NeoSquad

A Volta dos Deuses


– Cara, vamos sair logo daqui – pediu Addam para seus amigos –. Já faz umas três horas que estamos esperando aquele cara sair da arena e nada. Além do mais, minha perna tá piorando.

– Isso vai ser difícil de resolver. Sua perna... – Doc apontou para a perna de Addam que inchava cada vez mais e agora apresentava manchas roxas que pareciam doer muito – Não sei se vamos conseguir médicos para curar isso e, mesmo que arranjemos, pode ser tarde demais. Num mundo quase sem deuses, nem mesmo a medicina pode fazer milagre.

– Não preciso dos deuses, preciso sair daqui!

Passos foram ouvidos ecoando no corredor acompanhados de vozes altas e ébrias. Não poderia ser Leônidas, então os quatro se espremeram contra a parede do túnel mal iluminado que Valkaria havia lhes apontado enquanto estavam conversando ainda na biblioteca. A essa altura, os deuses já haviam saído dali e deviam estar procurando outros membros da Irmandade Sombria para reagrupar as forças, nem que fosse apenas para sobreviver.

Os passos foram ficando cada vez mais altos e as vozes embargadas vieram acompanhadas de estridentes gargalhadas que, agora notavam, saíam de duas gargantas. Era Leo, mas ele trazia alguém consigo.

– Senhores, quero que conheçam Kurt Solzinho! – Disse Leo, trocando as palavras.

– É Solaris, seu idiota! – Respondeu Kurt, indignado e tão bêbado quanto o minotauro.

– E esse sou eu – intrometeu-se Addam –. Odeio interromper conversas amigáveis, mas acontece que essa aqui é minha perna e, vejam só, parece que ela não vai durar muito tempo.

Kurt olhou para a perna inchada e escurecida como se fosse mais um estraga prazeres que estava só acabando com a sua festa e se abaixou-se para examinar, mas ao invés disso, apenas segurou a perna com as duas mãos, encarou-a como se estivesse olhando para uma pessoa e abriu a boca para falar algo, mas foi interrompido pelo toque de um comunicador.

O espanto de Addam ao perceber que Kurt estava prestes a conversar com sua perna não foi nada comparado ao espanto do resto do grupo quando ele largou a perna que segurava com as duas mãos, deixando-a cair num baque surdo contra o chão de pedra do corredor mal iluminado e menos ainda quando comparado à expressão de quase pânico no focinho de Leo quando todo o álcool no sangue do híbrido de humano e dragão pareceu ser totalmente removido apenas pelo toque daquele comunicador.

– O que houve? – Perguntou Kurt, respondendo ao chamado.

– Senhor, um pedido de ajuda foi mandado para nossa nave. Parece que um esquadrão de magos apareceu em Deheon. Não sei explicar direito.

– Problemas na capital? Mas estamos muito longe.... Porque não chamaram nenhuma outra divisão?

– Fiz a mesma pergunta. Todas as nossas divisões em Deheon foram mortas. A singularidade se abriu no centro da cidade e tudo que havia ali foi quase instantaneamente destruído por alguma coisa.

– Espera, você havia dito “magos”?

– Sim. Magos.

– Peça uma ligação holográfica com Talude. Ele vai ter que me explicar o que fizeram com a dimensão que ele criou e o que está acontecendo agora.

– Não será possível, senhor. Talude foi preso.

– Preso? Melhor ainda! Falem com algum governante e diga que Kurt Solaris pediu para conversar com Talude.

– Entendido. Mais alguma ordem?

– Sim, mande a nave para cá e prepare a enfermaria da nave para receber uma – olhou para a perna de Addam – cirurgia de amputação.

****

– Tem certeza que não tem problema me deixar em Petrynia? – Perguntou Leo, enquanto esperava junto com Kurt e Shadow a cirurgia de Addam terminar.

– Claro que não. Decolamos assim que a operação acabar, te deixamos em Petynia, na casa dos mercenários, e depois vamos rápido pra Deheon. Sem problemas.

– Valeu cara, fico te devendo uma. – Leo quase deixou o assunto morrer, quando se lembrou de um detalhe – Ei, espera aí. Deixa eu te perguntar uma coisa. O que aconteceu com você para criar um senso de responsabilidade tão grande só de ouvir o apito de um comunicador.

– Ah, aquilo? – Kurt ficou meio sem graça – É que eu...

Antes que pudesse terminar, uma porta se abriu no lado oposto ao que eles estavam sentados num sofá cinza e quadrado, cercado dos dois lados por mesinhas cinzas e vazias, muradas por paredes de metal cinzas com um chão também de metal...

E também cinza?

.... Não, dessa vez era azul. Mas a porta pela qual o chefe da equipe de médicos saiu era cinza também.

