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Era uma noite fria, o outono estava praticamente no fim, logo chegaria o temido e rigoroso inverno, as folhas secas eram levadas para longe com o sopro gélido da brisa. Enquanto partiam para o desconhecido, elas dançavam como se o universo fosse um glamoroso palco no qual estava sendo realizado um estupendo recital. O choro da brisa era a melancólica sinfonia que ao longe soava, as árvores nuas despediam-se com tristeza das folhas que partiam, outras poderiam vir com os primeiros raios de primavera, porém não seriam as mesmas.



O céu estava repleto de estrelas que também pareciam dançar, a lua desfilava por uma passarela recoberta por um manto negro cravejado de brilhantes, encabulada, de tempos em tempos escondia-se dos amantes, todavia logo voltava a encantá-los com seu lívido luar cheio de pureza e paixão, ela era mais que sublime, era a dama da noite eterna.

Era sem dúvidas uma linda visão, um lindo relevo montanhoso pelo qual corriam pequenos rios em diversas direções formando vales estreitos e planícies pouco extensas, um esplêndido cenário tal qual o de um cândido conto de fadas, uma terrinha distante que desconhecia a dor e o sofrimento, dominada por uma paz acolhedora que arrancava os corações dos viajantes deixando uma agonizante saudade.

O sono dominava aquela pequena vila com suas garras mortais e silenciosas, crianças, jovens, adultos e idosos sendo embalados por desejos inconscientes que saem sem medo e vagam escuridão a dentro produzindo estranhas figuras, felizes ou tristes? Boas ou más? Não importava, eram apenas sonhos, doces e pérfidos sonhos que mais cedo ou mais tarde morreriam quando olhos, humanos ou não, abrir-se-iam para uma frígida e recém-nascida manhã.

Nem tudo era um completo deleite, procurando mais a fundo, por entre as ruas escuras e quietas, encontrava-se uma singela moradia construída com madeira forte e resistente, uma casa não muito diferente das outras aparentemente, apenas uma morada em meio a um vilarejo pacato e remoto.

O lugarzinho em questão estava lá em meio a outros, pelas janelas notava-se as luzes dos lampiões iluminando internamente a casa, podia-se observar vultos indo e vindo, andavam rapidamente de um lado a outro naquele pequenino espaço, pareciam eufóricos. Gritos finos e estridentes eram emanados pelas paredes de madeira, espalhando-se pela escuridão noturna na qual a pouca população afundava-se quando a luz do sol os deixava.

Qualquer um poderia perceber que os sons vinham do andar de cima, onde haviam três janelas, porém somente uma delas estava sendo iluminada e havia uma certa movimentação por lá. Era um quarto. Nele havia um armário fechado encostado numa das paredes de madeira, um criado-mudo com duas gavetas sustentando uma tigela da mais lúrida porcelana, estava completamente cheia de água recentemente pega em um poço e aquecida em uma panela de barro num fogão à lenha. Ao lado do criado-mudo ficava uma cama de casal onde nela estava deitada uma mulher.

A luz trêmula dos lampiões projetavam estranhas sombras que dificultavam a nítida visão dos rostos presentes no recinto. As gotas de suor e até algumas lágrimas que escapavam ao apertar os olhos, brilhavam no pálido semblante da jovem estendida sobre o leito de níveos lençóis, era ela quem gritava a plenos pulmões como se fizesse questão de interromper o justo e merecido sono no qual seus vizinhos encontravam-se.

Seus negros e volumosos cabelos caídos na altura dos seios, despenteados e opacos, algumas mechas proibiam ver claramente sua face com fortes traços de agonia. Apertava os lençóis de linho entre seus finos e ebóreos dedos, mordia os lábios carnudos e sem cor, fechava seus olhos contraindo-os, franzia o cenho, os gritos eram altos e dolorosos.

Uma mulher aparentemente mais velha estava sentada ao seu lado enxugando suavemente com um lenço o suor e as lágrimas que escorriam pelo rosto da garota de cabelos da cor da noite. Seu aspecto era passivo, como se o tormento da jovem não lhe causasse nenhum tipo de reação, como se isto fosse completamente banal diante de seus olhos e ouvidos, estava quieta, ereta, o olhar atento às expressões de martírio refletidas claramente na figura da moça.

