Dipper estava numa sala que parecia ter saído de um seriado britânico de época. Havia quatro colunas de marfim, uma em cada canto do aposento, conectando o piso xadrez até o teto abobadado de gesso. Um lustre de velas chamejava acima, centralizado; e um aroma floral passeava pelo ar.

Não havia nada de errado com o lugar, exceto por duas coisas: “Onde eu estou e como cheguei aqui?!”

Ele estava sentado num sofá chesterfield, rodeado por mais outros dois, completamente vazios e enfileirados. Dipper tinha a impressão de estar em uma sala de espera.

Do outro extremo do aposento, um sino tocou acima de uma porta de arquitetura gótica – arqueada com uma ogiva pontuda no topo, como a entrada de uma igreja católica, e decorada com dois vasos de margaridas postos lado a lado. Pines se levantou e caminhou até ela.

Pressentindo a chegada do convidado, a porta se abriu sozinha e deu passagem para Dipper prosseguir.

Não se poderia descrever muito sobre as paredes da sala seguinte, pois a superfície delas estava lotada de relógios do teto ao rodapé. Relógios de ponteiro, digitais, de pêndulo, de sol, de água, antigos e novos mergulhavam a sala num “tique-taque” ecoante. O chão estava atapetado com camurça escarlate e, a uns dez passos, uma escrivaninha de mogno se estendia. Havia uma poltrona de couro com o encosto virado para Dipper. Ele sabia que alguém ocupava o assento, já que uma nuvem cinzenta de fumaça se acomulava acima da cadeira, o cheiro de nicotina formigando dentro das suas narinas. Na escrivaninha, um cinzeiro transbordava de bitucas e uma garrafa do vinho favorito de Dipper e Wirt jazia sem a rolha.

— Sente-se — retumbou a voz de Time Baby assim que sua mão rechonchuda de recém-nascido saiu detrás da poltrona e fez um aceno. Com um passe de mágica, Time Baby fez uma cadeira se afastar da mesa. Dipper viu o assento se virar na sua direção. — Eu meço o meu cronograma cirurgicamente, senhor Pines. Temos exatos 3 minutos para conversar. Não teste a minha gentileza.

Dipper não se mexeu.

A mola da poltrona rangeu quando Time Baby girou o corpo na direção do convidado. Com a mão que não sustentava o cigarro, Time Baby segurava uma cópia de Lolita aberta no seu colo. As marcações e post-its que vazavam pelas laterais contavam para Dipper que aquela não era qualquer cópia do livro, mas a dele, das aulas de literatura.

— Dois minutos e quarenta e dois segundos — apressou Time Baby. — Está confuso?

— Não mais. Bill também costumava entrar nos meus sonhos. Suponho que é isto que você está fazendo agora.

Os lábios de Time Baby se curvaram pra cima num sorriso discreto.

— Onde estou?

— No meu escritório.

— E qual jogo mental você está fazendo agora? As margaridas, o meu livro favorito, o vinho. Está tentando me dizer que consegue descobrir até mesmo esses detalhes fúteis sobre mim?

Time Baby fechou o livro sobre a mesa.

— Isso não é o que estou tentando fazer. Eu realmente gosto do vinho. — Pegou a taça meio vazia e girou o líquido dentro ao redor da palma da mão. — Aceita?

— Então você não odeia tudo que é da Terra pelo o que parece.

Time Baby suspirou. — Realmente. Pelo o que parece, eu não odeio.

— Então por que quis acabar com ela por tanto tempo?

— Eu nem sempre quis terminar com ela. Aquela vez em 2012 por exemplo Bill praticamente agiu por conta própria, ele estava tentando se rebelar contra mim e fugir da Guarda criando o weirdmaggedon. E quase obteve sucesso. Afinal, ele chegou até a me desintegrar, lembra disso? Para ser sincero com você, eu passei a maior parte da minha existência tentando consertá-la pacificamente. Havia algo específico nela que me incomodava.

— E o que tinha de tão errado na Terra para ser consertado? Um acontecimento histórico? Esse “algo’’ tem a ver comigo? — Era uma pergunta, mas a alma de Dipper já vibrava como se de certeza. — A mudança no tempo que fiz com a trena de Blendin e nunca foi consertada.

Time Baby riu com acidez. — É bem mais complicado que isso. Se fosse algo tão simples e físico como um evento histórico relevante eu já teria feito assim. — Estalou os dedos. — Há algo na genética temporal daquele lugar, de engenharia difícil para que eu consiga por o meu dedo. É um ponto imutável no espaço e tempo. Quase como se fosse… predestinado. — Enquanto divagava, Time Baby girou a haste da taça entre o indicador e polegar, como se entretido pela cor do líquido mudando a cada exposição de luz. — Passei tanto tempo estudando-o e tentando alterá-lo sem sucesso que, depois de um tempo, tudo ficou mais claro para mim: seria mais fácil destruir a Terra completamente.

— E esse “defeito na genética temporal” é mesmo tão problemático ao ponto de justificar a erradicação da raça humana?

Neutro sempre, Time Baby respondeu:

— Sim.

— Ficaria mais fácil de você me convencer disso se pelo menos me contasse direito o que é, ou o quão ruim ficaria se você não fizesse nada a respeito.

— Minha função não é dar respostas. Não agora. Agora que eu fiz viajar no tempo ser impossível, qualquer passo em falso poderá ser irreparável. Tem que ser perfeito desta vez.

— Tudo é profissional para você? É o seu trabalho, é a sua função como Governador do Tempo?

— Eu tenho “Tempo” escrito no meu nome por um motivo, não concorda? Sobre o que mais você esperaria que fosse?

— Esse tipo de crueldade que você instala no seu império não podem ter raízes meramente profissionais. Aconteceu alguma coisa com você lá na Terra, não foi? Algo que mexeu no seu pessoal. Quando você ainda era humano.

Time Baby suspirou.

— Senhor Pines, eu sugiro que você pegue tópicos melhores para conversar. Temos um minuto restante.

— Por que me trouxe aqui?

— Finalmente, progresso! — Time Baby ergueu o seu corpo deformado da cadeira, flutuando acima do assento, de pernas cruzadas. Ele deu mais um longo e demorado trago no cigarro antes que a brasa terminasse. — Sabe que eu sempre achei literatura uma das coisas mais interessantes do mundo humano? Você já leu A Arte da Guerra? — “Ele não pode estar falando sério.” — Sun Tzu diz que, numa guerra, deve-se conhecer o inimigo tão bem quanto a si mesmo.

Dipper voltou a olhar para o vinho e o livro. “Então é isso que está acontecendo por aqui.”

— Observando sua vida, percebo que você já esteve em muitas guerras internas, estou ciente disto. Mas será que realmente estaria pronto para uma de verdade? — disse Time Baby, cruzando os dedos na frente do corpo e deixando o cigarro e a taça suspensas no ar. — Você está pronto para declarar uma guerra em nome do amor, senhor Pines?

— O que está insinuando?

— Eu te trouxe até aqui, no meu escritório, e te ofereci o meu vinho porque eu queria que você se sentisse civilizado. Porque eu quero oficializar as coisas. Já faz um mês desde o que ocorreu no Exílio e muitos esperam a minha posição diante disso. — Uma gaveta se abriu e um pergaminho se desenrolou para fora dela feito uma língua. Junto veio uma caneta de pena que flutuou na direção de Pines. — Estou fazendo isso pois estou disposto a jogar limpo com você, e espero que você faça o mesmo por mim.

No topo da folha do documento estava escrito: TRATADO DE GUERRA CIVIL. E, no rodapé, uma linha em branco aguardando para ser assinalada.

— Acho que você deveria ler Sun Tzu com mais atenção. Não é um jogo limpo se você souber tudo do meu passado e eu não saber nada do seu — disse Dipper.