– Morreu? – Perguntou Shadow

– Antes fosse. Ele vai sofrer um pouco mais ainda – a face do médico tornou-se triste –, mas vai sobreviver. – Virou-se para Kurt – Senhor, os equipamentos que temos na nave só puderam fazer pequenos reparos. Resolvemos, por enquanto, mas se houverem complicações maiores, não vamos ter como dar conta. Precisamos deixar esse cara num hospital e rápido.

– Tudo bem – disse Leo –, ele desce comigo em Petrynia.

– Podemos decolar? – Perguntou Kurt

– Sim, senhor.

Kurt saiu da minúscula e cinza sala de espera com uma velocidade incrível e mal cruzou a porta, já estava distribuindo comandos para todos os lados e não tardou para a nave começar a se mexer. Ela era grande, forte e protegida, mas definitivamente não era rápida. Não era uma nave transportadora, era feita para a batalha. O que era bom, pois eles estavam indo para uma. Mas será que chapas de metal são úteis contra magos? Passaram-se tantos anos sem magos em Arton que ninguém sabia dizer mais.

Depois de a nave entrar no trajeto desejado e rumar antes para Petrynia, para deixar Leo e Addam e depois para Deheon, Kurt entrou numa sala privada que estava longe de ser chamada de “sala do capitão”. Ele odiava que pensassem que ele era mais do que um soldado. Era bem verdade que ele fora designado para comandar aquela divisão e que vestia uma armadura do antigo Protetorado do Reino, mas isso eram só títulos e a armadura era usada porque parte dela ficou permanentemente presa em seu corpo quando parte dele foi transmutado em pele draconiana.

Ele não ostentava medalhas e sua identificação pessoal era apenas de um soldado do governo. A “sala do capitão” por assim dizer, fora usada como depósito de armas e armaduras, já que era o maior cômodo de toda a nave e aquela divisão havia sido ensinada a combater no estilo Kurt Solaris, ou seja, gastando tudo o que tem, para garantir exageradamente a morte do inimigo, mesmo que esse não fosse o foco da missão.

Kurt tirou de uma das muitas bolsas que carregava um pequeno disco de metal dividido em oito seções circulares envolta de um cristal em forma de esfera oca, preenchida por dentro com micro espelhos arrumados de uma forma tão complexa que doía a mente de Kurt só de olhar para aquele cristal. Felizmente, ele só precisava daquilo para ver uma outra imagem. Era um comunicador holográfico.

Ele não tinha muito tempo até chegarem na casa dos caçadores de recompensa e talvez precisasse falar com Leo depois daquela conversa. Colocou o aparelho sobre a mesa e tocou o cristal para que o menu de aplicativos aparecesse no ar. Ligou para a base de comandos militares do governo e pediu para falar com a mesma pessoa que havia falado antes.

– Conseguiu para que eu falasse com Talude?

– Sim, senhor. Ele aguarda a sua ligação.

– Obrigado.

Kurt tocou o cristal duas vezes para que o aparelho religasse. Regulou para que o holograma fosse reproduzido numa escala de um para um e se acomodou na cadeira simples de plástico na qual já estava sentado. O aparelho não precisou de mais do que cinco segundos para reproduzir uma imagem de Talude, cercado de uma membrana plasmática inteligente que limitava seus movimentos. Suas roupas comuns haviam sido tiradas, mas foram substituídas pelo uniforme impecavelmente branco dos presos de Arton.

– Talude? – Perguntou, para se certificar de que a comunicação havia sido estabelecida.

– Sim. Você é...?

– Kurt Solaris. Comandante do terceiro batalhão de defesa de Arton. – Ele sabia ser soberbo quando era menosprezado – Você deve se lembrar de mim. Fui o responsável pela captura de Gladius, há mil e setecentos anos.

– Ah, me recordo. Então você também é uma dádiva de Ragnar?

– Creio que sim. Mas agora vamos ao que interessa. Eu quero te libertar, mas fica meio difícil sem saber o que exatamente está acontecendo pela capital. Eu ando longe, mas estou voltando, e me parece que nenhuma cabeça de vento em todo o Arton consegue me explicar o que causou todo o caos que me reportam.... Acho que você vai saber me explicar.

– Sim. Digamos apenas que fui preso por ter tido uma conversa com Wynlla. É natural que amigos queiram conversar depois de ficar sem se ver durante tanto tempo.

– A deusa da magia se encontra novamente nesta dimensão?

– Não. Wynlla, Azgher e Tenebra não sairão da Academia Arcana, mas abriram a passagem que esteve fechada desde que a humanidade terminou a cúpula.

– Cúpula? Aquela que envolve Arton e que cria climas programados e que também regula os dias e noites? O que ela tem a ver com isso? E o que diabos é Academia Arcana? Explique-se! – Kurt estava começando a ficar irritado.