Suas pernas estavam abertas ao máximo que podia, outra mulher, ainda mais velha que as duas estava em sua frente, suas mãos enrugadas seguravam a barriga redonda e volumosa da garota empurrando-a para baixo. A jovem usava uma camisola tão branca quanto os lençóis, a tigela cheia d’água, o lenço que estava sendo usado para enxugar seu rosto, o fino tecido da roupa estava colando em sua pele revelando um corpo magro e quase sem curvas, a julgar pelo abdômen parecia ser feita apenas de ossos, frágil e leve, um descuido e poderia partir-se ao meio.

Havia mais duas mulheres que encontravam-se em pé ao lado da cama, observavam tudo atentas e em silêncio, estariam prontas para qualquer coisa que a idosa que segurava a barriga da jovem agonizando pedisse, seriam suas amigas ou parentes? Isto não era relevante naquele momento, a dor que a pobre moça estava sentindo era inimaginável, nem ao menos seus mais sinceros gritos suplicantes eram capazes de descrevê-la.

A mulher sentada ao lado da donzela mergulhava o pequeno lenço na água morna banhando-o pacientemente, retirava, torcia-o e depois passava delicadamente pelo rosto da garota, fazia isso repetidas vezes e provavelmente não sabia quando iria parar. Os gritos tinham intervalos incertos, isto ocorria quando a jovem tomava fôlego reunindo todas as forças internas que possuía para suportar aquela terrível dor.

A senhora pressionando sua barriga gritava “Força! Força!”, mas aparentemente era tão mais fácil falar. A dor, os gritos, o sofrimento já duravam mais de quatro horas, parecia não ter fim, ninguém naquele quarto saberia ao certo quando o silêncio voltaria a reinar supremo naquela casa, certamente a dama teria de ser forte, poderia gritar, ranger os dentes, apertar os olhos e até os lençóis entre os dedos, entretanto teria de suportar. Seu rosto estava abatido, seu corpo sendo dominado pela dor e o cansaço, podia-se jurar que sua aparência não era de uma juvenil donzela, mas de uma horrenda senhora.

Do outro lado da porta do quarto que estava fechada, havia três homens numa pequena sala de estar localizada no andar debaixo da moradia, dois deles estavam sentados em confortáveis poltronas revestidas de veludo azul claro como o céu numa límpida manhã de verão, o terceiro estava em pé, caminhava de um lado a outro olhando para os próprios sapatos de couro lustrado, apertava uma mão na outra e de cinco em cinco minutos olhava para o relógio cucu de madeira antiga que ficava no centro da parede branca enfeitada com alguns retratos de lindas paisagens remotas e rostos de familiares.

Sua respiração era rápida, porém lutava para mantê-la sob controle, seu semblante transparecia um imenso nervosismo que lhe causava palidez, suas sobrancelhas franzidas, o olhar um instante fixo em um ponto qualquer, outro não sabendo para onde fixar-se, os lábios contraídos, às vezes mordia-os e umedecia-os com a língua, soltava longos suspiros, porém nada que fizesse parecia deixá-lo tranquilo.

Os senhores sentados se entreolhavam sem dizer uma única palavra, um deles aparentando uns cinquenta e cinco anos, cabelos grisalhos, um pouco acima do peso, marcas nítidas do tempo no canto dos olhos castanhos e nas mãos que seguravam um charuto quase chegando ao fim. O outro era magro, transparecia ser um pouco mais novo, porém esta diferença de idade não era tão exagerada, bem vestido com um lindo terno marrom, pernas cruzadas assim como suas mãos, ele e o outro homem também estavam aflitos, porém não tanto quanto o rapaz inquieto.

Um tenso silêncio caía sobre o trio, quebrado apenas pelos gritos da jovem, o que deixava o homem ainda mais nervoso. Notava-se em sua face toques excessivos de ansiedade, uma ânsia repleta de tormento, em seus olhos a indagação de quando isto iria se findar, podia ver que já não mais conseguia suportar, de vez em quando olhava para o teto, como se quisesse muito saber o que se passava lá em cima, o que estaria acontecendo, languescia no silêncio sufocante, a qualquer momento iria correr até o segundo andar, pois já não mais aguentava de curiosidade e aflição.

No quarto, a idosa ainda pressionava a barriga, a mulher paciente ainda enxugava o semblante e a moça ainda gritava freneticamente, a velha olhou para a garota e pediu-lhe para que fizesse o máximo de força possível, provavelmente esta luta dolorosa estava chegando ao fim.

