NeoSquad

A Casa de Lena


– Você tem certeza? – Quis saber Leo.

O salão principal da nave que Kurt comandava não era grande como é próprio de qualquer ambiente que leva a palavra “principal” no nome. Na verdade, ele não era maior do que duas ou três cabines onde dormiam os seus subordinados. Diferentemente dos outros cômodos, esse tinha mais de uma mesa, mas eram tão simples quanto as outras. Kurt dissera que não precisavam de muito conforto nem de aparências muito impressionantes, mas sim de algo simples e funcional. Leo entendia e concordava com cada palavra que o amigo proferira sobre a nave, mas não conseguiu acreditar na última frase que saiu da boca meio alterada pelas escamas draconianas vermelhas que alcançavam seu rosto.

– Foi o que Talude me disse. Ele não é pessoa de se enganar, mesmo com a idade que tem. – Talude já era velho quando os dois nasceram, há mais de mil e setecentos anos.

– Sabemos que ele não erra, mas isso não quer dizer que ele não minta – retrucou o minotauro, tateando seus braços mecânicos, como se estivesse abraçando a si mesmo.

– É verdade, mas que motivo ele teria para jogar com a gente? Não me parece coisa muito inteligente a se fazer no meio de um combate iminente.

– E não é. – Leo viu uma pessoa entrando no salão principal que até agora só contava com a presença dos dois. Ninguém parecia querer incomodar uma conversa de Kurt, mesmo que ele não tivesse pedido privacidade. – Olha, ali vem o doutor responsável pelo Addam – apontou com o único chifre que restava em sua cabeça para o homem que vinha andando com uma expressão séria no rosto e algum tom de preocupação.

Kurt sabia bem distinguir isso no rosto das pessoas. Era do medo do inimigo que saiam suas vitórias.

– Algo de errado com nosso amigo? – Kurt disse, sem nem mesmo olhar para o médico e isso fez com que ele congelasse.

– Ele está piorando, senhor. – Gaguejou.

– Seja mais específico.

– A perna piorou. Está necrosando. – O doutor sentou-se junto aos dois – Não vamos chegar em Deheon a tempo de salvar a perna dele e o contador vital da nave diz que ele tem trinta e quatro horas e alguns minutos de vida, se as coisas continuarem do jeito que vão.

– Era esse o problema? – Leo se intrometeu – Os navegadores disseram que chegamos em Deheon em pouco mais de quinze horas. Vai sobrar tempo. – Mas logo depois que terminou de falar, percebeu a expressão sombria no rosto de Kurt. Até mesmo suas escamas pareciam mais moles.

– Esse não é o problema Leo. – Kurt teve que parar para respirar fundo e tomar coragem de dizer – O caos causado pelo erro de Wynlla fez com que muitas pessoas atacassem os magos que ultrapassaram o portal antes da Academia Arcana ser transportada e um grupo de anarquistas aproveitou para depredar prédios públicos e incitar mais caos ainda. – Fez uma outra pausa.

O doutor teve que continuar por ele.

– A Casa de Lena ficou sobrecarregada com o número de feridos e o governo pediu médicos de Sallistick.

– O reino sem deuses trabalhando junto com os servos de Lena?

– Sim. Parece que os dois lados concordam que, pela medicina ou pelo divino, os feridos precisam ser tratados. – Continuou – o fato é que, quando esses anarquistas perceberam que muitos dos recuperados estavam voltando para o campo de batalha, atacaram o hospital e os servos da deusa pegaram em armas contra eles.

Leo se desesperou instantaneamente. Ele era um servo de Tauron, o deus da força, e por isso conhecia os costumes dos deuses e seus servos.

– Isso não é possível! Se fizerem isso, perderão a bênção de Lena e jamais poderão curar novamente! Como vão proteger a vida?

– Deixaram isso a cargo dos médicos de Sallistick, já que os doutores nunca tiveram experiência com combate e os clérigos passaram grande parte de sua vida acompanhando missões militares e muitas vezes observando como o processo se dava e como as estratégias eram montadas.

– Ainda sim perderam a bênção de sua deusa! Não consigo imaginar como seria não sentir mais a essência divina que habita a alma dos servos. Ainda mais se tratando da vida! Porque fizeram isso?

O punho draconiano de Kurt se fechou instantaneamente e socou a mesa com a força do ódio e da raiva que carregava. Suas escamas se posicionaram e fortificaram como se fossem escudos coordenados de alguma falange espartana. Sem falar uma palavra, deu um soco tão violento na mesa de aço que não a partiu, mas deixou um buraco do tamanho de seu punho e deformações na estrutura de toda aquela mesa.

– Porque o Governo negou ajuda. – Disse, trincando os dentes de raiva e saiu andando da sala lentamente enquanto terminava de falar – Será que eu nunca vou conseguir reencontrar velhos amigos sem que muito sofrimento aconteça?

