NeoSquad

O Palácio da Ordem


Doc não conseguiu aguentar o súbito impacto de ser transportado numa velocidade pouco superior à do som. Se o portal não tivesse transformado eles em seres incorpóreos até que a viagem terminasse, ele suspeitava que nenhum membro daquele reduzido grupo chegaria vivo no Reino Celestial de Khalmyr.

Alguns segundos após aterrissarem de uma altura de um metro acima do solo, uma forte ânsia de vômito pegou Aegis de surpresa antes que ele pudesse se levantar e ele se forçou a segurar todo o líquido que subia por sua garganta. Ele não era o único que havia ficado enjoado, notara.

– Esqueci de avisar que essa máquina não é como as portas dimensionais que você atravessa andando – explicou Doc, ofegando e tremendo.

– Tudo bem, já me recuperei – levantou-se, juntando forças para ficar de pé novamente.

Shadow não havia sofrido o impacto da viagem e usou o tempo que tinha enquanto os dois amigos voltavam ao normal para observar a área ao seu redor. Eles estavam dentro de uma construção grande e trabalhada. Um castelo, por assim dizer, mas não um comum, afinal não era esperado encontrar coisas mundanas nos paraísos de Arton.

O chão era de calcário perfeitamente branco e polido, com fios de ouro seguindo paralelamente ao tapete de camurça vermelho que passava exatamente no meio do corredor se nenhum rasgo ou dobra. As paredes eram compostas por blocos quadrados de cinco por cinco metros feitos do mesmo material que o chão, mas no lugar dos fios de ouro, encontravam se delicadas espirais de prata que podiam ser vistas apenas de perto. Entre esses blocos, pilares cilíndricos de ônix negra com vincos verticais distribuídos igualmente em toda a circunferência eram apoiadas em bases quadradas de quartzo incrivelmente transparentes e cravejadas com linhas de obsidiana.

A beleza daqueles corredores simétricos hipnotizava Shadow e só quando percebeu isso, ele foi capaz de voltar a si rápido o suficiente para escutar o resumo da rápida explicação de Doc sobre o portal de frequências.

– Aquela máquina transporta nossos corpos na vertical, mas nos torna incorpóreos para que possamos atravessar a barreira mágica que a essência da Ordem e da Justiça criaram para proteger este reino celestial.

– Tudo bem, mas aonde estamos? – Perguntou Aegis.

– Se as contas que eu fiz quando posicionei ela no terreno de Arton estiverem corretas, estamos em um dos corredores de acesso do Palácio da Ordem. Mais especificamente, entre a antessala, o salão principal e o arsenal.

Shadow olhou em volta e percebeu que o corredor terminava em uma bifurcação em formato de um T.

– Palácio da Ordem – repetiu Aegis –. Nunca estive aqui, mas já ouvi várias histórias. Dizem que tudo no reino de Khalmyr é controlado e simétrico. Tudo é feito em pares, porque ele prefere assim. Até mesmo a chuva aqui tem horário certo para cair.

– Se o lugar é realmente como você diz, Aegis, então o Doc errou as contas dele – disse Shadow.

– Como assim? – Doc quis saber – Não é possível que eu tenha errado cálculos tão simples.

– Olhe bem para esse lugar, Doc.

Era verdade. O tapete vermelho estendido que parecia não ter fim estava perfeitamente no centro do corredor, mas não havia mais do que um tapete. Se a simetria fosse tão rígida, haveria um tapete exatamente igual preso ao teto, mas ao olhar para cima, Doc viu algo ainda pior. O teto era negro e feito do mesmo material que as pilastras de sustentação. Nas paredes, as espirais de fios prateados pareciam não seguir nenhum padrão e as bases de quartzo eram cravejadas de obsidiana que apontavam para quatro ou cinco direções diferentes.

– Até o número de vincos nas pilastras é ímpar – apontou Shadow.

– Há algo de errado aqui, precisamos falar com o deus.

– Precisamos mesmo. Onde ele está? – Perguntou Aegis.

– Não sei dizer ao certo, mas a sala do deus só era acessível pelo salão principal. Se a planta do castelo foi alterada, não tenho como saber.

Nenhuma palavra além disso foi dita. Eles seguiram os corredores vazios por alguns minutos até o salão principal. Enquanto andavam, não podiam deixar de observar as coisas ao redor. Os fios de prata na parede alteravam rudemente de espessura, dependendo dos blocos e Shadow notou que em algumas seções da parede, as espirais giravam para o lado contrário. No chão, haviam pedaços onde o dourado dos ornamentos não era visto e em um ponto do trajeto, Doc pôde achar uma mancha roxa no tapete.