— Realmente, receio que não. — Time Baby deu um riso crítico e tragou do cigarro antes de deixá-lo pendurado no ar de novo. Saindo de uma cortina de fumaça, Time Baby se curvou para frente. A criatura fechou a mão em concha ao redor da própria boca, convidando Dipper a se aproximar e inserir sua orelha ali. Com o dedo indicador curvado num gancho, ele fez para o garoto um gesto de “vem cá”.

O estômago de Dipper deu uma cambalhota, e ele se segurou no espaldar da sua cadeira. Se Time Baby quisesse, arrastaria Dipper em qualquer direção com sua magia, como já fizera outras vezes. Mas agora, ter que se aproximar voluntariamente de Time Baby… essa seria uma tortura cem vezes pior.

— Venha, vou te contar um segredo — pressionou Time Baby com a voz macia, como quem incentiva um animal de estimação a saltar por um petisco.

“Estou num sonho mesmo.” Dipper deu três passos à frente e inclinou o rosto para Time Baby.

Sentindo a expiração fria de Time Baby lamber na sua nuca a cada sílaba proferida, Dipper escutou o sussurro: — Você não é o primeiro a alterar a linha do tempo por amor.

Um badalar de um sino estourou pela sala! Tão alto e forte que suas ondas fizeram o esqueleto da construção tremer, o chão sob seus pés vibrar de leve. Todos os relógios digitais acionaram os seus despertadores ao mesmo tempo, trovejando uma sinfonia de apitos.

Dipper perdeu o equilíbrio e suas unhas se afundaram tanto na madeira da cadeira que ele sentiu a ponta de uma farpa perfurar a pele do seu mindinho.

— Parece que nossa reunião acabou, senhor Pines.

— Não, espera! — disse, tentando falar acima do estrondo.

— Não peça isso de mim. Você tem seis horas para me responder. Senão agirei como bem entender.

Após seu ultimato, Time Baby puxou o cigarro e finalmente o apagou na capa de Lolita. A brasa se espalhou pelo papel-cartão, queimando o livro.

E, assim, Time Baby estalou os dedos.

E, assim, Dipper abriu os olhos.

Estava de volta no último lugar que se lembrava de estar: seu quarto de hóspede na carruagem de Tom. O quarto sacudia com os pulos da carruagem sobre a estrada irregular.

Dipper vasculhou por Bill ao seu lado, não obtendo sucesso. Sentou-se no colchão e olhou para a própria mão. A farpa e o furo no mindinho haviam ficado pra trás, no sonho, mas não o documento que Time Baby havia lhe mostrado. Ali, ao pé da cama, estava o mesmo pergaminho que ele vira, com a mesma caneta de pena, ambos objetos ainda retendo um pouco dos resquícios azulados da magia.

Engatinhou até a borda, ficando sentado com as pernas pra fora da cama e desenrolando o pergaminho entre os dedos. TRATADO DE GUERRA CIVIL.

Ele não estava tão surpreso com aquilo para falar a verdade. Era só uma questão de tempo levando em consideração o que ele vinha causando no Mindscape no último mês: a extinção da viagem temporal, juntamente com a dissolução de todo o Departamento do Tempo, que gerou greves e protestos que uniram até mesmo os agentes humanos da Guarda com alguns monstros; a destruição do Exílio, que libertou todos os prisioneiros e reviveu a Rebelião.

O que deixava-o surpreso era outra coisa:

“Você não é o primeiro a alterar a linha do tempo por amor.”

Time Baby tinha sido direto sobre o seu passado pela primeira vez. Ainda vago, sim, muito vago. Mas finalmente direto.

“Ele estava falando de si mesmo?”

Batidas na porta do quarto retiram Dipper do seu delírio.

— Entre — disse, enfiando o tratado de guerra para debaixo dos lençóis.

Sem cerimônia, Tom abriu a porta e colocou a cabeça entre a fresta.

— O que ainda está fazendo deitado? Quer saber, eu não julgo. Vamos sair em 10 minutos.

— Já estou a caminho.

Assim que Thomas se retirou, Dipper voltou a estudar o que Time Baby havia lhe deixado. Além da carta, um pequeno objeto havia surgido na mesa de cabeceira. Era um relógio de água. Dipper já tinha lido sobre eles nas aulas de história. Chamavam-se clepsidra: era um cone oco de mármore que tinha sua ponta imersa num compartimento cheio de água. Por um furo na ponta do cone, a água fluía lentamente, enchendo o relógio. Haviam listras em volta do recipiente, marcando o nível da água à medida em que ela subia, cada linha representava uma hora que havia se passado. Eram seis ao todo.

Seis horas.

Dipper deixou de lado a clepsidra e o rolo de pergaminho e se levantou, indo em direção a bacia posta numa mesinha abaixo do espelho do quarto. Limpou o rosto e tirou o suor dos braços e do pescoço.

Quando se olhou no espelho, lutou para reconhecer o menino que estava ali. “Como um mês muda tudo…”

Dipper tinha crescido uma barba cheia. Não tivera o tempo (ou disposição) para se barbear três vezes na semana. Seu rosto estava emoldurado por costeletas grossas. Ele estava idêntico a Stanford. Também notou uma cicatriz minúscula (que ele nem se lembrava onde conseguira) debaixo do olho direito. Seu peitoral e bíceps estavam ressaltados.

Sua marca de nascença brilhava intensamente em azul. Havia mais poder nele do que ele estava acostumado. “Preciso me trocar”, pensou, reparando na regata branca e na samba canção que usava. Com um estalar de dedos, trocou-as magicamante pelo capa, os shorts e o top de couro preto. Escondeu o rosto e a marca de nasçenca com a ajuda de duas bandanas. Guardou sua adaga, o contrato de guerra e a clepsidra na pochete de lona que deixava escondida ao lado da cintura.

Ao sair do quarto, Dipper encontrou-se com Bill, que levantou da cadeira assim que a porta se abriu.

Bill usava um sobretudo escuro, um colete social com gravata borboleta e um par de sapatos de couro que, de alguma maneira, ele tivera a proeza de encontrar no Mindscape. Havia partido o cabelo loiro totalmente para um lado, finalmente raspado a barbixa que estivera germinando há dias, e podado os pés do corte de suas pontas duplas. Bill segurava uma bengalava com mãos enluvadas de pelica.

Dipper abriu um sorriso. Se ele um dia já foi preocupado com alguma coisa, ele não se lembrava agora.

— Estava me esperando? — Dipper perguntou.

— Queria lhe dar um pouco de privacidade. Sei que nessas horas você costuma ficar mais introvertido que o normal. — Fez uma cortesia, dando o braço vazio na direção de Dipper.

Assim que entrelaçou o braço com o de Bill, Dipper o afagou com um selinho no pescoço; mesmo sob a bandana, um cheiro de lavanda encontrou o seu nariz. Bill tinha passado a melhor colônia da gaveta, aquela que ele demorava milênios pra usar por medo do desperdício.

Aproximaram-se da porta da carruagem, onde Tom esperava sentado num banquinho acolchoado, com o seu coelho de estimação debruçado sobre o seu colo. Tom acariciava – frenético — a pelagem rosa do bichinho.

— Você tá fazendo carinho no coelho ou tentando coçar uma ferida nas costas dele? — disse Bill.

Thomas abafou um riso. — Cala a boca. Prontos ou não?

*

Assim que seus pés tocaram uma duna de areia e a carruagem desapareceu pelo deserto, Bill se virou para Dipper.

— Uma pena ele não poder nos acompanhar em quase nenhuma missão.

— Pois é, eu tenho vontade de arrebentar aquele bracelete toda vez que o vejo. — Dipper suspira. — Bem, agora que estamos sozinho, pode abrir o jogo: por que está tão arrumado assim? Nem parece que estamos indo nos encontrar com um estranho que diz saber onde fica o Nightmare Realm.

Nightmare Realm. Saber o nome do lugar já era o suficiente para Dipper transbordar de esperança. Afinal, era naquele lugar onde Stanford e Mabel estavam.

