NeoSquad

NeoArton


Crix havia acabado de ser ligado, sem saber muito bem o que se passava em sua volta. Nikola, que havia acabado de ativar o androide no qual ele e seu mestre trabalhavam há mais de quinze anos, estava atônito por finalmente ter dado vida, ou quase isso, ao protótipo que poderia mudar todo o curso da robótica artoniana. Enquanto isso, Isaac, seu mestre, pedia que ele se afastasse do androide enquanto tentava descobrir se a experiência havia dado certo.

Apesar de todo constituído de metal, aquele androide tinha funcionamento igual à um humano, precisando dormir para recarregar as baterias, comer e ir ao banheiro, para trocar os óleos internos. É claro que a comida e o banheiro para aquele androide eram especiais. Não faria bem para um robô beber refrigerante.

Ele olhou suas mãos polidas e percebeu que estava vivo. Vestido com uma armadura de vidro fortificado que era resistente a impactos de quatro toneladas, sem ao menos arranhar. Logo atrás dessa armadura que cobria membros e tronco, um microchip estava conectado ao vidro, onde circuitos praticamente invisíveis distribuíam as imagens que chegavam naquele chip, assim era possível fazer o download de um terno para vestir seu androide, como era com todos os outros. A diferença de Crix estava no rosto. Um rosto feminino com pele artificial clara e cabelo sintético liso e fino, reto como os detalhes que saíam de seus olhos e boca, indo em direção ao pescoço. Nenhum outro androide parecia tão humano. Se não fosse pelos detalhes de metal nas bochechas e queixo, ninguém conseguiria distinguir aquele robô de um humano. Além disso, também era possível mudar o rosto e o cabelo da Crix com um simples toque na tela holográfica do BioPhone, um aparelho pequeno e redondo que todos tinham colado na palma da mão e que, ao ligar, ele emite um holograma de uma tela virtual. Uma espécie de SmartPhone moderno.

Não era novidade um robô humanoide quase dois milênios depois da Tormenta, mas aquele não era um simples exemplar de série, aquele era uma dádiva de tudo que a robótica e a eletricidade combinada eram capazes de criar. Aquele androide era capaz de sentir. Não apenas sentir frio ou calor, fome ou satisfação, mas muito além disso. Aquele pedaço de metal tinha consciência e sentimentos, ou pelo menos era assim que deveria ser, segundo o projeto. Ter uma máquina praticamente viva era algo um tanto quanto arriscado, e por isso a equipe de marketing da Vectorius Corporation vinha criticando a Talude Robotics, a empresa que havia financiado o projeto, há tempos.

- Você é meu... pai? – A voz metálica de Crix ressoou ao ver o humano que estava sentado em sua frente, admirando sua existência com suas costeletas grossas e brancas, por trás de seus óculos quadrados e sob seu ralo cabelo arrumado e branco. Crix não pôde deixar de reparar que seu criador não seguia muito bem as tendências da época.

- Pai? Acho que posso dizer que sim. – Isaac respondeu, tirando seu avental sujo de óleos e polidores e revelando suas roupas totalmente ultrapassadas, feitas com jeans e algodão misturado com poliéster, – Você deve estar confuso. Programei sua mente para que soubesse o básico da vida de um orgânico e de um mecânico, mas a tecnologia que usei não foi suficiente para lhe explicar como esse mundo funciona antes de te ativar.

- Tudo o que sei é que sou um androide sem número de identificação, série ou código de barras. Eu... sou único? – Perguntou inseguro Crix.

- Creio que sim, meu filho, mas isso não significa que você é melhor do que algum humano, anão ou mesmo um androide. Ainda precisa aprender muito. – O rosto luminoso de Crix pareceu expressar algo. Talvez determinação?

- Ensine-me o que puder, pai. – Pediu – Estou ansioso para aprender mais sobre o mundo.