Quanto mais próximos do fim do trajeto, menos ordem havia na decoração do local, mas a gota d’água foi a porta que dava acesso ao salão principal. O portão era feito com detalhes em relevo dourado sobre uma placa de ferro maciço, brilhante e pesado, mas uma grande parte dela havia se transmutado em uma simples construção de tábuas de madeira presas por barras de aço escurecido e enferrujado.

– Eu tinha quatro anos na última vez que vi madeira tão perto de mim – disse Doc.

Em certos pontos da porta, haviam buracos com tamanho suficiente para que uma cabeça humana inteira passasse. Por conta desses buracos, Shadow conseguiu ver que a sala, apesar de ampla, estava completamente vazia, com exceção de um único homem deitado de costas para o chão com os braços e pernas abertos e olhando para o teto. Não dava para ver seu rosto, mas a falta de movimentos e o modo como seu corpo estava jogado no chão da sala fez Shadow chegar a uma conclusão.

– Tem um cara morto lá dentro.

– O que? – Aegis saltou.

– Olhe aqui – disse Shadow, abrindo caminho para que Aegis olhasse pela mesma rachadura na madeira que ele havia usado para espiar.

– É verdade, mas ele não era para estar morto dessa forma. Não é permitido pegar em armas no Palácio da Ordem.

– Ou não era. – comentou Doc, parando de procurar um meio de abrir aquela porta pesada e olhando por um furo em uma parte de metal dela, procurando ver o corpo do homem. – Gente, ele não está morto. Olhem, ele acabou de levantar. Só não sei como ele fez isso tão rápido usando uma armadura tão pesada de metal e sem emitir nenhum barulho.

– Armadura de metal? – Shadow voltou o olho para a rachadura na madeira. – Esse cara ainda está caído e vestindo trapos aleatórios e coloridos. Muitas partes da roupa dele está rasgada, inclusive.

– Impossível – disse Doc, sem ousar tirar os olhos do homem vestido com uma armadura de metal dourado que se parecia muito com a de Kurt –, esse cara está até andando pela sala.

– Senhores – Aegis interrompeu –, acho que vocês estão vendo pessoas diferentes, mas a gente só vai descobrir realmente o que está acontecendo lá dentro depois que abrir essa porta.

– Tudo bem, mas ela é pesada demais. Como vamos fazer para abrir isso? Mandamos o Shadow usar o cutelo dele como abridor de latas? Ou usamos o meu disco que nem eu sei como funciona?

– Nossa, eu tinha esquecido que esse cutelo estava nas minhas costas – disse Shadow.

Não esquenta, eu também tinha esquecido.

– Disco? – Quis saber Aegis.

– Ah, acho que eu não te mostrei ele – disse Doc enquanto puxava o disco que estava preso numa alça específica para ele, do lado de dentro do jaleco do cientista.

Na verdade, eu acho que você não mostrou ele para ninguém.

– Mero detalhe, Narrador.

Aegis examinou o disco, mas não precisou de mais do que o ver na mão de seu parceiro para saber o que era.

– Crix. Isso facilita tudo! – Aegis olhou desconfiado para o cientista – Espera, ele não tinha sido roubado?

– Deve ter sido, porque pegamos essas armas de uns assassinos que enfrentamos – interrompeu Shadow, antes que Doc pudesse responder – e você sabe que esses caras adoram roubar quem eles matam.

– Faz sentido.

– Tá, mas você sabe pra que esse disco... Crix... Sabe pra que ele serve? – Doc perguntou.

– Não, você entendeu tudo errado. Crix não é o disco, mas sim o que está dentro dele. É um projeto de robótica muito importante e dado como revolucionário para o mundo da ciência, mas ele tem um poder quase inimaginável, segundo dizem. Por isso, o projeto foi salvo num nano chip que foi colocado no interior de uma arma letal com o poder de controlar o espaço-tempo e manipular as moléculas. Só que quase ninguém consegue usar, porque essa arma mata o portador se ele for uma “má pessoa”.

– Como ela sabe se o cara é mal ou não?

– Ela lê o DNA de todo mundo que encosta nela e decide se vai obedecer ou não. É um balanço entre leitura psicológica feita através de amostras de DNA, histórico no Helladarion que vai dizer que tipo de coisas essa já fez e o uso que a pessoa vai dar para arma no momento em que ela foi usada. Aí ela decide se vai obedecer, ignorar ou matar o portador.