Automaticamente, sua mente invocou uma cena ocorrida 30 dias atrás. Quando ele viu Stanford pela primeira vez desde que chegara ao Mindscape, após ter ficado íntimo com Bill.

~~~

De repente, Dipper estava de volta no seu quarto, na caverna vulcânica de Tom. Ele e Bill tinham acabado de se reconciliar (com uma sessão de frottage, diga-se de passagem), e estavam em choque, olhando a visão que os poderes de Dipper tinham invocado: um Stanford abraçando um Dipper de 12 anos, nas colinas de Gravity Falls.

— O que será que Time Baby fez com ele?! Será que mandou Ford para uma terceira nova linha temporal?! — Dipper dizia. — Seria por isso que ele fechou os portais do tempo?! Para que eu não conseguisse alcançá-lo?!? Ou então em uma outra dimensão, com um outro eu?!?! E se ele tiver apagado a memória dele de novo?! E se—!

— Dipper! — vociferou Bill, obrigando Dipper a restabelecer o controle e lhe encarar nos olhos. — Stanford e Mabel não estão em outra dimensão, e nem em outro tempo.

A respiração de Dipper desacelerou.

— Como sabe disso?

— Experiência. — Cipher pegou Dipper na mão e levou-o até a tela novamente, onde apontou para um certo pedaço do céu no cenário. — Vê isso?

Dipper se aproximou, semicerrando os olhos. Havia, sim, algo.

— O céu que parece ter algum tipo de corrente elétrica?

— Sim. Não é o céu de verdade — esclareceu Bill. — É um lugar que Time Baby já me fez usar uma vez, no primeiro Weirdmaggedon, verão de 2012, com Mabel Pines. Time Baby os aprisionou numa bolha de ilusões.

Dipper arregalou os olhos.

— Uma bolha temporal... — matutou, tendo um arrepio sombrio ao se lembrar do presente de Ford no seu aniversário de 14 anos. — Eu não entendo. Por quê?! Por que Time Baby se importaria em apelar para o emocional dos dois. O que ele ganha com isso?!

— Eu não sei. Mas sei que Time Baby raramente usa essa tática nas batalhas. É uma medida de último recurso. Usada só quando Baby realmente sente que sua vitória está ameaçada, para manipular o emocional dos oponentes. O que quer que ele esteja planejando agora, vai ficar feio.

— Bill, o que vamos fazer? Não me sinto pronto para algo dessa dimensão ainda. Invadir uma bolha de ilusão com os prisioneiros mais bem estimados de Time Baby? Isso me soa ser um lugar muito difícil de se acessar. Deve estar em um local secreto, de difícil acesso. Sei que iniciei uma revolta popular, mas já estar a caminho da fortaleza do rei?! Eu-e-eu... — sua voz sumiu de tão fraca.

Bill o segurou pelos braços e o fez se sentar na cama, onde recomeçou com mais cuidado.

— Pense pelo lado positivo, temos uma vantagem a ele. Nós sabemos o que ele quer que nós saibamos: que ele está, no fundo, no fundo, desesperado. Com medo. Usando recursos de última medida. Você instalou medo nele, Dipper. Isso é uma coisa boa. Ótima, na verdade.

— Uau. — Dipper estava boquiaberto para Bill. — Você sabe mesmo como manipular as pessoas ao seu favor.

— Aprendi com o “melhor” — disse Bill, com amargura e um rolar de olhos, referindo-se a Time Baby. — Pelo menos sabemos que Ford e Mabel estão bem.

— “Bem”?!

— Pelo menos eles não sabem que estão sendo torturados. Isso que quis dizer.

Dipper respirou fundo. — E onde encontramos essa bolha?

Bill deu um suspiro cansado. — Nightmare Realm. É onde Time Baby conduz seus experimentos e assuntos secretos.

— E onde isso fica?

— É aí que as coisas se complicam, Mason. Ninguém sabe onde fica exatamente. Nem mesmo eu.

~~~

Bill o cutucou de leve e apontou para algo. Retirado daquela memória, Dipper olhou para o que o namorado apontava. A poucos metros de distância, em tinta vermelha, o contorno da constelação da Ursa Maior estava pichado na parede de uma casa em ruínas. Abaixo dela, uma palavra: REAJA!

— Meu namorado é uma celebridade — disse Cipher, saltitando.

Dipper sentiu seu rosto arder sob a bandana. — Acho que nunca irei me acostumar com isso — murmurou contra o ombro de Bill.

Bill ronronou e depositou um selinho na testa coberta de Pines.

— Não vai me contar o porquê da cortesia? — Dipper pressionou, olhando para as roupas chiques do namorado. Bill nunca iria para uma missão vestido daquela maneira.

— Já estamos chegando — disse Bill, provocador, mantendo o mistério

Mais adiante, o vilarejo transbordava de monstros, que passeavam através dos estandes de lona da feira que ocorria. Em sacos de pano, especiarias, tubérculos e hortaliças se acumulavam. Um aroma de páprica e pimenta dominava o ambiente. Dipper segurou a mão de Bill; com a outra, sob a capa, segurou com mais força a pochete, e seu coração deu um aperto dilacerante quando se fechou ao redor do vidro frio da clepsidra. “Preciso contar pra Bill sobre isso. Só vou esperar nós terminarmos de nos encontrar com esse cara.”

No que era guiado por Bill dentro do mutirão, o calor, já escaldante, triplicou de força. A roupa debaixo colou nas costas de Dipper, e ele abanava a capa para que ventilasse melhor por dentro.

Entraram num sobrado coberto, era rudimentar, de arquitetura simples, calcário impolido, com pontas grossas de pedra empilhada sobre pedra rebentando nas quinas, e buracos irregulares na construção que serviam de janelas. No átrio, cadeiras e mesas feitas de carretel de tamanho diferentes se espalhavam pelo pátio. Nas laterais, barracas de venda se embutiam nas paredes. O cheiro de fritura, cevada e suor rodopiava ao redor de Dipper. Bill pegou um assento numa mesa vazia, ao lado de uma mesa com outras duas pessoas encapuzadas que dividiam uma porção do que parecia ser um crustáceo refogado.

Bill puxou um banco debaixo da mesa e gesticulou para que Dipper se sentasse nele. Com o coração quentinho, Dipper deu um sorriso por debaixo da máscara, assentiu e tomou o seu assento. Bill foi para o outro, ficando frente a frente.

— Aqui é o lugar certo? — perguntou Dipper.

Bill assentiu.

— Então ele deve chegar a qualquer momento.

Bill limpou a garganta e ajeitou a gravata borboleta ao redor do pescoço. — Er… sobre isso, talvez ele demore um pouco.

Dipper arqueou uma sobrancelha. — Como sabe disso?

Bill girava os indicadores um ao redor do outro. — Porque talvez eu tenha mentido o horário pra podermos sair mais cedo e conseguimos um tempo a sós. — Falou apressado, engolindo os espaços e vírgulas, e pontuou o final da frase com um sorriso amarelo.

Dipper ficou atônito por um segundo, mas em seguida esticou sua mão até seus dedos encontrarem e se entrelaçarem com os de Bill. Olhando no fundo nas suas pupilas púrpuras, disse sem conseguir desfazer do sorriso: — Obrigado, Charlie. Isso é exatamente o que eu estava precisando. — “Era isso o porquê do traje chique!”

Bill Cipher se endireitou, com um rubor intenso sobre as bochechas, fazendo força para segurar um sorriso bobo e afetado. Levantou a mão para invocar um garçom-sapo. O garçom veio saltitando, usando um chapéu de papel e segurando um bloco de notas com uma caneta de pena. Bill pediu um prato local que Dipper nem sequer sabia pronunciar o nome.

— Então estamos num encontro.

— Agora que temos a chance, quero conhecer mais sobre você.

— Acho que não existe nenhuma coisa sobre mim de que você ainda não saiba.

— Será? — perguntou ele, a voz um ronronar. — Acho que estou disposto a te conhecer ainda mais.

— Quão mais? — a voz de Dipper já era praticamente um sussurro, dando uma enorme brecha de flerte.

— Tipo... Qual sua cor favorita? — perguntou Bill, o tom malicioso completamente aniquilado.

