontinho vermelho começou a piscar no centro do mundo.

Pacífica derramou uma lágrima.

Naquele pequeno pin, do outro lado da galáxia, em um universo vizinho, estava a localização exata de Mabel Pines.

***

Na manhã seguinte, Karl e Perséfone ajudaram Pacífica a carregar alguns galões de combustível até o porta-malas do carro.

Do lado de fora, o Aston Martin residia congelado (literalmente) no mesmo lugar onde ela o deixara. Entretanto, a delicada camada de sol que cobria o campo ia de pouco a pouco aniquilando a neve e fazendo ressurgir no gramado retalhos de verde em meio à infindável colcha de branco. Havia parado de ventar; o céu estava nublado, mas não ao ponto de ser cinza, e sim um azul mais opaco; sendo impossível dizer o horário com mais precisão, o sol permanecia desaparecido, mas presente. E ela miraculosamente conseguia ouvir a melodia (única e tímida, mas vitoriosa) de um rouxinol na mata densa. Algumas das flores haviam desprendido do encanto da hibernação: aqui e acolá, viam-se os lampejos amarelos de uma ou outra margarida resistente, os últimos soldados de um acirrado campo de guerra.

— Isso é tudo? — perguntou Karl, despencando o segundo galão de combustível radioativo no porta-malas. O peso fez o carro sacudir e as molas dianteiras rangerem.

— Por ora será o suficiente — assegurou Pacífica.

Os dois se olharam em silêncio.

Perséfone levantou um braço e coçou a própria nuca. — Então acho que te devo um “boa sorte”.

— E eu, desculpas. Por ter tentado te queimar quando nos vimos, e outras coisas... impulsivas. E obrigada por me ensinar a ver isso.

Pacífica jurou ver no rosto bestial de Karl uma reação humana mesmo que por debaixo de todo o pelo: um enrubescer. Perséfone sorriu, amigável e confiante.

— Você consegue, Pacífica. Você tem espírito, afinal — disse ela.

— Desculpas também. Desculpa pela demora — sussurrou Karl, o olhar desviado para o chão. Expressões doloridas de constrangimento se acumulavam em seu rosto, como se o orgulho estivesse flagelando a língua dele a cada “desculpa” dito. — Deve ter sido um saco ficar cinco dias trancafiada com a gente.

Pacífica segurou um riso, por mais que este não fosse maldoso. Havia ficado animada em ver Karl tentando demonstrar um pouco de sinceridade, mas não deixaria que um riso dela fosse mal interpretado como deboche. Então, afagou o braço peludo do lado do macho.

— Claro que não foi problema. Na verdade, era disso que eu precisava. Antes desses últimos dias eu não fazia ideia do que eu deveria fazer assim que botasse os pés no Mindscape. — Pensou no celular em que estava no seu bolso, onde ela havia recentemente instalado o software beta de Stanford do Projeto Satélite. — Agora eu sei exatamente no que estou me metendo.

Estava prestes a continuar quando pausou, tomada pelo espetáculo que se abria diante dela. Por sobre o ombro de Karl, lá no sopé da colina, pelo caminho no qual Pacífica viera dirigindo, nuvens carregadas iam amenizando, ficando cada vez mais translúcidas, até se dissiparem e darem total licença para que o horizonte se despisse da cortina de névoa.

Acima de um rodapé de silhuetas de pinheiros, Pacífica admirou o sol pela primeira vez no que pareciam meses. Ela havia se esquecido o quanto algo tão rotineiro, que estivera presente com ela desde o seu primeiro dia de vida, poderia ser tão importante. “Só damos valor quando perdemos, não é?”, pensou em Mabel, perdida em algum lugar do Multiverso e, ao mesmo tempo, na palma da mão de Pacífica e em todas as promessas quebradas que fizera.

— Eu preciso ir. — Pacífica fechou o porta-malas e deu meia volta até chegar na porta do motorista.