– Se o balanço é feito só com esses três dados, deve ser fácil enganar a arma.

– Não. As pessoas que pensam assim têm esse raciocínio denunciado na análise mental que ela faz pelo DNA.

– Olha, eu não entendi nem metade do que vocês falaram – Shadow interrompeu –, mas o que ele disse é verdade. Você pode ter todo o poder que o mundo é capaz de dar para alguém, mas a sua mente vai continuar sendo a coisa mais difícil de se controlar.

Doc concordou em silêncio.

– Você disse que esse disco pode moldar o espaço-tempo. Então pode usar ele para abrir portais? – Shadow quis saber.

– Acho que consigo, mas essa porta a gente pode resolver de uma maneira bem mais legal.

Deu o disco para o doutor e pediu para que ele o encostasse no pesado portão de ferro e madeira. Depois pediu para que ele imaginasse o portão se dissolvendo em água. Doc fechou os olhos e imaginou, como se achasse que aquilo não daria em nada, mas como se tivesse lido sua mente, o disco exibiu uma pista lisa no lugar das lâminas em sua circunferência e começou a girar em torno de si cada vez mais rápido. Quanto mais alto era o barulho da rotação, mais Doc acreditava ser possível e quanto mais ele acreditava, mais rápido o disco girava, até que finalmente o pesado portal se dissolveu em água e molhou os pés deles.

– Olha! Bons amigos! – Disse o homem que se encontrava de pé, dentro da sala, vestindo uma armadura de metal dourado. – Faz tempo que não recebo visitas! Desejam alguma coisa? Temo não ter muito para lhes oferecer, mas farei o que estiver ao meu alcance.

O vocabulário do homem fez erguer uma sobrancelha nos três. Aquele cara havia vivido em Arton, mas há muito tempo e não havia retornado na morte de Ragnar. Para continuar nos reinos celestiais, mesmo depois da morte de Ragnar, ele devia ser alguém importante para algum outro deus. Provavelmente Khalmyr.

– Você é...?

– Ah, desculpe-me, esqueci de me apresentar. Eu sou Heliode, o campeão da luz.

– O último sumo-sacerdote de Khalmyr – esclareceu Aegis.

– Sim, isso mesmo! Fico estupefato por me conhecerem! Ah, quase me esqueci, meu amigo aqui é o Dimir.

Todos olharam em volta, procurando algum outro ser vivo além deles naquela sala. Shadow esperava que a pessoa a quem Heliode se referira fosse o homem que ele vira caído.

– Desculpe, mas eu não vejo mais ninguém além de... – Aegis interrompeu a si mesmo quando viu a expressão repentinamente alterada no rosto de Heliode. Ainda era o mesmo homem, mas agia completamente diferente.

– Mas que merda! Aquele senhor da purpurina adora vestir essa porra gelada e reluzente. Pelo menos dessa vez ele manteve meus panos por baixo. – Disse Heliode enquanto se despia da armadura e revelava os trapos que Shadow havia visto.

– Heliode? – Doc perguntou.

– Não me xingue, seu bosta! Sou Dimir, o meio lefeu. – Falou como se aquilo não representasse nada.

Há muitos anos atrás, enquanto a tormenta ainda era um problema em Arton, uma lenda surgiu de que um humano havia fodido com uma lefeu que havia tomado a pele de uma meio elfa para se camuflar entre as raças de Arton. A garota engravidou e descobriu que teria um filho no momento em que o homem jorrou nela. A lefeu estava tomada pelo torpor que sua raça jamais experimentara, então não pôde fazer nada, mas o homem cometeu o erro de cair no sono e assim que a face de Azgher anunciou que o dia seguinte estava começando, ela rompeu a pele de meio elfa para revelar-se o ser que era e matar o homem na própria cama enquanto ele ainda dormia. Os boatos continuaram dizendo que a curiosidade da lefeu em saber o que nasceria daquele ato abominável fez com que ela não matasse o feto que crescia dentro de si. Ao fim da gestação, um filhote de humano com orelhas pontudas veio ao mundo, mas além disso, ele tinha o poder dos lefeu, a ambição humana e a beleza de um elfo.

– É isso mesmo, Narrador, e eu seria mais belo que os deuses não tivessem feito merda!

Quer me deixar terminar de contar a história?