Dipper riu, constrangido. — Então quer saber do superficial.

— Pra alguém que já te viu tão de fundo, Pinheirinho? Eu quero conhecer o todo resto de você. Até os detalhes mais fúteis.

— Minha cor favorita é vermelho.

Bill revirou os olhos. — Claro.

Dipper cobriu a boca para sufocar um risinho. — Falei que sabia de tudo. Qual a sua?

— Azul índigo.

Dipper imitou o revirar de olhos de Bill. — Claro.

— Aquela coisa que humanos amam desperdiçar tempo assistindo, como é que chama?

— Celular?

— Não.

— Televisão?

— Isso. Qual é o seu programa de tv favorito?

— Tive minhas fases obcecado com The X-Files e Doctor Who.

— Não faço ideia do que isso seja.

— Uma pena, é a sua cara.

— Tenho certeza de que é ótimo. E quadrinhos? Acredito que você também goste destes.

— Quis fazer uma tatuagem em homenagem a Watchmen na minha primeira adolescência.

— Aquela história do semideus azul com a marca esquisita na testa? — Bill franziu o cenho.

— Irônico, não?

— Signo?

— Virgem.

— Tem um signo com o nome do que você é? — Bill falou um pouquinho mais alto, para provocar Dipper ao ameaçar os outros monstros de escutarem.

Dipper abafou uma risada e deu um peteleco no braço de Bill.

— Ridículo.

— Ser alguém de virgem é bom?

Dipper fez uma careta duvidosa. — Você sabe como é minha vida, não sabe?

Bill arregalou os olhos espantados teatralmente. — Meu deus! Deve ser o signo mais azarado de todos!

Pines gargalhou, obrigando-se a empurrar Bill, com raiva por não conseguir para de rir em público.

Vez de Dipper:

— Qual a sua música favorita?

— Não pude ouvir muitas músicas. Não são algo muito presente na cultura daqui. Mas ouvi uma na Terra que nunca mais esqueci. — Bill ficou de pé, enchendo os pulmões de ar. E, de repente, soltou numa voz exagerada: — Queeeeem vai querer um carneirinho? Eu quero! Eu quero! E cumprimentar a mamãe com um beijinho?

Dipper estava com a barriga dolorida de tanto rir. Bill não conseguia parar de incentivar, dava círculos ao redor do garoto, imitando os passos tortos que dava quando mais novo.

— E marche, marche, marche ao redor das margaridas. Não, não esqueça do amor da sua vidaaaaa!

— Seu pedido, senhor — coaxou o sapo, uma mão erguendo a bandeja e a outra dobrada atrás das costas, fitando Bill dando piruetas com uma expressão confusa.

Bill ficou vermelho ao encarar o garçom e se sentou imediatamente. Dipper se dobrava de tanto rir. — O-Obrigado — disse Cipher; o sapo deixou uma travessa de pães e legumes grelhados na mesa junto a mais dois canecos de alumínio com cerveja e voltou para uma tenda aos pulinhos. — Finalmente.

Antes que Dipper pudesse provocá-lo mais, Bill sufocou-se com o conteúdo do seu caneco, tomando grandes goladas e ignorando os transeuntes que diminuíram o ritmo para ver o “show”.

Dipper enganchou o dedo indicador na barra da bandana e a puxou para o queixo, tomando um gole delicado sob o capuz. A cerveja do Mindscape tinha um sabor bem mais forte do que o da Terra, o líquido era mais espesso e ele teve que se controlar para não fazer careta com o amargor. — Você nunca vai esquecer disso, né, Carneirinho?

— De você? Do que vivemos juntos? Por que deveria? Falando nisso… — Colocou o caneco de volta na mesa, entrelaçando as mãos diante dele e ajeitando a postura. — Queria falar com você sobre o que vamos fazer depois de resgatarmos Ford. Olha… — Bill lançou uma mão sobre a de Dipper, fria com o toque do alumínio. — Podemos cumprir a nossa promessa logo após. Podemos deixar Mabel de volta na Terra, pegar Ford e dar o fora daqui. E falo sério. Podemos ir pra qualquer parte do Multiverso, deixo vocês escolherem, contanto que seja o mais longe o possível daqui.

Dipper piscou duas vezes com rapidez, tentando forçar as palavras de Bill a serem processadas na sua cabeça.

— Mas, Bill, a Guarda…

Bill sacudiu a cabeça.

— Eu não ligo pra Guarda. Eu não ligo pra esse lugar, nunca liguei. Vocês são a coisa mais importante pra mim.

— O… quê? — Dipper arrastou a mão para fora do toque de Bill.

— Falo sério. — Bill colocou o queixo em cima das palmas abertas, olhando para o céu com um brilho infantil nos olhos, como se visualizasse o futuro. — A causa dos monstros não é responsabilidade sua. Não vou te julgar se quiser se afastar depois de terminar o que veio fazer aqui. — Pegou o caneco de novo, pronto para um novo gole.

Dipper sentiu a clepsidra gorgolejar dentro da sua bolsa, o cone tinha acabado de encher o espaço de uma hora. E aquela esperança se aniquilou antes mesmo de poder nascer, como uma porta sendo fechada na sua cara.

— Charlie, sua consideração é a coisa mais linda do mundo. Mas não posso fazer isso.

Bill parou no meio da sua ação. A sua mão com o caneco se congelou a poucos centímetros da sua boca, o brilho desapareceu do seu olhar.

— Por que não?

— Time Baby me enviou um tratado de guerra civil hoje cedo.

Os ombros de Bill se retesaram. Lentamente, ele voltou com o caneco na mesa e passou o dedo em volta da gola, como se ela tivesse ficado mais apertada com o nó de marinheiro na sua garganta.

— Você assinou-

— Não assinei nada ainda. Ele me deu seis horas, ou ele agirá como bem entender diante da situação. Temo o bem de Ford e Mabel.

Bill não falou nada.

— Bill, eu ligo pra esse lugar. — Colocou a mão no peito. — O que acontece aqui é horrível. Veja só o seu caso. Ser escravo de Time Baby não só fez mal para você como também diretamente feriu a minha vida de várias maneiras. Não posso simplesmente fugir e deixar o povo daqui sofrendo, e, mais ainda, deixar a existência do planeta Terra à mercê de Time Baby. Imagine a retaliação que ele faria por lá assim que descobrisse que eu fugi.

— Dipper, é uma guerra.

— Sei disso. Mas não temos um exército de monstros dispostos a lutar?

— Da última vez que teve um exército de monstros disposto a lutar, todos foram derrotados com um estalar de dedos.

— Não é a mesma coisa. Tenho a magia de Time Baby agora.

— Você é só um, Mason. Time Baby tem milênios de prática.

— Se eu e Thomas ensinássemos os monstros a usar magia…

Bill sacudiu a cabeça, cortando Dipper. — Eu duvido muito que eles iriam querer aprender isso. Você não vê o motivo da Guarda estar sempre caçando monstros?

— Intolerância?

— Não. A Guarda suga a magia dos monstros para abastecer seu armamento e ser usada de combustível nas trenas de viagem no tempo. Ensiná-los magia avançada seria como transformar um ouro de oito quilates para um de vinte e quatro. Eles ficariam mais valiosos para o mercado do que já são.

Dipper parou de falar. Tinha deitado todas as suas cartas. Achava que tinha o truco ganho, mas as circunstâncias portavam um quatro de paus. Abaixou a cabeça, encarando as próprias mãos que formigavam com tamanho poder correndo em suas veias. Tudo aquilo, e ainda não parecia o bastante. “Será que eu sou mesmo suficiente?”

— Tem uma outra coisa que Time Baby me disse… — recomeçou ele, afastando suas inseguranças. “O único jeito de vencer seu inimigo é conhecendo ele como a si mesmo”, relembrou uma frase de a Arte da Guerra. — Time Baby falou que, quando ele ainda era humano, ele alterou a linha do tempo por amor. Assim como eu fiz quando salvei a vida de Stanford. E… parece que isso tem a ver com o que ele se tornou hoje. Sabe do que ele está falando?