Da janela, acenou para a dupla, que já voltava para o interior do seu refúgio-OVNI. Depois, vasculhou pelo painel e pelos bancos à procura da chave do carro. Abriu o porta luvas e uma cascata de papéis acumulados e outros objetos se derramou pelo lugar do passageiro. Pacífica seguiu com os ouvidos o tilintar das chaves, que foram para debaixo do assento. Tateou a mão por ali e, junto com a chave, encontrou uma nova coisa. Pacífica deu uma exclamação de surpresa assim que viu o que era.

A carteira de fumo.

Abriu o compartimento com o polegar e se deparou com dez cigarros em perfeito estado, organizados em fila.

Diferente do vislumbrar do sol que tivera há poucos instantes, ver aquilo não gerou efeito algum nela.

Então, pela mesma janela que abrira para se despedir, Pacífica atirou a cigarreira para longe.

Girando a chave na ignição, conduziu o veículo estrada abaixo.

*

Estacionou o carro a dez passos da entrada da Cabana do Mistério. Pelo caminho, o motor do Aston Martin veio dando um pipoco no qual ela nunca escutara antes. Lembranças da nevasca a circulavam: uma goteira vinda do capô; filetes d’água no exaustor. “Será que quebrou alguma coisa?” O carro da família, da década de 60, passou cinco dias abandonado no tempo. É claro que no mínimo uma coisa dali havia estragado.

Pacífica suspirou assim que freou o carro. Exausta, destravou o cinto e puxou a alça da porta para abri-la.

“Meus pais vão me matar.”

E, falando no diabo, ali estavam eles. Ambos invocados por um feitiço irônico e cruel. Sim. Seu pai e sua mãe. Preston e Priscilla Northwest saíam às pressas de dentro da Cabana, provavelmente assim que espreitaram o carro familiar se aproximando.

Ela piscou duas vezes seguidas. Aquilo era mesmo real? E, na medida em que as fisionomias deles ficavam mais próximas, e mais detalhadas, e mais enfezadas, ficou claro de que era.

Imediatamente, ela travou no meio da ação de sair. O seu estômago esfriou com um arrepio de náusea. O frio a fez virar uma estátua de gelo, intacta com uma perna pra fora e outra pra dentro do carro.

— Eu não acredito! Eu não acredito! — Priscilla havia dado um gaguejo de raiva, mas nos ouvidos de Pacífica soara mais como o rosnado bestial de Karl e Perséfone.

— Mãe, eu posso explic...

— Olha o estado em que deixou o Aston Martin! — Priscilla passou direto pela filha, fazendo uma ronda pelo automóvel.

Nova paralisia de choque. “Ouvi isso mesmo?”

— Eu juro, Pacífica, se você não tiver uma boa explicação... — iniciou Preston, ainda conseguindo manter o controle mesmo que seu rosto estivesse mais vermelho do que a sua gravata. As suas famosas quatro veias estavam saltadas coletivamente. Pacífica já tinha dado nome a todas: a da testa em linha reta (“Behemoth”), a do maxilar à direita (“Cérbero”), a do sobrolho (“Hórus”) e aquela na lateral do pescoço (“Hades”), todas roxas de sangue e fúria.

— Eu tenho uma boa explicação! — falou por cima dele.

— Então vou te dar dois minutos inteiros para dizê-la, mocinha. — Preston agitava o indicador próximo ao nariz dela. — Sumir por uma semana, tendo mentido sobre ir estudar na casa dos Ambers, o carro da família desaparecido da garagem? A polícia nem quis investigar o caso pois pensaram que você tinha planejado uma fuga!

— Não, não, não — censurou Priscilla do outro lado, mais por cima ainda. Retornou com os passos arranhando um crec!-crec! agoniante no ar, a ponta dos seus saltos se arrastando pelo chão úmido de granito. Um arrepio de gastura formigou sob a lombar de Pacífica. Ela não acreditava com o tanto se parecia com a mãe há apenas uma semana atrás, pensava enquanto olhava para as botas militares que usava agora. Não era o seu estilo, claro, mas agora pensava consigo: “Quem em sã consciência pensa que é uma boa ideia sair de salto em plena neve?” — Ela não vai nos explicar nada! Aquele “Soos” já nos atualizou de tudo que precisávamos saber. Que história é essa de você estar envolvida com os Pines de novo?!