– Deixe ele terminar, Dimir. Eu adoro ouvir essa história – Heliode havia tomado o controle do corpo por alguns segundos.

Onde foi que eu parei mesmo? Ah, sim...

De seu reino celestial, Nimb, senhor do Caos, viu aquele nascimento acontecer e escolheu o garoto como seu sumo-sacerdote imediatamente. Seus poderes somados com a bênção do deus seriam algo tão instável e caótico que só de existir, já satisfazia Nimb. Ninguém soube dizer o que aconteceu depois disso.

– Espera, essa história deve ter uns mil e duzentos anos – disse Doc.

– Sim. Dimir joga um dado anualmente para saber se ele vai envelhecer ou voltar no tempo no próximo ano – explicou Heliode.

– É realmente um servo do caos – riu Aegis –, mas o que os sumo sacerdotes dos deuses mais opostos de todo o panteão artoniano fazem no mesmo corpo?

– Tudo culpa daqueles malditos deuses que resolveram brigar! Sabe, alguém deveria ensinar a Nimb que ser caótico não quer dizer ser burro! – Era Dimir novamente – Eles entraram em guerra por tanto tempo que suas essências acabaram sendo absorvidas pelo mesmo reino celestial e tudo relativo a eles acabou se fundindo.

– E porque vocês não se fundiram totalmente? – Perguntou Shadow

– Ah, meu caro amigo, isso é porque existe uma parte de Dimir que não é artoniana. Portanto, mesmo que tudo se fundisse, a parte lefeu de meu nobre colega ficaria separada. – Heliode explicou.

VOCÊS QUEREM PARAR DE TROCAR? ESTÃO ME CONFUNDINDO!

– Vai por mim, Narrador, você não sabe o que é confusão até tentar narrar as paisagens do Reino Celestial do Caos – brincou Aegis.

– Vamos direto ao ponto – disse Doc –. Onde podemos achar o deus da Ordem e do Caos?

– Podemos abrir uma passagem para o salão onde ele fica, mas precisamos saber se devemos. Os dois deuses andam bastante debilitados tentando se assimilar, assim como eu e Dimir – Heliode explicou –, mas ainda bem que nós aqui nos damos bem. Já os deuses são completamente opostos.

– Eu não diria que vocês se dão tão bem assim – brincou Aegis.

– Precisamos das gemas da virtude correspondente a eles. Szzaass vai conseguir matar Lena, se não fizermos nada – explicou Shadow.

– Isso pode ser um problema. Como vamos ter ordem sem vida? – Heliode desesperou-se, mas Dimir tomou o controle – Ou pior: como vamos ter caos sem vida?

Imediatamente o corpo que parecia dividir-se entre Heliode e Dimir, agindo sempre descoordenadamente, demonstrou habilidade e fluidez nos movimentos ao conjurar um portal mágico visual. Um meio de comunicação através de magia.

Aegis tomou a frente.

– Rei dos Deuses! – Chamou. – A vida encontra-se ameaçada pela traição. Precisamos do poder das gemas para detê-lo.

A sombra do outro lado pareceu mover-se, mas não saiu da escuridão.

– E por que eu daria a minha para vocês? Lutamos para proteger nossa existência através da nossa gema.

– Porque vocês também morrerão se a essência vital se for. Passaram-se muitos milênios desde que as essências divinas passaram a existir, mas os deuses vieram depois delas. Um deus precisa de sua fonte vital para existir, mas além disso, ele precisa de mortais depositando fé neles.

– E quem é você para saber tanto sobre nós?

– Aegis, o andarilho interplanar.

– Ah, ouvimos falar de você! Conte mais sobre o que supostamente sabe.

– Sei que separadamente, vocês me dariam as gemas, mas unidos, um confunde o outro e nenhum dos dois sabe de nada!

– SABE REALMENTE O PODER QUE TEMOS?

Doc interrompeu.

– Vocês não têm poder nenhum. No mundo como está, caos e ordem se misturam e se confundem, por isso vocês estão assim. Mas o segredo que vocês escondem aí dentro é mais do que isso. Vocês viram o que sua gema se tornou e escondem-na por isso. Não há mais gema do caos e nem da ordem, não é?

– Heliode. Dimir. Tirem esses loucos daqui, preciso dormir – o deus disse com calma.

– Pode nos levar, mas antes me dê o real motivo de vocês dois se darem tão bem no mesmo corpo. Me dê a Gema da Harmonia.