Bill negou com a cabeça. — Conheci o caráter de Time Baby como ninguém. Ele é traiçoeiro, egoísta, sádico, ganancioso… mas ao mesmo tempo muito, muito misterioso. Nunca pude saber nada do seu passado. Para ser sincero, me surpreendi bastante quando você me contou o que o DNA dele era humano. — Dipper tinha descoberto aquilo também há um mês, ao invadir o sistema de segurança do Exílio.

Dipper suspirou.

— Tenho uma sensação terrível com tudo isso, Bill. Sinto que o passado de Time Baby está entrelaçado com tudo que acontece agora. Afinal, a vida dele está conectada com a sua, quando você era o escravo dele, e sua vida está diretamente conectada à minha e à de Stanford, já que somos seus Índigos. E agora saber que ele cometeu os mesmos erros do que eu no passado, e que nunca houveram duas linhas temporais diferentes, e sim três… Sei lá. O Mindscape, Time Baby, as viagens no tempo, eu, você, Stanford. De alguma forma, tenho certeza de que tudo isso está interligado. Eu só não consigo ver como. Parece que estou tentando finalizar um quebra-cabeça sem ter visto a imagem completa na caixa antes, e não tenho ideia do que estou montando.

Um frisson resgatou Dipper dos seus devaneios. Da entrada do átrio, veio o escarcéu de carretéis sendo revirados, passos apressados e monstros gritando.

Dipper e Bill viraram suas cabeças na direção da confusão imediatamente.

Entrou no pátio um grupo de cinco criaturas que andavam em formação, vestindo couro dos pés à cabeça. Espadas e athames circulavam as suas cinturas. O que liderava o caminho era um crocodilo bípede, que deu um sorriso afiado de presas cor de piche. — Estão todos se divertindo? — sibilou ele, voz malemolente.

Uma hiena de topete ao seu lado deu uma gargalhada, ajeitando sobre o ombro uma besta. Uma doninha, que segurava um porrete de arame farpado, surrupiou um caneco de uma mesa enquanto passava e entornou goela abaixo, filetes de cerveja escorrendo pelo seu pescoço e molhando o colarinho. O dono da bebida se encolheu ao invés de protestar. Uma iguana na retaguarda tremia a sua língua fina e roxa pelo furo de um alargador que tinha no queixo. O último membro, um gorila de cabeça raspada e tatuada e brincos de argola, cutucava o dente molar, tentando tirar um pedaço preso de carne.

— Quem são eles? — sussurrou Dipper.

— Não conheço todo desequilibrado do planeta. Anda, vamos dar o fora daqui. Não é da nossa conta e não seria bom pra você chamar a atenção como foragido.

— Viemos a pedido do Comandante Seth de Septarsis — prosseguiu o crocodilo, marchando para o meio do pátio, as correntes em suas botas fazendo um retino pesado a cada passo.

“Seth está vivo.” Thomas odiaria receber a notícia.

— Estamos procurando um humano. Acho que todos devem conhecê-lo. O índigo com a marca estranha na testa. Seth está oferecendo uma recompensa irresistível.

Dipper deu um olhar de soslaio para Bill. — Parece ser da minha conta.

— Dipper, me escute–

— Temos informação de que ele está aqui. Provavelmente se escondendo. — O crocodilo girava em volta de si mesmo, enquanto os seus capangas faziam ronda. — Se for um bom garoto e sair da toca com o rabinho entre as pernas, podemos te escoltar com vida.

— Mas, chefe, o Comandante falou que era pra trazer ele frio — disse a doninha coçando o topo da cabeça. A hiena, do seu lado, socou o cabo da besta na nuca dele, que fez a doninha piruetar de tontura.

— Calado — a hiena rosnou.

O crocodilo fitou para a dupla com um olhar de quem estava dando a mesma bronca pela enésima vez no dia e não iria continuar falando. Voltou sua atenção para o público.

— Podemos pensar em te escoltar com vida — contrariou ele. — Vamos lá. Vou dar dez segundos.

— Como sairemos daqui? — perguntou Dipper a Bill.

— Nove — disse o crocodilo.

— Vamos entrar em uma das tendas, saímos pelos fundos — respondeu Bill.

— Oito.

— E se eles tiverem cercado o prédio?

— Sete.

— Você tem poderes, não tem? Use-os.

— Seis.

— Okay, vamos sair de fininho.

— Acho que isso não deve estar sendo incentivo o suficiente pra você — disse o crocodilo, interrompendo o raciocínio de Dipper. Em seguida, o líder puxou um dos monstros que estava por perto e segurou uma athame na sua contra a sua jugular. — Cinco — continuou.

Dipper travou imediatamente. Virou-se na direção do algoz e começou a se levantar, determinado. Bill o deteve segurando pelo braço, unhas marcando a carne de Dipper mesmo por debaixo do capuz.

— O que está fazendo?

— Cumprindo a promessa que fiz quando decidi ficar aqui e resgatar você, Ford e Mabel. De que não fugiria mais de nenhum problema. Nunca mais.

Antes mesmo de terminar o comando mental, a energia azulada chispou para fora dos seus dedos e se moldou no ar até formar uma katana.

O crocodilo sorriu assim que o identificou no canto do pátio.

Cipher deu um suspiro rendido. — É engraçado o quão burro você é. — Bill tirou a ponta da sua bengala, que se mostrou um lâmina disfarçada. — Que bom que eu vim preparado. — Com isso, Bill assoviou com o indicador e o polegar na boca. Nesse comando, a dupla encapuzada que estava sentada na mesa ao lado deles se levantou, jogando os seus capuzes fora.

Era Bauer e Florette.

Da clarabóia do átrio, um tamanduá desceu, usando a própria língua, enroscada em uma das vigas do telhado, de rapel. Narigudo.

O crocodilo sorriu, soltou o refém (que fugiu) e encarou Dipper nos olhos. — Então teremos uma luta justa. Por mim tudo bem. — Fez um sibilo de canto de boca, parecido com um tsc-tsc, e seus subordinados se espalharam pelo pátio.

O gorila, de braços tão brutos que se arrastavam pelo chão, trotou na direção de Bauer, o troll.

A hiena gingou para o lado da garota-libélula, Florette.

A doninha zanzou por entre as mesas e cadeiras até Bill.

A iguana vibrou a língua para o lado de Narigudo.

E o escarcéu se iniciou no pátio.

Dipper disparou com impacto de uma bola de canhão até o crocodilo, seus pés flutuando a um centímetro do chão. Como se sob o poder tudo ficasse em câmera lenta, Dipper viu as garras escamadas do crocodilo se curvarem para uma arma no seu coldre. Num zapeio, a lâmina da sua katana atravessou o pulso do réptil. A mão do crocodilo caiu estúpida e sem vida na areia. Dipper freou no ar, energia azulada tremulando ao redor do seu corpo. O crocodilo não gemeu, nem sequer fez uma careta de dor, apenas olhou o membro decepado com chão com um suspiro. Em seguida, ergueu o braço para que o oponente visse bem o que acontecia: em quatro segundos, carne e osso cresceram e se entrelaçaram ao redor do toco no pulso. Uma nova mão se regenerou no crocodilo.

Distraído e boquiaberto com os olhos fixos na habilidade, Dipper quase não percebeu quando o crocodilo usou sua outra mão para puxar um shuriken do cinto e atirá-lo. Seu instinto acordou e uma barreira de plasma azul bloqueou a lâmina de atingir seu pescoço. O shuriken ricocheteou para o outro lado do pátio.

Daquele canto, o gorila e Bauer batiam de frente, os dedos das mãos engalfinhados, enquanto um tentava derrubar o outro. Narigudo e iguana tinham uma curiosa queda de braços… com suas línguas. A iguana conseguiu derrubar o tamanduá e grudar sua língua no pelo dele. Narigudo foi içado até um mastro de ferro que vazava da construção precária. A magia e o raciocínio de Dipper agiram como memória muscular: ele usou sua telecinese para atirar um vidro de sal de uma mesa próxima até Narigudo.