Ansioso? Aquilo era algo novo. A experiência havia dado certo e até Nikola, que apesar de ser um prodígio, tinha apenas dezessete anos e ainda se dedicava apenas aos estudos avançados de eletricidade, havia percebido o que estava acontecendo. Rapidamente o garoto correu até o painel eletrônico daquela moderna oficina de criação e, ao pressionar um botão, ligou o sistema de transmissão holográfica. Em outro canto da cidade, uma miniatura do garoto apareceu numa mesa de escritório e o homem que se sentava atrás dela pôs-se a ouvir o relatório do garoto, perguntando-se qual seria o resultado da experiência.

- Deu tudo certo, senhor. Mais uma criação do homem para o homem. – O garoto lembrou o lema da empresa.

- Pois bem. Venham até meu escritório daqui há dez dias, para discutirmos sobre as aplicações do Projeto Crix. Por hora, mande-me o planejamento, para que eu possa saber do que nosso mais novo amigo é capaz.

E mais um toque no painel, os relatórios estavam sendo projetados na tela de acrílico transparente e lisa que era o computador pessoal do grande Talude, financiador do projeto.

Após a despedida, Nikola virou-se para o mestre, que ainda conversava com Crix, e ficou apenas observando o que Isaac iria ensinar para seu filho. O pupilo não sairia dali enquanto aquele diálogo não acabasse, porque sabia que poderia ser necessário para uma segunda opinião e não queria perder a chance de discordar de seu mentor na frente de sua criação.

- Filho, você sabe o fim que os deuses tiveram? – Perguntou Isaac, tentando descobrir o quanto Crix sabia sobre as divindades.

- Apenas sei da morte de Allihanna, provavelmente assassinada por algum membro da Irmandade Sombria, depois de enfraquecer por causa do intenso desmatamento da flora e matança da fauna artoniana. Além disso, também conheço as histórias de Glórienn e Ragnar, que morreram quando o último espécime de sua raça-filha foi assassinado.

- Está certo. Sabe me dizer o que é uma raça-filha?

- Sei. É o nome usado para representar uma raça que foi criada por um deus. A raça-filha de Glórienn é a élfica, assim como a de Ragnar é a goblinóide e a de Valkaria é a humana.

- Correto novamente. O que aconteceu depois?

- Depois de três deuses extintos por causa dos mortais, o Panteão entrou em guerra e começou a colapsar. Khalmyr, da ordem, entrou em conflito com Nimb, do caos. Segundo relatos, os dois desapareceram. Os humanos acreditam que Khalmyr foi consumido quase completamente por Nimb e vice-versa, por isso a ordem e o caos se confundem. Sszzaas, deus da traição, viu sua oportunidade chegar junto com o colapso dos deuses e ressurgiu, atacando três companheiros, matando dois deles.

- Quais foram esses?

- Lin Wu, da honra, Marah, da paz e por pouco, Lena, da vida. Com isso, não há mais honra e paz, mas graças à tecnologia, ainda há vida sustentável, já que a deusa da vitalidade está sob cuidados humanos, que pesquisam arduamente para tentar encontrar a cura para o veneno de Sszzaas.

- Bom. – Isaac aprovava cada palavra que a voz metálica de Crix dizia. – Você falou dos deuses com raças-filhas, mas não disse o que aconteceu com Valkaria.

- Tudo o que se sabe de Valkaria é que ainda está viva, já que os humanos ainda sentem a presença de seu deus dentro de si, mas a localização da deusa é desconhecida. A humanidade ainda vive, mas anda perdida e sem rumo. Não lhe parece um pouco poético?

Isaac se surpreendeu com o comentário extremamente sensível de Crix. Ainda não havia se acostumado com o fato de um androide possuir sentimentos e consciência.

- Em parte, sim. Depois do desaparecimento da deusa, o que ocorreu com o resto dos deuses?