A dama silenciou-se por alguns minutos, fechou os olhos, mordeu a boca, franziu a testa, apertou o lençol entre seus dedos de marfim e respirou fundo, seus lábios antes selados se abriram para emitir um grito tão forte e tão alto vindo de dentro de seu âmago, era sua alma que gritava, sua força fora tão intensa, como se estivesse deixando seu corpo para trás, sua cabeça latejava e pendia, mas havia um macio travesseiro que não a deixava cair, podia sentir o fatal beijo da morte, mas não, não poderia estar morta, a dor era real e esta era a prova de que ainda havia vida correndo em suas veias.

Sentiu-se fraca, por um momento não pôde mais gritar, não pôde mais ser forte, sentia que todas as energias haviam esgotado-se, era como se fosse uma velha boneca de porcelana quebrada, jogada em um canto empoeirado, suja e esquecida, morta. Permanecia com os olhos fechados, não possuía mais forças internas nem ao menos para mexer suas pálpebras, era o fim.

Estava quase desistindo, deixando-se dominar pelo cansaço até que algo a fez abrir os olhos permitindo com que uma deliciosa paz invadisse seu interior tão esmaecido, fazendo sua respiração arfante aos poucos voltar ao normal. Lá no fundo de sua mente, num lugar onde ninguém conhecia, onde estava quase afundando, algo a fez retornar à vida.

Um vagido. Um fino e estridente choro alto e contínuo que preenchia o quarto e emanava pelos quatro cantos daquela modesta casa chegando ao primeiro andar, na sala de estar, exatamente onde estava o trio de cavalheiros tão tensos e ansiosos.

A garota abriu seus olhos tão lentamente, no início tudo parecia coberto por uma soturna bruma, porém depois pôde ver claramente, a senhora à sua frente, ela sorria, notava-se que faltava alguns dentes em sua boca, entretanto isto não a impedia de demonstrar sua felicidade, em suas mãos enrugadas e queimadas de sol havia um tênue e pequenino corpo inquieto e banhado em sangue.

O sangue ao qual dá a vida, uma vida tão frágil e nova, pequenos olhos que ainda nem se abriram para as belezas de um estranho mundo que certamente receberia aquela recém-chegada criatura de braços abertos. Do sangue nasceu, do sangue fora-lhe concedida uma vida que apenas começara, do sangue... O sangue de alguém que muito lutara para que este fraco corpinho crescesse e vivesse.

___ É um menino!___ gritou a mulher, que era uma parteira experiente.

A encanecida jovem de cabelos negros teve seus olhos iluminados por aquela pequena figura agitada, nua, enrugada e ensangüentada, porém bela e graciosa, seus lábios sem cor abriram um imenso sorriso de regozijo, a dor, o sofrimento, o suor, as lágrimas e até os gritos finalmente valeram a pena.

Uma mulher saiu do quarto descendo as escadas em disparada até chegar na sala de estar, ao notarem sua presença, os seis olhos fixaram-se em sua figura sorridente e ouviram atentos sua voz, que disse:

___ É um menino!

Os senhores sentados rapidamente levantaram-se contentes, abraçaram fortemente o rapaz que permanecera em pé durante todo o tempo e naquele instante parecia que uma estranha fraqueza apoderara-se de seu corpo fazendo-o não mais sentir suas pernas, certamente iria desabar sobre o piso de madeira, seu coração acelerou-se, sentiu-se um pouco tonto, todavia reuniu suas forças para correr até o segundo andar.

Chegando lá, o homem ficara com os olhos marejados ao ver a donzela, agora tão tranquila, segurando junto ao seu peito a pequena criatura, havia ainda algumas manchas avermelhadas em seu corpinho e também no manto níveo que fora usado para aquecê-lo, não mais estava protegido, escondido dentro de um útero dividindo emoções com quem ansiosamente o esperava, mas ainda estaria seguro nos braços confortáveis de quem chorou e sofreu e que apesar de tudo, certamente iria amá-lo.

Com um sorriso resplandecente, a moça o convidou a entrar, todas as mulheres que estavam no lugar foram saindo rapidamente, ambos precisavam de um tempo a sós com o mais novo membro da família, queriam conhecê-lo, admirá-lo, senti-lo junto a eles e para isso necessitariam de paz, sem olhares curiosos, sem tumulto, sem preocupações, apenas os três, juntos.

O rapaz sentou-se ao lado da garota, um de seus braços passou em volta do pescoço dela enquanto o outro acariciava o pequenino semblante quieto e adormecido, o casal se entreolhou sorrindo e por fim, uniram seus lábios num apaixonado beijo que deveria suprir os gritos de agonia da memória, os angustiantes gritos que tornarão aquela noite tão tempestuosa, inesquecível.