Pacientemente, Pacífica terminou de sair do veículo e bateu a porta atrás dela. Desvencilhando-se do ataque dos seus predadores, enveredou até a varanda e empurrou a porta. Não muito atrás, os pais vieram ao seu encalço, automáticos como se agora houvesse uma guia invisível atando-os à filha.

— Onde pensa que está indo? — O pai a deteve, o punho fechado com força ao redor do antebraço dela.

Pacífica tragou o ar, tomada pela surpresa, pela audácia do gesto. Ela fuzilou um olhar mortal para o pai. — Eu estou indo para uma cabana aconchegante após cinco noites soterrada no frio total, Preston. Vou entrar, preparar algo quente para mim, me sentar e conversar com vocês. Sabem, que nem gente civilizada faz.

A risada zombeteira da mãe esfaqueou Pacífica novamente. — O sarcasmo da senhorita não vai colar dessa vez. Tem noção de quantos limites ultrapassou?

— Deve ter passado a estratosfera, eu suponho — retrucou, rangendo os dentes, e sacudiu o braço para se livrar das garras paternas. Estava brincando com fogo, sabia disso, mas ela tinha passado por coisa demais pra ter que aturar aquilo naquela hora, não da forma em que estava sendo tratada. Aquela não seria a sua primeira vez cutucando ursos com vara curta. Que viesse um incêndio!

Já estava girando a maçaneta e prestes a colocar o pé direito pra dentro quando foi puxada de volta. Dessa vez, fora sua mãe. A porta se chocou contra o batente e fez o telhado do alpendre chacoalhar, resquícios de neve e graveto acumulados na calha choveram pelas extremidades da varanda com o impacto. — Você acha mesmo que vamos deixar você voltar para esse cafofo?

— Eu não acho que vocês entendem a dimensão das coisas aqui. Se me deixarem explic...

— Está falando que não sabemos da sua suspeita dos Pines desaparecidos “em outra dimensão”? — disse fazendo as aspas no ar com os dedos. — E da sua tentativa de ligar o portal que tem embaixo desse lugar? Achei que era para o FBI já ter desmantelado aquela droga há anos! Iria procurar por eles?! Quem botou essa ideia na sua cabeça?

Pacífica manteve um sorriso perverso no rosto.

— Eu mesma botei.

Priscilla deu um arquejo, ofendida; com a boca aberta em “o”, muda. Os dedos dela se enfraqueceram em volta do pulso da filha.

— Você oficialmente perdeu a cabeça — disse pra dentro, negando com a cabeça.

— E quem você acha que são os responsáveis por isto? — murmurou com provocação. Pacífica semicerrou os olhos para a mãe, desafiadora e inflexível, uma muralha.

Preston colocou um braço entre as duas, separando Priscilla do confronto. — Deixe que eu cuido disso. Só eu sei como controlá-la.

O estômago de Pacífica tremeu com a última frase. Teve de segurar o engasgo com o vômito que subiu até o topo do seu esôfago, e devolvê-lo pra dentro. Seus olhos arderam com as lágrimas que começavam a ser produzidas. — Controlá-la?! É isso que eu viro quando desaponto vocês toda vez? Um animal de circo?!

— Bem, já que você está à caráter... — debochou Preston, seu olhar julgador escaneando as roupas da filha, os cortes enfaixados, os hematomas, e o cabelo frisado, tudo em um segundo. — Você vai voltar conosco para a mansão agora. E fim de papo.

— Stanford, Dipper e Mabel Pines são amigos meus. Os três estão perdidos em outra dimensão e eu sei exatamente como recuperá-los.

Claro que sabe. — Preston tinha aquele sorrisinho detestável no rosto, o mais depreciativo. O sorriso que se dá a bebês quando eles dizem algo bobo e impossível.

Pacífica estagnou no lugar. Subitamente parara de lutar contra; a musculatura enfraquecia apenas com o impacto emocional da frase. O pai sabia mesmo onde colocar a faca.