Assim que saiu da sala, Leo se virou para o doutor.

– Ele sabe sobre Shadow?

– Não.

– É bom que não saiba ainda. Deixe ele descobrir quando chegarmos na Casa. Agora vamos, vamos tirar essa mesa daqui – disse Leo, mudando de assunto –. Algum admirador de arte moderna deve querer comprar essa porcaria.


****

– Todos preparados? – Kurt perguntou. Atrás dele se encontravam Leo, carregando um tubo criogênico onde se encontrava Addam, para que a necrose que afetava sua perna não avançasse tão rápido, Doc, Shadow e Alec. Na sua frente, uma porta aberta que dava para uma sala de despressurização.

Leo guiou o grupo para dentro da sala e lacrou a porta por onde entraram, enquanto Doc iniciava o processo de calibração de pressão, para que a diferença na pressão atmosférica não sugasse o grupo para fora quando outra porta se abrisse. Do lado de fora da sala de despressurização, um soldado aguardava pacientemente um sinal do grupo para abrir a última passagem.

– Tem certeza que é seguro? – Perguntou Shadow.

– Não, mas vai ser legal – respondeu Kurt.

– Na verdade, vai ser bastante arriscado, mas não temos como pousar no meio do caos total da cidade. Teremos que saltar e tentar cair no topo do prédio da Casa de Lena – esclareceu Doc.

– E porque não pousamos a nave lá? O prédio me parece largo o suficiente – disse Shadow.

– Pode ser muito arriscado chegar tão perto com a nave. Corremos o risco de matar a tripulação inteira se fizermos isso. – Leo apontou – Aquilo lá embaixo são magos, garoto. Placas de aço ultra resistente não seguram magia, vai por mim. Além do mais, tem que ser um mago cego para errar essa nave – o minotauro deu uma gargalhada, como se tivesse contado a piada mais engraçada que já ouvira.

– O que houve? – Perguntou Alec.

– Nada, é que eu lembrei de um velho amigo.

– Espera um pouco. – Shadow estava quase entrando em estado de choque – Vocês estão me dizendo que vamos saltar sem paraquedas de uma altura cinquenta e oito metros, sendo alvo de magos que dominam magias desconhecidas, para tentar acertar o topo de um prédio em que nunca entramos, podendo morrer na queda?

– Não disse que seria divertido? – Disse Kurt enquanto acenava para o soldado do lado de fora da sala, sinalizando que ele já podia abrir a porta externa.

– Que ótimo, agora só me falta aparecer um palhaço psicopata para contar mais algumas piadas mortais – disse Shadow, indo para perto da porta que se abria e se preparando para pular.

– Ha! Até o nosso amigo congelado aqui pegou essa referência! Agora vamos – Leo deu um esbarrão nas costas dele, empurrando ele para a queda livre, e se jogou logo em seguida.

Eram pouco mais de cinco segundos de pura adrenalina até o impacto com a cobertura do prédio de quase duzentos andares que abrigava um hospital e um orfanato. Durante esse tempo, Alec pôde ver a paisagem em volta e a vista lembrava a ele da arena do Coliseu Fantasma em seus instantes finais de luta. Isso fez ele pensar nos deuses com que conversara e se perguntar onde estariam agora, mas o chão chegando fez com que ele voltasse à realidade.

Sem pensar muito, assumiu seu corpo eletrificado e um trovão caiu na cobertura do prédio, sem causar impacto. Assim que aterrissou, olhou para cima e ficou esperando o resto dos colegas.

Shadow tirou desesperadamente seus sapatos. Mirou nas paredes externas do prédio, colocou seu corpo na horizontal e pôs-se a correr no ar, como se estivesse em fuga. Assim que as solas de seus pés descalços tocaram o vidro temperado esverdeado que cobria toda a superfície das paredes externas do prédio, o movimento de corrida que ele fazia foi diminuindo sua velocidade aos poucos, sem muito atrito e, graças à sua adesão, ele pôde subir as paredes novamente, encontrando com o resto dos amigos no lugar marcado.

Leo e Kurt aterrissaram da forma mais simples possível. Eles simplesmente caíram. O minotauro tomou o cuidado de abraçar o tubo criogênico onde se encontrava Addam e usar seu corpo para amortecer o impacto da queda para o paciente. Kurt só precisou usar a perna draconiana para o impacto inicial. As escamas resistentes absorveram toda a força da queda e nenhuma parte de seu corpo foi quebrada, mas não podemos dizer o mesmo do chão em volta de onde ele caiu.

