Never knew I needed
De volta das cinzas
Hiro subiu as escadas depois de ajudar a Tia Cass a terminar de limpar as mesas do café. Antes mesmo de abrir a porta ele podia ouvir o zunido das máquinas e o som da sola emborrachada de Baymax contra o piso de madeira do quarto. Ele abriu a porta suavemente, evitando fazer barulho e entrou. Baymax estava de costas para ele, mas virou-se assim que Hiro entrou no quarto. Ele não sabia como o robô conseguia, ele não tinha dado nem um pio! Mas não importava. No momento estava mais interessado no que Baymax estava fazendo.
– Olá Hiro. - O robô cumprimentou.
– Oi Baymax. - Ele respondeu. - O que é isso? - ele perguntou, tentando manter a voz baixa.
Baymax, no entanto não teve o mesmo cuidado.
– Uma solução de morfina diluída em soro fisiológico. - o robô explicou.
– Shhhhh!!! - Hiro o repreendeu. - Você vai acordar o...
– Já estou acordado, Hiro. - respondeu uma voz vinda de trás da divisória.
Hiro sorriu. Correu até ela e a abriu bruscamente.
– Tadashi!
O que antes era o espaço de Tadashi agora estava entulhado de máquinas hospitalares, mal deixando espaço para a pequena cama onde o agora frágil corpo de Tadashi repousava. Mais parecia uma enfermaria do que um quarto.
Seis meses após a morte de Tadashi, enquanto Hiro e a Tia Cass assistiam a um filme, o telefone tocou. Após alguns minutos de conversa, o rosto dela empalideceu e ela começou a chorar. Anotou um endereço em um papel, com as mãos tremendo e nervosismo evidente. Quando bateu o telefone no gancho, Hiro nem mesmo teve tempo de perguntar o que houve. Ela o puxou em direção ao carro e dirigiu metade da cidade até chegar a um hospital do qual Hiro nunca tinha ouvido falar.
Lá, uma enfermeira explicou o que tinha acontecido:
– Durante o incêndio na Universidade, os hospitais mais próximos lotaram e tiveram que remanejar os feridos para cá. As roupas dele estavam queimadas, não havia nenhum documento e ele chegou em coma. Acordou hoje de manhã, perguntando pela família. Assim o identificamos e conseguimos entrar em contato. - ela parou, apontando para um quarto.
Cass e Hiro se entreolharam, apreensivos, com medo de deixarem a esperança crescer de novo só para perdê-la um segundo depois. Mas quando Cass entrou no quarto, uma figura debilitada sorriu para ela e disse com uma voz cansada, mas inconfundível.
– Oi tia Cass. - Tadashi cumprimentou.
Ela chorou, e correu até ele, mas não o abraçou. Tadashi estava coberto de bandagens que escondiam as terríveis queimaduras. Seu olho direito estava fechado e a pele desse lado do rosto estava rosada e brilhante por causa do fogo, embora o outro lado parecesse tão normal quanto era antes.
Durante as horas que se passaram, Hiro ficou com o irmão, incapaz de contar todas as coisas que aconteceram enquanto ele estava em coma, incapaz de acreditar que Tadashi estava ali, vivo, diante dele. A tia Cass assinava a papelada de transferência, assegurando que dispunha de meios suficientes para que Tadashi fosse tratado em casa.
– Ele poderá precisar dos cuidados de um enfermeiro em tempo integral. - Advertiu a enfermeira.
Cass sorriu.
– Nós podemos providenciar isso. - ela confirmou.
Na mesma semana, o quarto fora transformado para receber Tadashi. Mais alguns meses e ele poderia sair de novo, já que seu tratamento com Baymax estava dando bons resultados.
Ele inspirou fundo, voltando à realidade.
Por baixo das bandagens Hiro viu um sorriso brilhante. Ele se esforçou para manter uma expressão indiferente e encarar uma das poucas partes que saíra livre das chamas. Hiro fixou seu olhar no único olho bom do irmão: o esquerdo.
– Como você está? - Hiro perguntou, hesitante.
– Com dor. - Tadashi disse, simplesmente.
– Numa escala de zero a dez... - Baymax recomeçou a velha ladainha de sempre, mas Tadashi deu uma risada sem humor.
– Seis. - depois voltou-se para Hiro, enquanto o robô pendurava uma bolsa com o soro e a morfina, preparando-se para injetar em um acesso venoso de Tadashi.
– Desculpe. - Hiro disse, um pouco constrangido. - Eu não devia ter perguntado, quero dizer...
– Ao que parece também estou pelado por baixo desses lençóis. E está um pouco frio se quer saber.
Hiro sorriu e revirou os olhos. Baymax surgiu de novo com uma bandeja repleta de estranhos instrumentos cirúrgicos. Hiro franziu a testa para ele.
– Está tudo bem, Hiro. Está na hora de trocar meu curativo. - Tadashi explicou, observando o irmão mais novo com uma expressão cautelosa, antes de acrescentar. - Não precisa ficar, se não quiser.
Hiro olhou para as bandagens que envolviam quase todo o torso nu do irmão, lembrando-se da descrição fria e analítica que Baymax fizera do tratamento. Desbridamento era como o chamava. Basicamente consistia em raspar com as lâminas cirúrgicas todo o tecido que estava inútil para estimular que a nova pele crescesse por baixo. Claro que não era um procedimento agradável para o paciente. Por isso a morfina. Mas mesmo assim...