Antes de Pacífica ter se jogado de cabeça naquela história toda, ela primeiro havia considerado abandonar a probabilidade de investigar o paradeiro de Mabel. E foi justamente por aquele motivo: Por duvidar de si própria. Porque “claro” que a rica, mimada e superficial Pacífica Northwest teria a capacidade de realizar tal feito.

— Não preciso que você acredite em mim, pai, não mais. Ninguém precisa, porque, acredite se quiser, eu sei o que fazer e eu vou fazê-lo nem que seja sozinha.

— Os Pines não são da nossa conta!

— É da minha conta! — Abandonou o olhar de esguelha e arremeteu-se contra o pai, peito a peito, olho no olho, dente por dente.

— Esses caipiras não são seus amigos. Você não vai nos fazer passar por esta vergonha de novo!

— Mabel Pines é minha namorada.

Involuntariamente fechara os olhos. Não desejando ver o que aconteceria em seguida. Esperava por qualquer coisa, mas não esperava que a mãe respondesse com um risinho e um tapinha no seu pulso.

— Querida, acha mesmo que vamos deixar que abandone toda a vida que planejamos pra você por causa do seu romance de colegial?

Tudo parou. As pernas de Pacífica vacilaram, como se também estivessem sendo derretidas com o restante da neve. Reabriu os olhos e encarou o pai, esperando algum tipo de reação sensata. Ledo engano. Preston olhava displicente, com uma sobrancelha erguida, pouco impressionada.

Com o suspiro cansado, o pai retirou o celular do bolso do paletó e acionou a discagem rápida. — Priscilla, estou ligando pra Manfred.

— Pai — Pacífica suplicou, a voz falhando. Era sua última carta.

— Shiu! Não quero ouvir mais nenhuma palavra. Vamos esperar o carro chegar e voltar pra casa e esquecer desse incidente dantesco.

E essa nem era a pior parte. A pior parte havia sido o pouco caso. Pacífica tinha acabado de assumir a coisa mais importante da sua vida e os pais haviam feito pouco caso. Por um momento, sua mente se silenciou, muda e aterrorizante como uma sala vazia de luzes apagadas; apenas um único e definitivo pensamento ocorreu, um tiro no escuro:

“É inútil.”

Nada mais iria convencê-los.

Até uma besta de duas cabeças no fosso de uma nave abandonada havia tido mais empatia por ela do que seus pais.

Aproveitando a distração do algoz com a ligação, livrou-se e zapeou para dentro da sala onde era a antiga recepção. Como um raio, foi da porta até a máquina de vendas em um segundo. Os gritos e ordens do pai para que ela voltasse retumbou pelo aposento. Pacífica digitou o código na máquina de refrigerante e a porta secreta que dava para o elevador se abriu. Os passos marchantes (o firme do pai; o crec!-crec! da mãe) ricocheteavam atrás dela. Preston colocou o braço pela passagem entreaberta, evitando que a porta fechasse, e continuou atrás de Pacífica numa corrida até o elevador.

— Olha o que estou sendo obrigado a fazer — disse ele, retirando algo pequeno, metálico e dourado de dentro do terno: o sino que ele costumava usar para “discipliná-la”.

Imediatamente, um trinado agudo e agoniante começou a afligir o corredor, arranhando os tímpanos de Pacífica, unhas em quadro-negro.

Ela invadiu o cubículo de metal e apertou o botão para o – 2. O elevador mergulhou na casa.

Seus pais ficaram pro lado de fora, de braços cruzados, observando o painel de LED que exibia os andares descendo e descendo. A filha tinha ido até o segundo subpiso. Priscilla estava a ponto de falar algo quando, em seguida, a luz do elevador reacendeu e começou a fazer o trajeto de volta.

— Ela está subindo de novo! — disse ela.

— Deve ter entrado algum juízo naquela cabecinha. — Preston assentiu.

As portas se abriram.

Dentro do vagão, encontraram sua filha cabisbaixa, um soluço preenchendo o interior do elevador. Os ombros delas tremiam ligeiramente. Pacífica levantou o rosto arrependido para os dois.

— Acabou o show, não é? — ralhou a mãe. — Agora vamos, anda logo.