- A tecnologia em Arton avançou muito e isso acabou impactando diretamente em duas divindades: Tannah-Toh, do conhecimento e Tauron, da força e coragem. Acontece que a deusa da sabedoria ficou sobrecarregada com tanta informação produzida e compartilhada pela humanidade, e sua eterna curiosidade científica não permitiu que ela ignorasse o mínimo de toda aquela informação. Tannah-Toh, acabou enlouquecendo e isso fortaleceu ainda mais Nimb, apesar de não haver nenhuma mudança aparente no seu comportamento. Tauron, por sua vez, foi obrigado a reconhecer que a tecnologia era capaz de possuir mais força do que seus minotauros depois de ver todos os reinos da força serem dominados por construtos mecânicos evoluídos, que ainda não eram considerados androides. Esse período onde praticamente todos os seus chifrudos entregaram seus corpos para a ciência integrar o biológico com o tecnológico é chamado de Revolução das Máquinas. Assim foram criados os primeiros ciborgues. Já o deus, resistiu um pouco mais, mas foi apenas até seu reino celestial ser invadido, por causa de um teleportador especial que foi desenvolvido. Com os artonianos em seu reino, uma guerra foi travada e os mortais venceram. Tauron foi escravizado, perdeu sua consciência e agora é apenas mais uma arma dos mortais.

- Tudo está correto, mas ainda faltam alguns deuses a tratar. Tantos conflitos assim devem ter fortalecido o deus da guerra, Keen.

- É verdade. O senhor das batalhas ganhou muito poder e decidiu entrar em guerra contra os artonianos, mas seu sumo-sacerdote, Mestre Arsenal, ficou em seu caminho, dizendo que aquilo iria significar a extinção dos deuses ou dos mortais e que ele não poderia permitir aquilo. Os dois ganharam aliados rapidamente e um conflito se deu, mas mesmo com o poder de Keen e de Arsenal bastante amplificados, nenhum reflexo daquela batalha atingiu Arton, exceto pelo fato de que eles mataram um ao outro em combate singular, após milhares de artonianos terem sido sacrificados por lutarem aos seus lados.

- Começo a crer que sou em quem precisa dos seus ensinamentos, e não o contrário. O que ocorreu com o resto dos deuses?

- Wynna, da magia, não era mais necessária, com tanta tecnologia, então seus poderes foram se perdendo aos poucos. Para não ter um fim igual a Allihanna, ela pediu a dimensão da Academia Arcana de Talude emprestada, onde poderia continuar ensinando magia aos poucos interessados que quisessem aprender. Algumas décadas depois, a humanidade construiu um globo oco capaz de envolver o nosso planeta e isso tornou o dia e a noite artificiais, bem como a temperatura e o clima, assim, nem Azgher, o Deus-Sol, e nem Tenebra, a Mãe-Noite, eram mais necessários. Os deuses do dia e das trevas partilharam do isolamento de Wynna e também foram para a Academia Arcana. Quando a deusa da magia ouviu o relato dos outros deuses, a dimensão da Academia foi fechada e ninguém poderia mais entrar ou sair de lá. Além disso, aqueles três juraram criar a Segunda Revolta dos Três e criarem uma raça mais forte e perfeita, para subjugar os artonianos ingratos.

- Eles não foram os únicos que juraram vingança, né?

- Não. A poluição atingiu o mar e as águas foram ficando cada vez mais podres. Seres do Grande Oceano começaram a morrer em massa e ninguém mais queria acabar como Allihanna. Por outro lado, as feras de Megalokk, deus dos monstros, estavam sendo exterminadas apenas por serem uma “ameaça iminente”, como os humanos chamaram. Vendo essa oportunidade, os dois se aliaram e se isolaram em mares abissais, onde não seriam alcançados, jurando retornar com feras marinhas colossais, para exterminar os terrestres, assim como fizeram com as crias do deus dos monstros.

- Isso me dá medo até hoje. Nunca fui muito fã de água.

- Nem eu – Nikola se manifestou – Não posso me fazer de condutor com água envolta de mim.