– Tudo bem.... Você foi o único que me parece querer ajudar. Há muito tempo atrás, antes mesmo de Tormenta chegar e do Reinado se formar como conhecemos, eu já era vivo e já conversava com a mãe da magia. Wynlla sabia que eu era o melhor mago em Arton, talvez o único. Ela me pediu para criar um lugar onde a magia pudesse ser ensinada, mas esse lugar não poderia ser em Arton. O motivo era que essa realidade não suportaria tanta concentração de magia utilizada.

– O que?

– É simples. Imagine o mundo como um terreno por onde passa um rio. Esse rio é a magia e o volume de água é a quantidade de magos, enquanto a largura do rio é a quantidade de magia que esses magos usam. Se muitos magos usarem muita magia no mesmo ponto, o rio transborda e a realidade, que seria algo como a represa desse rio, quebraria.... Acho que não preciso dizer o que acontece se a realidade quebrar.

– Definitivamente não. Prossiga.

– O único modo de criar esse lugar que eu chamei de Academia Arcana foi, antes disso, criar uma dimensão própria só para ela, com uma realidade que suportasse a quantidade de magia que seria usada ali. Para que os magos de Arton pudessem ser treinados lá, deixei a passagem sempre aberta.

– E o que isso tem a ver com a cúpula?

– Nada, se não fossem os deuses. Allihanna, a mãe natureza, já havia sido morta por ter sua fonte vital destruída pouco a pouco. Quando os outros deuses descobriram que isso era possível, os que tinham suas fontes vitais ameaçadas tentaram se precaver. Marah, a dama da paz, Lin Wu, o patrono da honra, e Lena, a mãe da vida, foram envenenados por Szzaass, a serpente da traição e dois deles já morreram. Muitos planos celestiais foram invadidos e colonizados por humanos. Isso só motivou mais ainda os deuses.

– Posso entender isso, mas ainda não vejo a relação com a cúpula.

– É simples. Megalokk, o criador dos monstros, e Grande Oceano foram isolados para camadas abissais por terem suas fontes vitais ameaçadas pelo ódio dos humanos pelos monstros e pela eterna pretensão humana a poluir o mar. É sabido por todos que os dois prometeram voltar com criaturas colossais, buscando vingança...

– ESQUECE ISSO! QUERO SABER DA CÚPULA!

– Acredite. Tem a ver. Acontece que a cúpula tornou a existência de Azgher, o deus-sol, e Tenebra, a mãe noite, bastante desnecessárias. Ambos se juntaram a Wynlla, que me pediu a dimensão da Academia Arcana. Lá, eles juraram salvar a casta dos magos e não deixar a prática da magia morrer. A minha empresa vinha monitorando tudo que acontecia lá dentro enquanto a passagem para a dimensão estava fechada e você sabe como não se pode guardar informações hoje em dia. Ainda mais com o sumo sacerdote da deusa da sabedoria monitorando tudo e reportando para a sua deusa, que eu poderia deduzir que está aliada a Valkaria, seja lá onde elas estejam.

– Disso eu fiquei sabendo. Boatos circularam de que Wynlla estava ficando cada vez mais forte, porque seu reino celestial havia começado a se regenerar.

– E ela de fato estava ficando, porque os magos estavam ficando cada vez mais poderosos. O grande problema é que Arton pensou que ela estava juntando poder para atacar a humanidade e isso foi fortalecido pelo que aconteceu.

– O que diabos aconteceu em Deheon? – Disse, enquanto pensava em um jeito de cumprir a sua parte da promessa e achar um jeito de libertar Talude.

– A Academia Arcana e Arton se tornaram uma dimensão só, mas dois objetos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, então muitas construções foram destruídas e muitas pessoas foram soterradas nos escombros. Conversei com a deusa, justamente para saber se ela queria realmente fazer isso, mas parece que ela perdeu a prática e fez errado. A intenção era manter a academia flutuando por cima da estátua de Valkaria.

– Isso ainda não explica o motivo dela reabrir a passagem.

– Essa é fácil: Megalokk e Oceano se moveram.

Uma súbita expressão de pânico preencheu o rosto de Kurt. Ele sabia que Megalokk e Oceano eram deuses realmente poderosos e realmente monstruosos. Os dois trabalhando juntos poderia significar realmente o fim da humanidade, mesmo naquele tempo em que a diferença de poder entre humanos e deuses não era tanta.

– É muita coisa para processar. Quem comanda o exército de magos? Preciso falar com ele.

– Você não vai gostar de saber disso...

Em toda a nave, o comunicador geral foi ligado e, após uns poucos dois segundos de microfonia, a voz de Kurt soou.

– Aqui fala Kurt Solaris e estamos mudando a nave de curso. Vamos direto para Deheon. Leônidas e Addam vão conosco e o paciente será deixado na Casa de Lena, onde será tratado. Precisaremos da ajuda de todos.

O ruído de fundo cessou, denunciando que o comunicador havia sido desligado, mas logo voltou a ligar e a voz de Kurt foi ouvida novamente.

– Leônidas, me espere no salão principal da nave. Se alguém souber como enviar um sinal através do tempo, por favor me avise.