— Narigudo, pensa rápido!

Narigudo entendeu imediatamente. Com a patinha livre, ele virou o saleiro na língua do oponente, que chiou e encolheu como pele de sapo. A iguana grunhiu de dor, recolhendo a língua e libertando Narigudo consequentemente.

Um shuriken passou assobiando acima da cabeça de Pines, fazendo-o voltar à realidade. Quando voltou a atenção à sua briga, já era tarde demais: uma lâmina passou voando, rasgando um talho na sua mão. Dipper gritou de dor e espanto e derrubou a espada, que desapareceu numa nuvem de fumaça. O crocodilo dera um impulso sobre uma mesa e agarrou as suas pernas. Dipper foi ao chão, com um peso hercúleo e um bafo de pântano acima dele. Crocodilo segurou o garoto pela ponta dos dedos, bloqueando o fluxo energético da sua magia. Crocodilo mostrou sua coleção de presas amareladas: — Te peguei.

Dipper fez seu corpo derreter e afundar para dentro da terra. O crocodilo ficou confuso, encarando o chão vazio. Dipper reapareceu num piscar de olhos nas costas do adversário, sua perna desenhou um arco perfeito no ar e seu pé acertou em cheio a têmpora do crocodilo, que tombou com o golpe.

Eu te peguei, vadia.

Um boom! sacudiu o solo e todo o prédio. Dipper correu o olhar ao redor do pátio. Bauer tinha ganhado o cabo de guerra e arremessado o gorila contra uma parede. O adversário tinha atravessado o concreto. A bengala de Bill passou voando diante do seu campo de visão. A doninha tinha conseguido desarmar Cipher com uma cambalhota. Dipper teleguiou a bengala, que voltou para as mãos do loiro como um imã. Ele e Dipper trocaram olhares. O lilás de Bill cintilou ao encontrar o castanho de Dipper, e Dipper conseguiu traduzir o olhar com perfeição, ouvindo a voz de Cipher na sua cabeça: Obrigado, carneirinho.

No que a doninha tentou investir novamente. Bill se esquivou, passando a bengala para frente e imobilizando o oponente numa chave-de-bengala. O doninha se debatia.

Florette tinha usado a cabeça e manipulado a hiena para que acertasse sua flecha nas cordas de aço que sustentavam a clarabóia. A treliça despencou com ecoar metálico e prendeu a hiena sob ferragens.

Toda a cena enviou um calor ao coração de Dipper que, mesmo no olho do furação, sorriu. “Ei, nós podemos fazer isso”, realizou no que sua musculatura relaxava e uma leveza se instalava nos seus pulmões, a magia borbulhando com euforia dentro das suas veias. “Posso ser só um, mas não estou sozinho. Eu posso derrotar a Guarda!

De repente, plasma esverdeado o circulou por todos os lados, prendendo-o numa gaiola de energia.

“O que está acontecendo?”

— Seth me falou que você tentaria usar magia. — O crocodilo levantava-se ao lado, recuperado do golpe, segurando uma espécie de controle remoto com a insígnia da Guarda. — Achou que ele me enviaria pra cá despreparado?

— Me tire daqui. Agora! — vociferou Pines.

— Num momento. Vamos só ver se seus amiguinhos conseguem sobreviver sem o apelão do bando deles.

Dipper tentou usar seus poderes. Raios de energia saíam da ponta dos seus dedos, mas eram absorvidos pelo plasma das paredes da jaula. Estava limitado a um espaço de 4x4.

A iguana, que havia se recuperado, afixou a ponta grudenta de sua língua num carretel, que usou para derrubar Narigudo. A hiena, aproveitando-se do fato de que Florette voejava alegra achando que tinha o jogo comprado, arrancou um espinho das costas e, mesmo sob o gradil, arremessou-o como um dardo; o espinho perfurou a asa de libélula de Florette, talhando uma abertura enorme que a fez perder o equilíbrio e espiralar até o chão. O gorila tinha saído dos escombros e puxado Bauer pela perna, rapidamente o imobilizou com uma chave de perna. Dipper tentou avisar, socando as grades de plasma aos gritos, mas foi tarde demais. A doninha mordeu a mão de Cipher que segurava a bengala e conseguiu se desvencilhar. Ágil nas quatro patas, a doninha enroscou-se nas pernas de Bill, fazendo-o tombar para trás. A doninha pegou a bengala, colocando a sua ponta afiada contra o pescoço de Bill. Bill ergueu ambas as mãos, num gesto de redenção.

— Como imaginei — disse o Crocodilo, fazendo tsc tsc e rodando a caixa de Mason. — A Rebelião ainda é um castelo de cartas — afundou seus olhos ofídicos nos de Dipper —: tire uma e todo o resto desmorona.

Bill e os outros foram feitos de refém, arrastados até o meio do pátio, defronte para Dipper, alinhados de joelhos.

— Vou fazer isso bem simples — anunciou o crocodilo, apanhando uma lasca afiada de vidro do chão. — Conte-me onde o resto da Rebelião está e eles serão libertos com vida.

— Nunca! — rugiu Dipper.

Crocodilo suspirou. — Você escolheu o caminho mais complicado. Você ainda deve achar que estou brincando. Tudo bem, vamos resolver isso.

E, com isso, Crocodilo traçou a ponta do vidro contra o pescoço de Narigudo. Sangue esguichou contra a gaiola de Dipper, e o garoto sentiu suas pernas amolecerem, como se tivessem virado argila. O tamanduá se debateu pelo chão de areia, desesperado por se agarrar a qualquer resquício de vida. Ele agonizou durante os dois minutos mais longos da vida de Pines, até parar de convulsionar e se tornar um pedaço de carne sem vida.

Os gritos de Bauer e Florette foram tão altos que Dipper perdeu a audição por um segundo. Seus ouvidos eram pura estática, sua visão escureceu e sua pele ficou gelada.

— Você tem mais três chances — disse Crocodilo, referindo-se aos outros quatro membros; a voz dele saía abafada nos tímpanos de Dipper, como se ele estivesse falando debaixo d`água.

Dipper era incapaz de falar. Estava completamente petrificado. Seus olhos não saiam do corpo de Narigudo, parafusados no talho do seu pescoço e nos olhos esbranquiçados.

— Ficar calado não conta como uma resposta — disse Crocodilo. E sua lâmina improvisada cortou o pescoço de Florette. — Duas chances.

Dipper desviou o olhar, mas não adiantou, a cena continuou presa na sua mente como um disco de vinil agarrado: o vidro refletindo no sol um segundo antes de se encher de sangue, a face de Florette indo de dor à inexpressão num piscar de olhos, os olhos revirando pra dentro do crânio, o corpo dando três espasmos no chão antes de parar de se mover completamente. Vidro com sol, sangue, dor e inexpressão, olhos revirados, três batidas no chão. Sol, sangue, viva, morta, espasmos, um, dois, três.

Respire, Mason!, fazia tempos em que ele não ouvia o seu reflexo de lutar ou fugir falar tão alto assim, como a voz de uma segunda pessoa. A última vez foi quando ele quase se afogou numa aula de natação no Ensino Fundamental. Ele se sentia do mesmo jeito agora, mesmo em terra firme.

Teve um pique de lucidez quando o crocodilo passou por cima do corpo de Florette e se aproximou do próximo da fila.

Bill Cipher.

Dipper finalmente conseguiu engolir a pedra que estava na sua garganta e voltou a si com uma tragada tão violenta de ar que feriu os seus pulmões.

Uma outra voz que ele não ouvia a muito tempo também fez um retorno. Auto-depreciativa. Por algum motivo, essa soava parecida com Time Baby.

“Isso é tudo culpa sua, sabia? Nada disso teria acontecido se você simplesmente tivesse deixado suas paixonites pra lá. Todos estão morrendo e é culpa sua.”