Doc era o último a chegar, e parecia bastante desesperado. Leo largou o tubo no chão e correu para o lugar onde em breve se encontrariam uma bola de carne moída esmagada e um jaleco branco meio manchado de café, mas não era necessário. O disco que Doc guardava preso ao seu cinto agiu sozinho, como se possuísse vida, e começou a girar em torno de si mesmo logo abaixo de seu portador, acompanhando a queda. Pouco antes dele cair no chão, o disco emitiu um brilho forte o suficiente para fazer com que todos desviassem os olhos e, quando voltaram a olhar, Doc já não estava mais ali.

Um momento de silêncio pareceu eterno. Ninguém sabia o que havia acontecido com o doutor, mas não tardou para que um barulho fosse ouvido. A plataforma de transportação do prédio estava subindo até a cobertura. Shadow assumiu a frente do grupo e foi caminhando em direção ao local onde uma porta se abriu no chão para que a plataforma emergisse. Em sua cabeça, ele já repassava o que iria dizer para os servos de Lena que os encontrasse, mas quem estava a plataforma revelou uma figura bem mais familiar, acompanhada do Doc.

Shadow ficou sem as palavras que havia ensaiado mentalmente e as demais palavras o traíram. Ele suspeitava que até mesmo os vocábulos de outros idiomas que não conhecia nem nunca aprenderia o abandonaram naquela hora, então Kurt falou por ele.

– Cara, alguém precisa mesmo descobrir como esse disco funciona.

O rompimento do silêncio pela voz de Kurt permitiu que a de Shadow também saísse e, para a alegria dele, uma palavra ainda não havia pulado fora de seu dicionário mental.

– Mãe?

****

– Cara, eu achava que você era filho de um alien ou algo do tipo – brincou Alec –. Nunca poderia imaginar que você teria uma mãe e que ela seria tão legal.

A sala onde se encontravam era nada mais do que um espaço intermediário sem acomodações entre muitas portas que davam para locais onde eram armazenados tubos criogênicos como o que Addam estava usando com pessoas dentro, esperando pacientemente para serem atendidos pelos médicos ou servos de Lena que estivessem vagos. Funcionava como uma fila de espera.

– Cala a boca cara. – virou-se para sua mãe – Você deve estar ocupada. Não se preocupe com a gente. Só precisamos descobrir um jeito de achar o responsável mortal pela invasão de magos e bater um papo com ele.

– Então para que o tubo?

– Ah, tem isso também. Nosso amigo se feriu em combate e está com necrose na perna. Tem como dar um jeito?

– Eu perdi a benção da deusa, mas posso levá-lo a algum doutor de Sallistick e garanto que ele vai cuidar bastante bem do seu amigo. Quanto ao líder, ele está no prédio.

Kurt se espantou.

– Estamos atendendo feridos de todos os lados. Se o que os magos dizem for verdade, vamos precisar de todos vivos e pronto para o que vem por aí.

A mulher chamou uma garota que passava por perto. Apesar de ter pouco mais do que dez anos, a garota que se aproximou portava duas maças de combate sujas de sangue e sua expressão não era nem um pouco infantil.

– Essa é minha filha mais nova. Ela vai acompanhar vocês até o quarto de Ryer Solaris. – por vezes os servos de Lena adotavam crianças do próprio orfanato onde viviam e ensinavam para elas o ofício de ser uma serva da deusa, passando para frente aquilo que, em muitos casos, fora feito pela mãe. – O minotauro me acompanha com o garoto da perna.

– Sim, mãe. – A garota respondeu.

Dito isso, o grupo se dividiu e Shadow não pôde deixar de perceber que Solaris também era parte do nome de Kurt, mas o dia revelara surpresas demais e ele temia não estar pronto para mais uma, apesar de algo lhe dizer que ela chegaria logo, independentemente da pergunta que ele queria fazer.

A garota parou subitamente em frente a uma porta, arrancou um fio de cabelo dela e de cada pessoa que estava junto a eles. Jogou todos os fios junto num compartimento que estava acoplado à tranca da porta. Após alguns segundos, a CPU do dispositivo identificou o código genético de cada um e destrancou a porta.

– Agora todos vocês poderão entrar pelo pequeno custo de uma amostra de DNA. Para sair não são necessárias amostras – disse a garota, sem perder a expressão de séria no rosto.

– Você pode ficar aqui fora? – Perguntou Kurt.

– Desde que tenha um motivo pertinente.

– Acontece que eu sou irmão do cara que está aí dentro e queria falar com ele a sós um pouco.

– Como vou saber se não está mentindo?

– Avise quando vir alguém tão bizarro quanto eu ou quanto a pessoa que está dentro desse quarto.

– Entre – ela abriu a porta para que Kurt entrasse e o que ele viu, chocou-o imediatamente.