Entretanto, Pacífica não mexeu um músculo a não ser pelo braço que tirou das costas, que escondia um objeto: a arma de apagar memórias da Sociedade do Olho Cego, que estivera só há alguns minutos na mesa de estudos do escritório de Ford.

Com a culatra tremendo no seu polegar direito, Pacífica levantou a arma até que a mira estivesse na altura da cabeça dos pais.

Por uma última vez, Pacífica olhou para o display da apaga-memórias.

No lugar onde se colocava o nome da coisa na qual gostaria de esquecer estavam as palavras: PACIFICA NORTHWEST.

— Me... perdoem.

Então, finalmente, apertou o gatilho.

*

— Pois é, quando analisei o escritório dele pela primeira vez tive a impressão de que ele estivesse trabalhando em algo. Mas não esperava que fosse um satélite do Multiverso. Stanford fez um GPS interdimensional. E ele ainda colocou a máquina para rastrear o celular de seus amigos e família, provavelmente caso um incidente como este acontecesse. Para prevenir outras pessoas de ficarem presas sem ajuda que nem aconteceu com ele na década de 80.

— Ford, seu gênio maldito! — Do outro lado da linha, Stanley gargalhou e socou a superfície do que parecia uma mesa, como quem comemora um gol.

Pacífica sorriu contra o bocal do telefone, contente em perceber que Stan era a primeira pessoa a lhe fazer sorrir desde mais cedo naquela tarde.

Do lado de fora da cabine telefônica em frente ao restaurante de Susan, o último raio de sol resistia sob um manto nublado, e iluminava um solitário pinheiro do topo de uma colina, sua sombra densa e pontuda preenchia o asfalto em ouro e escuridão.

Passou tanto tempo muda, que Stan percebeu algo de errado.

— Olha, garota... se eu e aquele maluco do McGucket voltamos a ter nossas memórias, seus pais provavelmente também vão. Aquela coisa não deve ser permanente.

Ela suspirou.

— Espero que você esteja certo.

— Obrigado por se sacrificar tanto pela minha família. Mabel não poderia ter alguém melhor.

Pacífica sentiu o peito se contrair. Depois, os batimentos cardíacos se abrandaram e o coração ficou frouxo, como se mal parafusado na sua caixa torácica. Ela ficou de repente leve, as borboletas fazendo cócegas na parede do estômago. Como era bom ter o apoio de alguém.

— Nos vemos em breve.

— Traga eles de volta.

— Eu vou.

*

No porão sombrio da Cabana do Mistério, Pacífica aguardava de frente para o portal. Soos havia acabado de acionar a máquina da sala de controle. Dentro de alguns segundos, o vibre de energia apossou-se do aposento, o motor rugiu, bocejando ao despertar do seu sono antigo.

A moldura circular da passagem começou a se encher de um plasma azul, uma energia poderosa e estática que fez os pelos do antebraço de Northwest se eriçarem.

Estava ligado. E a passagem estava escancarada diante dela.

Por uma última vez, dera um abraço de agradecimento em Soos, ajeitara a alça da mochila de escoteiro nas costas (recheada de mapas, dispositivos e mantimentos). No coldre da calça militar do Mindscape, as armas que encontrara no OVNI estavam dispostas em ponto de bala.

— Vai ser o bastante? — perguntara Soos.

Pacífica olhou mais uma vez para o seu destino. O plasma azul interdimensional se agitou, como ondas na superfície de um lago.

Era mais do que bastante. Afinal, ela não estava apenas armada de gadgets. Estava armada de algo muito maior, algo que ela nunca sentira com tanta certeza antes.

Com apenas um aceno positivo de cabeça, Pacífica assegurou sua decisão.

— Desligue assim que eu passar. Ligue de novo uma vez a cada sete dias, nesse mesmo horário.

Soos botou a mão no coração e levantou a outra, como um escudeiro medieval. — Servir você foi uma honra, Sir Northwest. Boa sorte, viajante.

Pacífica riu, tudo que ela precisava pra não surtar.

— Obrigada, Soos. Eu vou voltar.

E com um passo à frente e a respiração presa em antecipação, embarcou na sua viagem só de ida para o Mindscape.