Ele fechou os olhos e dentro das suas pálpebras o corpo de Florette despencou na areia pela enésima vez.

“Bill vai morrer. Ford vai morrer. Mabel vai morrer. E você vai ficar sozinho do jeito que merece. Porque é tudo culpa sua e você mereceu.”

Nesse momento, Dipper teve um sensação que ele já não tinha há meses. A sensação de querer viver em outra realidade, em outro tempo. Por um segundo, ele desejou ainda poder usar uma fita métrica e alterar a linha temporal mais uma vez, ter voltado até 2012 e nunca nem ter posto os pés em Gravity Falls! “Minha vida seria perfeita. Se eu nunca tivesse me envolvido com nada. Nem com Stanford, nem com Bill, nem com a cidade. Melhor ainda, se eu tivesse impedido meus pais de se conhecerem. Se eu não tivesse nascido…”

Crocodilo estava certo. A Rebelião é uma causa perdida, sem alguém como Dipper não seria nada. “Onde eu estava com a cabeça? Onde eu pensei que poderia vencer uma guerra?”

— Não conte para eles onde a carruagem está! — rugiu Bauer, invadindo a quietude ansiosa da sua mente.

“Se eu não dedurar todo mundo, Bill morre.”

Nesse momento reabriu os olhos. Queria admirar Bill pela última vez, nem que aquela fosse a pior memória da sua vida. E Dipper inicialmente achou que tinha uma alucinação, pois Bill estava sorrindo para ele; seu sorriso de canto de rosto, metido mesmo sob o hematoma de um murro que cobria seus lábios.

“Como você consegue sorrir?”, pensou Dipper.

“Porque mesmo se eu morresse agora, eu iria sabendo que disse ‘eu te amo’ para você e Stanford”, pensou Bill de volta. “Estivemos juntos, e isso foi tudo que eu quis.”

— O quê? — Ele conseguira voltar a falar em voz alta e não era pra menos.

“Eu li os pensamentos de Bill? Ele viu os meus? Nós…” Sua marca de nascença formigou sob sua testa, enchendo-se de azul neon. “Nós coexistimos?”

Então veio outra voz telepática de Bill. Era uma frase que ele já havia dito antes, e que não podia parar de ser repetida aparentemente: “Você sempre dá conta. Eu já te coloquei numa situação em que você não pudesse ser capaz de controlar?”

Então a voz de outra pessoa querida invadiu sua mente. “Eu sempre estarei com você. Até o fim do mundo.”

Ele não estava sozinho, nunca esteve e nunca estaria.

Eles eram partes complementares, prole da mesma energia, da mesma paixão que gerou vida e caos através das dimensões, através do tempo.

— Cinco segundos para responder — disse crocodilo.

Cuidadosamente, Dipper se botou de joelhos dentro da sua gaiola e respirou fundo, realizando o truque que Thomas havia lhe ensinado. O que ele havia aprendido na sua primeira aula. Ao fechar os olhos, ele passou a continuar a ver o mundo exterior, entretanto com a forma da sua magia tomando conta de tudo.

— Quatro.

Então, ele percebeu: a sua magia não estava unicamente restrita naquela gaiola.

Havia um fio de energia azul – fino e vibrante, como a corda de um violino bem afinado – conectando ele a Bill, e o fio conseguia passar por debaixo da armação da jaula. Enrolado e torto, mas nunca rompido.

A conexão Índigo.

— Três.

Havia, inclusive, outros dois fios de luz. Um saindo de Dipper e outro de Bill. Ambos os fios convergiam para além do deserto, formando um triângulo com um vértice que se estica para além do horizonte, apontando para o norte como a agulha de uma bússola. Era a outra pessoa conectada a Bill e a Dipper, o primeiro Índigo que Cipher criou.

Ford.

Dipper se lembrou das raízes de luz que ele criou nas paredes do Refúgio ao se lembrar de Stanford, logo após ter a visão de Bill no Exílio, e como a memória de um trouxe a do outro.

“Estamos conectados mesmo longe.”

— Dois.

Energizado até o último fio de cabelo, Dipper esticou seu braço e seu dedo indicador tocou a linha. Feito um fio de cobre, a energia azul cedeu do corpo de Mason e foi conduzida pela linha, para fora da caixa, sendo transportada… para Bill.

— Diga adeus para o loirinho.

A energia alcançou Bill, e, quando o tocou, fez seu corpo se encher de aura azul.

Crocodilo recuou.

Quando Bill reabriu os olhos, suas pupilas estavam azuis, fluorescentes, lotadas de poder.

Todos do bando recuaram.

Bill se levantou, mas não ficando de pé, e sim flutuando a alguns palmos do chão.

— O único que perturba o meu namorado sou eu.

Uma onda de energia violenta explodiu de Bill e varreu os membros da gangue para longe.

— Eu vou reverter cada furo do rosto de vocês — disse Bill, sua voz mesclada em timbres graves e normais, reverberando pelo pátio feito um megafone.

Ao estalar os dedos, o gorila, a doninha, a hiena e a iguana caíram, rolando desesperados pelo chão, sem ar. O lugar de suas bocas tinha sido invertido pelo das orelhas, os olhos saíam espremidos pelas narinas.

Em seguida, Bill se virou para o crocodilo, que se espremia num canto.

— E quanto a você…! — rugiu Bill.

O crocodilo arremessou um shuriken. Mas, ao entrar em contato com a aura mágica de Bill, o shuriken se desintegrou como papel numa chama.

Bill levantou Crocodilo no ar com o seu poder. Em seguida, Bill deu um urro tão forte que a luz azul cresceu e jogou tudo para longe. As mesas foram levadas embora, Bauer saiu voando, as paredes, o pátio, tudo. O impacto do poder destruiu a gaiola de Dipper e ele saiu da sua prisão, flutuando depressa até o troll e cobrindo os dois sob uma barreira de plasma. Ficaram encolhidos ali, vendo destroços, ferragens e poeira cobrindo a sua cobertura.

Até que, enfim, a ventania parou, e a poeira foi descendo.

O átrio havia sido reduzido a apenas uma cratera no chão, no centro dela, em meio às rachaduras, estava Bill, em pé e intacto. Na sua frente havia apenas uma massa gosmenta e preta no lugar onde costumava estar Crocodilo.

Então, Bill despencou.

— Bill! — gritou Dipper, desativando o campo de defesa e correndo atrás.

Ajoelhou-se ao lado do corpo do loiro. Mesmo que claramente enfraquecido, Bill fazia força para manter um sorrisinho de canto de rosto, vitorioso e debochado.

Phew! Eu já tinha esquecido o quanto essa coisa sugas as minhas energias.

— Charlie… — Dipper suspirou. Colocou a mão sobre a testa do loiro. — Você deve estar se sentindo péssimo. Desculpe violar o seu corpo assim. Não tive outra escolha.

— Tá tudo bem, Pinheirinho, você fez o que tinha que fazer. — Bill sentou com o torso pra cima, grunhindo de dor a cada micromovimento. — Mas, por favor, vamos combinar de fazer isso só quando for totalmente necessário.

— C-Claro!

— Como Bauer está? — Chiper arfou.

Dipper olhou para trás. Em meio aos escombros, Bauer soluçava de joelhos, pálido de tão coberto com poeira de concreto.

— Traumatizado — Dipper sussurrou de volta.

— Pergunta idiota. — Bill revirou os olhos.

Dipper deu o seu corpo para Bill se apoiar. Sentado atrás, Dipper passou o braço por debaixo do de Bill, cruzando o seu peito, e outro em volta da sua cintura, protegendo-o como um cinto de segurança. Depositou um beijo no seu ombro exposto de Bill (a ombreira havia sido arrancada, o fraque clássico estava aos frangalhos).

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O sol do Mindscape continuava brilhando. Agora tinha descido um pouco por trás de uma duna. A luz havia ficado rasteira, pintando as sombras de Dipper e Bill longas e bem definidas sobre o chão. Mas eles estavam distraídos demais para perceber que uma terceira sombra crescia, vindo do lugar onde Crocodilo havia explodido.