– Eu vou ficar. - Hiro encarou o irmão. - Tenho uma coisa para te contar.
Tadashi assentiu. Queria poupar Hiro, mas estava visivelmente mais relaxado por ter algo com que se distrair enquanto Baymax fizesse todo o procedimento.
E Hiro falou, contando tudo do início, fazendo pausas de vez em quando se ouvia Tadashi gemer ou xingar baixinho toda vez que Baymax retirava o curativo antigo, que parecia estar colado à pele. Mas tão logo parava, Tadashi o repreendia.
– Não pare. - seu irmão mais velho dizia entredentes. - Não pare, continue contando. O que mais ela disse? O que mais...
Ele fez uma pausa, soltando um silvo baixo quando a lâmina de Baymax tocou a pele.
– Isso não está certo. - Hiro protestou. - Baymax, você tem que colocar mais morfina, ele está...
– Não. - Tadashi disse, e sua voz era quase um sussurro. - Se ele me der mais eu vou dormir. Não quero dormir.
– Mas... - Hiro abriu a boca, silenciando-se quando Tadashi o interrompeu.
– Só continue contando. Isso ajuda.O que mais a diretora disse?
Hiro continuou narrando os detalhes de seu dia, cerrando os dentes ao ver como seu irmão tentava conter as respirações entrecortadas, os gemidos de dor e os espasmos para concentrar-se nele enquanto Baymax trabalhava silenciosamente.
Quando o robô repôs a última das bandagens, Tadashi jogou a cabeça para trás e inspirou profundamente, fechando o olho. Ficou assim por alguns minutos, o suficiente para que Hiro pensasse que ele havia cedido para a exaustão e a dor. Ele se ergueu da cadeira onde estivera sentado para sair, mas Tadashi o fez sentar outra vez antes que ele se levantasse completamente.
– Então... Uma garota, hã?
Hiro franziu a testa, tentando identificar algo no tom do irmão. Havia alguma nota, alguma coisa que não estava ali antes, como uma mensagem escondida. Então Tadashi riu escandalosamente e Hiro balançou a cabeça.
– Essa não... - o garoto enterrou o rosto na palma da mão.
– Essa sim! - Tadashi continuou. - Já estava na hora de você arrumar uma namoradinha da sua idade.
– Eu nem a conheço! - Hiro rugiu. - Eu sabia que não devia ter te contado nada. Como você pode achar que eu... Quando eu nem mesmo... Agora você vai ficar pensando... - ele gemeu, frustrado.
– Quando vai trazer a garota aqui?
– Trazer? Você não pode estar falando sério.
Tadashi o encarou, uma expressão que tentava parecer séria no rosto levemente desfigurado.
Hiro jogou as mãos para o alto.
– Por que é que eu ainda tento? - e se virou para ir embora.
Antes de fechar a divisória, a voz de Tadashi o atingiu.
– Pode fugir se quiser, mas sabe que eu tenho razão, irmãozinho.
______
Tip desfez a última de suas malas, ajeitando as roupas nas gavetas da cômoda. Não sabia o que pensar de seu novo quarto. O apartamento elegante, todo mobiliado não parecia muito com o que ela e sua mãe estavam acostumadas, apesar de ser duas vezes maior. Tinha uma decoração tecnológica e moderna, em tons de prata, cinza e aço inoxidável por todo canto, claro. Seu quarto fazia mais o estilo romântico e provençal. Uma cama branca com a cabeceira cheia de entalhes de flores, um guarda roupa enorme combinando, e uma penteadeira.
Um papel de parede azul claro com motivos florais cobria tudo. Tip franziu a testa. Ela não sabia quem tinha mobiliado aquilo tudo, mas com certeza aquela pessoa não a conhecia.
Ela se virou para olhar pela janela, absorvendo a paisagem no céu noturno. Tudo era luz lá fora, e os arranha céus pareciam competir para saber qual conseguia ser mais alto. Tip nem ouviu a mãe entrar, mas não pulou de susto quando sentiu sua mão em seu ombro.
– Apreciando a vista? - Perguntou Lucy.
– É tudo tão imenso... Bem diferente de... Bom... - Tip deu ombros, sem vontade de terminar.
– Eu sei. - Lucy confirmou. - Ainda não se parece com a nossa casa, não é? - Ela puxou Tip pelo ombro, fazendo-a virar para si. - Mas deixa eu te contar um segredo?
Tip a olhou nos olhos.
– Onde você estiver, lá será minha casa. Não importa onde isso seja.
Tip abraçou a mãe.
– Você é a minha casa também mãe. Não importa onde. - Um som de papel amassado e Tip se afastou, confusa.
–Quase me esqueci.- Lucy tirou um envelope de dentro do blazer. - É o seu horário de aulas. Você vai estudar de manhã e vai ajudar no laboratório à tarde, quatro vezes por semana.
Tip assentiu. Lucy tomou as mãos dela nas suas, puxando-a para a cama.
– Eu sei que tudo parece novo e assustador agora. Mas as coisas vão se ajeitando aos poucos. Confie em mim. Você fez a escolha certa.
– Eu sei mãe. Vou ficar bem. - Tip assegurou.
Mas a verdade é que não sabia realmente. E estava com medo.
Fale com o autor