- Ah, você ainda está aí? Tinha me esquecido – Isaac respondeu – Crix, esse aqui é meu aprendiz, Nikola.

O androide olhou para o garoto com olhos humanos e viu nele a mesma essência de seu criador. Uma pessoa que não deixa de ver além de seu tempo, independente de qual seja a situação. Apesar de novo, ele seria bom no que quer que fizesse. Não era difícil perceber a malícia que o garoto escondia no ralo bigode que lhe brotava no rosto e nem a inteligência revestida por curtos cabelos ondulados e piscantes que cobriam apenas a parte de cima da cabeça, resultado de um corte bastante moderno que era uma mistura de moicano com LEDs estrategicamente posicionados para criar um Night Club para os piolhos que habitavam ali há poucos meses.

– Já que está tão atento em nossa conversa, posso lhe pedir para fazer a única pergunta que falta sobre os deuses?

Após três longos minutos refletindo, Nikola percebeu que alguns deuses ainda não tinham sido comentados.

- Já sei! – Se virou para Crix – O que aconteceu com os deuses punidos?

- Kallyadranoch e Tillian permanecem desaparecidos, assim como Valkaria e Hynnin.

- Droga! Tinha esquecido de Hynnin. Esse maldito bufão prega peças até à distância! – Isaac lembraria de se punir mais tarde por esquecer algo tão básico.

- E sobre o mundo mortal? O que sabe? – Nikola perguntou ao androide.

- Sei que o mundo mortal se encontra dividido entre quatro posições políticas. Parece-me que as vertentes antigas da esquerda e da direita agora estão apontando em mais duas direções diferentes. Essas quatro opiniões são o Governo, que nada mais faz além de tentar se manter no poder, agradando ao povo e resistindo aos ataques das outras três facções, os Revolucionários, que lutam contra o Governo diretamente e parecem não se importar com as outras duas posições políticas, a Irmandade Sombria, que apenas mata aqueles que não julgam ser bons para Arton, sem pretender governar, e a Anarq, o grupo que não acredita em um governo único, mas sim num modelo onde cada um se governa e sabe bem o que é bom e o que não é bom, mantendo a ordem sem obrigar ninguém a fazer nada. Esses últimos apenas atacam qualquer um que tente governar, mas sem a perícia da Irmandade Sombria. Os líderes de todas as facções não são conhecidos por muitas pessoas, mas apenas por alguns especialmente selecionados dentro de seus próprios grupos. Conhecemos apenas os chefes menores, para que o líder não seja alvo de nenhum ataque.

- Exatamente. – Isaac decidiu que o androide não precisava aprender mais nada.

- Consultando os conhecimentos de lógica que o senhor me deu, pai, presumo que alguns deuses estejam entre esses líderes. Ou pode ser que nem tenham líderes de verdade, como é com os Anarq, porque não faria sentido um grupo que é contra um governo, ter um líder.

- Exato. Antes de estarmos prontos, precisamos conferir se você sabe o código de conduta dos androides de serviço.

- Claro que sei, pai. São apenas três regras. – Crix respondeu.

- E quais são elas?

- A primeira diz que um robô não pode fazer mal à um ser humano ou, por omissão, permitir que ele sofra algum mal. A segunda diz que devemos obedecer as ordens dadas por humanos, exceto quando isso vai contra a primeira lei. A terceira fala que o androide deve proteger sua existência, exceto quando isso infringe a primeira ou a segunda lei.

- Correto. Apesar de você não estar preso a essas leis, é bom que você conheça elas... Pode ser útil no futuro.

- Entendo.

Isaac se virou para Nikola.

- Garoto, vá avisar ao chefe que estamos prontos.

- Já avisei. Mandei os relatórios e a lista de habilidades do Crix. Ele pediu para irmos ao escritório dele daqui há dez dias, para discutirmos a aplicação prática dos irmãos do Crix.

- Irmãos? – O androide pareceu surpreso novamente.

- Sim, filho. Você terá irmãos, muito em breve.