Uma garra cadavérica se enroscou no pescoço de Bill e o puxou para fora do alcance de Dipper. Crocodilo apareceu com o rosto inteiramente queimado, a pele completamente preta e gosmenta em meio ao processo de regeneração.

Ágil, Crocodilo conseguiu colocar a cabeça de Bill inteira na sua boca.

Dipper não teve nem como agir. Ele estava drenado demais para que os seus poderes despertassem de novo apenas pelo instinto.

Quando Crocodilo estava prestes a fechar as suas mandíbulas no pescoço de Cipher, pow! o que restara de Crocodilo foi pelos ares. Vísceras por toda a parte.

Crocodilo tinha recebido o tiro por trás. O efeito da arma era idêntico ao das armas que a Guarda usava.

“Um soldado!”, urgiu Dipper, olhando para os lados. Não sabia o que era pior: Morrer nas bocas de um crocodilo ou nas mãos do Governo.

Então, uma voz veio detrás de uma nuvem de areia:

Jesus, Pines!

“Eu conheço essa voz de biscate.”

Uma menina usando um traje militar do Mindscape entrou em foco. Ela tinha um capacete que escondia seu rosto, e ela ainda brandia a arma que desintegrara Crocodilo.

— Pacífica?!

— Sei que eu poderia ter pego um local de encontro menos brega do que esse, mas também não precisava desabar com ele, né? — Abaixando a guarda, Pacífica abriu a viseira. Seu rosto sisudo apareceu na moldura do capacete. — Vocês sabem mesmo como dar uma festa.

Dipper se sentiu um personagem de cartoon quando, involuntariamente, levantou a mão para fechar o próprio queixo.

— E aí? — Pacífica bufou, soprando pra fora do rosto uma mecha loira que pendia frouxa do capacete. — Conto a minha fofoca ou você prefere começar com a sua?

***

Dipper e Cipher ajudaram Bauer a recolher o que restara dos corpos de Florette e Narigudo. Mais tarde, enterraram os dois numa cova rasa a alguns quilômetros do vilarejo. Pacífica tinha andado com eles até o esconderijo da carruagem, onde entrara para se apresentar e conversar com Thomas.

Dipper ficou no deserto com Bauer, consolando-o por uma hora e meia.

Voltaram para o interior da carruagem e Bauer disse que estava cansado e que iria cochilar. Sozinho, Dipper foi até a sala principal da carruagem. Ao redor de uma mesa de centro, Pacífica falava com Tom, apontando pontos e círculos em mapas e planilhas. Tom ouvia tudo, seus olhos seguindo cada movimento de Pacífica, e ele assentia toda vez que ela terminava uma frase.

Dipper estava na metade do caminho até o bar quanto Tom assobiou para ele.

— Dipper, venha aqui. Vai querer ouvir isso.

Dipper desabou num assento ao lado deles com um suspiro pesado. — Meu deus, eu preciso fumar. — Ele estalou os dedos, materializando um cigarro no ar. Pacífica parou de falar, os dois o encararam. Dipper olhou para Pacífica de soslaio, enquanto conjurava uma chama azul na ponta do dedo. — Quer um também?

Pacífica torceu o nariz. — Parei de fumar.

Dipper riu e olhou para Tom. — Acredita que ela foi quem ofereceu meu primeiro cigarro? E agora olha pra minha cara e diz “parei de fumar”.

— A sua amiga, apesar de imperfeita, acaba de nos dar uma vantagem importante — disse Tom.

— E o que Pacífica Northwest tem de tão importante pra falar nessa história toda?

Pacífica deu um sorrisinho perverso para Dipper.

— Eu sei onde Mabel e Ford estão.

— Como você sabe de uma coisa dessas? Estivemos tentando encontrar o Nightmare Realm há um mês.

— Dãã! E como você acha que cheguei no Mindscape, Pines? O portal. Seu tio deixou um legado na Terra que foi extremamente útil pra mim. Incluindo… — ela tirou da cintura um dispositivo que parecia um tablet, com tela holográfica — isto.

Um mapa tridimensional se abriu diante deles. Um ícone do planeta se levantou feito as páginas de um livro pop-up. Num pin, estavam os nomes de cada um deles.

— Ford fez um satélite do Multiverso, e permitiu que ele localizasse smart phones. Eles, ou pelo menos os smart phones deles, estão bem aqui. — Maximizou a tela. — Nightmare Realm.

Dipper deitou o cigarro na cristaleira ao lado e se endireitou na cadeira.

— Eu cheguei a ir nessa localização primeiro, mas não há nada lá a não ser um deserto vazio.

— É uma miragem feita de magia — Bill Cipher entrou em cena, caminhando do seu aposento, ainda coberto de fuligem, assim como Dipper. — Time Baby gosta de deixar a entrada do Nightmare Realm camuflada. Não será problema para nós, Dipper tem os poderes dele.

— E como você sabe disso? — perguntou Pacifica a Bill.

— Eu era braço direito do Time Baby. Ele me controlava.

Pacífica travou, pensando em silêncio.

— Bill era um escravo, uma peça de Time Baby — Dipper explicou com mais especificação. — Acho que isso vai tirar a sua desconfiança.

Você confia nele? — Pacífica se virou para Dipper, olhos semicerrados.

Dipper encarou Bill ao seu lado. Involuntariamente, os dois sorriram um para o outro.

— Com toda a minha vida — respondeu. — Bill era um cordeiro em pele de lobo.

— Então eu também confio — disse Pacífica e voltou a se encostar na poltrona. — Isso não é tudo. Tenho tecnologia e artilharia da Guarda que podem ajudar vocês.

Dipper deu um suspiro pesado.

— Falando nisso. — Dipper tirou a clepsidra e o tratado de guerra da pochete, colocando por cima da papelada de Pacífica.

Pacífica se curvou para mais perto. — O que é isso?

— O tratado de guerra — murmurou Thomas, com a voz fraca. — Quando conseguiu isso?

— Hoje cedo, quando você foi me acordar. Time Baby me deu seis horas para pensar sobre. — Tocou o relógio d’água, o cone estava quase totalmente cheio. — E pelo visto só faltam alguns minutos.

Em seguida, ele respirou com calma, processando tudo que iria declarar.

— As coisas que eu vivi nesse lugar, inclusive o que aconteceu hoje, eu não quero que volte a se repetir nunca mais. E Time Baby não vai desistir de me caçar pelos meus poderes, mesmo comigo fugindo pra outra dimensão. Pra mim a escolha é simples: ou isso tem um fim agora, ou nunca mais terá.

— Prefere morrer defendendo o que acredita do que morrer fugindo? — perguntou Tom.

Dipper pegou na mão solta de Bill. — Totalmente. O que vocês acham?

Todos assentiram, inclusive Bill.

Dipper então pegou a caneta de pena e na linha fina assinou: Mason Pines.

Assim que terminou, o papel, caneta e relógio desapareceram no ar, deixando um rastro azul de magia. Havia sido retornado ao remetente.

— Agora só falta riscar uma coisinha da nossa lista antes de irmos quebrar a cara de Time Baby — disse Bill, olhando o mapa do Mindscape.

— Tem certeza mesmo de eu posso fazer isso? — perguntou Dipper.

Bill entrelaçou seus dedos nos dele. — Aquilo era só eu preocupado com sua integridade. Mas tem razão: você não está sozinho. — Bill se aproximou, depositando um beijo na bochecha de Dipper e sussurrando em seu ouvido: — E quando nos unirmos com Stanford, ficaremos ainda mais fortes.

A marca de nascença formigou. E Dipper sentiu o cheiro da colônia de baunilha de Stanford, como se ele tivesse se incorporado ali em mero pensamento. Ele devolveu o beijo no canto da boca de Cipher.

— Tom, por favor, peça à carruagem para refazer o trajeto. — Dipper ficou de pé. “Sim, Time Baby. Eu estou pronto para uma guerra.” — Vamos recuperar Stanford daquela bolha agora.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.