O irmão estava sentado numa cama retangular, cercado de monitores que informavam todo tipo de informação vital que poderia ser significativa para os doutores que estavam tomando conta dele. O resto do quarto era todo revestido por muitas camadas irregulares de placas de aço reforçado. Era a única defesa que tinham. Não havia janelas, para que ninguém pudesse ver quem estava hospedado ali. Ryer segurava um orbe esverdeado que as vezes mudava de cor. De olhos fechados, ele sabia que alguém havia entrado, mas estava concentrado demais com seu orbe. Kurt sabia o que ele estava fazendo. Muitas vezes vira o irmão usar aquilo para adquirir informações que somente os magos e as criaturas mágicas tinham acesso. Bem antes do sumo sacerdote de Tannah-Toh se atualizar como representante mor da deusa da sabedoria e assumir seu papel como servidor global de uma rede de dados sem fio que recebeu seu nome, Helladarion, os magos já tinham sua própria rede que eles chamavam de interrede.

A voz de Kurt quebrou o silêncio.

– Me dê um motivo para eu não socar um traidor.

Os olhos de Ryer se abriram ao reconhecer a voz do irmão e Kurt percebeu que os globos oculares do mago eram completamente brancos. Ele claramente estava cego, vítima de uma doença mágica que não existia há milênios, chamada de íris oculta, mas sua habilidade em saltar da cama e guardar o orbe provaram que ele, de alguma forma, conseguia perceber as coisas em volta.

– Não traímos ninguém. Só erramos uma manobra.

– Sim, e isso custou a vida de milhares de pessoas inocentes em Deheon. – Kurt fechou os punhos e se segurou como nunca para não bater no irmão.

– Viemos para salvar milhões. Você não sabe o que Oceano e Megalokk fizeram.

– Acredite, irmãozinho, eu sei bem – o braço draconiano de Kurt começou a pegar fogo e ele se preparou para o ataque – ouvi cada baboseira que Talude me disse, mas tudo me faz crer que ele estava mentindo. Ele sempre quis defender Wynlla.

– Conversou com Talude e ainda tem dúvidas sobre o nosso motivo? Aprenda a pensar alguma vez na vida, irmão.

– Agora chega! – Kurt se impulsionou para frente e a pedra do anel que Ryer carregava no anelar da mão esquerda brilhava em azul intenso, denunciando que ele já estava preparado para conjurar alguma magia destrutiva.

Pouco antes de algum dos dois finalizar o golpe ou o feitiço que aumentaria as estatísticas de mortos em Deheon, o tempo parou. Até mesmo as chamas de Kurt pararam de tremular. Um portal se abriu ao lado dos dois irmãos e do outro lado podia ser visto o minotauro ao lado de uma figura encapuzada.

– Se cruzarmos o portal, o tempo volta ao fluxo normal. Jogue agora. – disse uma voz de dentro do capuz.

– Você que manda, apressadinho. – Leo respondeu sacando seu machado de batalha e arremessando-o entre os dois irmãos. Assim que algo saiu do portal, o fluxo temporal se reestabeleceu, como o homem encapuzado disse que aconteceria, mas o machado foi rápido o suficiente para passar entre os dois irmãos antes de algo acontecer.

Os Solaris pararam imediatamente o que estavam fazendo e olharam para o machado que havia entrado doze centímetros na parede de aço reforçado. Depois olharam para a direção de onde a arma foi arremessada e viram as duas figuras já dentro da sala e o portal se fechando lentamente logo atrás.

– Vocês não mudam mesmo – disse Leo, se divertindo –. Mal posso tirar o olho por um segundo e já estão quase se matando?

Com o barulho da machadada, o resto do grupo que estava do lado de fora entrou correndo pela porta e não entendeu nada quando viu mais pessoas além de Kurt e o paciente.

– Esperem – Doc estava realmente confuso –, esse não era o encapuzado que encontramos no coliseu fantasma por dois segundos e que nos disse sobre os deuses?

– Ei! É ele mesmo! – Shadow notou – O que ele faz aqui?

A figura sombria que se escondia atrás de uma capa marrom com a cabeça coberta estendeu uma mão e puxou o capuz para trás. Uma face marcada pelo sol e pela fuligem das máquinas à vapor se revelou, com uma marca tribal que mais parecia uma tatuagem antiga marcada no rosto, sobre o olho esquerdo.

– Ótimo – disseram os Solaris, decepcionados por terem sido interrompidos –, reunião de família? Até o Aegis veio!

– Não vim para brincar - disse o homem com a tatuagem no rosto - acontece que quem me deu esse dom anda me enviando visões e ultimamente uma tranca se abriu na sala de muitas portas. Essa tranca aberta permitiu que eu passasse para este tempo.

– Se você não tinha acesso antes, por que tem agora? - Ryer quis saber.

– Porque eu tive acesso ao futuro e o que eu vi não era nada bom. - Ele olhou para a garota que ainda estava com as maças de batalha em mãos, preparada para atacar a qualquer sinal de perigo ao paciente - não vai demorar muito para Lena morrer.