Nascido Do Sangue

O Calor de seus Lábios Insípidos


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No dia seguinte, acordou com a luz da alvorada banhando seu semblante ebóreo, a primeira coisa que fez foi ocultá-lo com as mãos, percebeu que fora a jovem criada quem abriu as cortinas, ela ainda estava no quarto, então disse:

___ Já falei para não abrir as cortinas, essa luz machuca meus olhos ___ sua voz ainda trazia vestígios de sono e cansaço.

___ Oh, senhor, îmi pare rău, não vou mais cometer esse erro.

A criada ia fechá-las, mas o ferreiro a deteve:

___ Não é necessário fechá-las agora, já despertei.

___ Rău, senhor.

___ Não se preocupe ___ disse ele levantando-se como uma múmia saindo de sua tumba.

___ Sente-se melhor esta manhã?

O adolescente a encara e sorri.

___ Como nunca, dragul meu¹.

A garota sentiu um certo arrepio, porém não conseguiu saber se era medo ou fascinação por aquele sorriso que a tantos encantava.

___ Quer que prepare seu banho?

___ Da, eu quero.

___ Em um minuto, senhor.

Ionel surpreendera-se ao ver o filho descer rapidamente as escadas sentando-se à mesa para o desjejum e cumprimentando-o todo sorridente.

___ Você está bem, fiu?

___ Estou ótimo, tata, melhor impossível!

___ Tem certeza?___ perguntou o pai curioso e preocupado.

___ E por que não teria?___ retrucou o filho com naturalidade e espontaneidade.

___ Ontem estava ardendo em febre, passou a tarde toda dormindo e soando frio!___ contou o homem.

___ Mas hoje estou bem ___ concluiu o rapaz.

___ Como isto é possível? Uma febre tão alta não passa tão rápido assim?

___ Nu știu, só sei que estou bem e que vou trabalhar hoje com o senhor, tata.

Ionel olhou seriamente para o moço franzindo as sobrancelhas, porém nada disse, estava radiante por dentro pela cura súbita do filho, não queria causar discussões que julgava desnecessárias, os dois tomaram o café da manhã harmoniosamente.

Enquanto pai e filho faziam o desjejum, Viorica estava picando alguns alimentos para preparar o almoço, ela então buscou a tigela com carne crua banhada em sangue e água salgada, para sua surpresa toda a carne havia sumido, seus olhos quase saltaram de tão arregalados que ficaram, até que os apertou numa expressão de suspeita, olhou na direção do jovem Petrescu com a testa franzida e admirou o modo como sorria e devorava as frutas, o pão e engolia seu suco sem nem ao menos sentir o sabor.

À tarde, enquanto estava na ferraria, o garoto ao olhar para fora viu Rosalind em uma banca de frutas um pouco ao longe, sentiu-se hipnotizado, lembrou-se do rosto dela há duas noites quando passara com Benjamin em frente à casa da dama, estava com os cabelos soltos e cacheados, usava uma camisola lúrida como a lua e tão delicada quanto à própria jovem.

Não conseguiu mais pensar em que estava fazendo, apenas queria vê-la até sumir na multidão, poder admirá-la não era o bastante, porém era o que podia ter, ele a tinha através de um olhar, de um sorriso, de um toque que para ela poderia parecer amigável, mas para o moço era algo mais, era sincero e intenso, algo que parecia que a donzela nunca poderia desconfiar.

A bela senhorita percebeu os olhares do rapaz e sorriu, Petrescu sentiu suas pernas bambas e por um instante não sabia o que fazer, julgou-se um tolo, entretanto decidiu deixar por um minuto o intenso esforço na ferraria e ir falar com sua amada.

___ Bună ziua, domnișoară ___ cumprimentou o rapaz beijando-lhe a mão.

___ Bună ziua, domn, como tem passado?

___ Ótimo, para ser sincero.

___ Não foi bem o que me disseram.

___ O que lhe falaram?___ inquiriu o garoto curioso.

___ Seu pai dissera que ontem estava ardendo em febre.

___ Certamente, porém como vê, já estou curado!

___ Como pode, Damian?___ surpreendeu-se Rosalind.

___ Eu não sei, simplesmente estou bem e isso não é o que importa?

___ Sim, mas...

___ Então não há nada com o que se preocupar.

A garota sorri com ternura.

___ Tem razão. Ah, Damian?

___ Da?

___ Gostaria de dar uma volta comigo no bosque esta noite?

O ferreiro sentiu seu coração bater mais forte, tanto que pensou que rasgaria seu peito para saltar e correr eufórico para onde não poderia recuperá-lo, suas mãos tornaram-se trêmulas, o adolescente engoliu seco procurando controlar também sua respiração, precisaria obter rapidamente uma resposta que aplacasse ou somente disfarçasse seu nervosismo.

___ Ah, esta noite?___ gaguejou ele.

___ Há algum problema para você?

___ Não, não há problema algum, mas...

___ Mas o quê?

Embora o garoto quisesse dizer todas as coisas que estavam se passando por sua mente, preferiu responder suspirante:

___ Nada, é ótimo.

A dama sorri e diz ao menino:

___ Até à noite.

___ Até.

Todo o resto da tarde Damian ficara pensativo, não sabia o motivo de a garota sugerir aquele passeio, não sabia o que faria, o que lhe diria, somente estava ansioso, estariam apenas ambos sozinhos às margens do brando lago, banhados pelo ardoroso luar.

Ao fechar o estabelecimento, Ionel notou que o filho estava impaciente ao organizar as ferramentas, observou as mãos ainda mais pálidas e agora com um toque de tremor do jovem e resolveu indagar:

___ Está tudo bem, fiul meu?

___ Ah está, tata, está tudo bem.

___ Tem certeza?

___ É claro, por que não teria?

___ Está certo, quer que eu termine de guardar tudo?

___ Não será necessário, pode ir se quiser, eu... Vou ficar bem.

___ Quer mesmo que eu vá, fiu?

___ Fique tranquilo, tata, pode ir.

___ Tudo bem, espero você para o jantar.

___ Certo, estarei lá.

___ Até mais, meu garoto.

___ Até.

Damian observou o pai distanciando-se, foi até lá fora para certificar-se de que o homem estava mesmo seguindo para a casa e que não voltaria para saber se estava tudo bem, voltou a trancar tudo com pressa e impaciência.

Estava andando por entre as árvores do bosque, a escuridão derramava-se por sobre cada centímetro do vilarejo, principalmente por sobre o adormecido bosque, ouvia-se apenas o som das folhas secas quebrando-se sob seus pés, o que era estranho, não havia nem ao menos o som de grilos ou cigarras naquela noite, era um silêncio sufocante e misterioso, porém belo e necessário para que o moço retomasse a calma interior.

Ao chegar às margens do lago ele não a encontrou, estava sozinho, tendo apenas a lua como companhia, uma fria tristeza brotou em seu peito acompanhada de uma dolorosa decepção, sabia que seria bom demais para ser verdade, aquilo só poderia ser um devaneio que tivera, Rosalind nunca que iria querê-lo, nunca que desejaria sua companhia, nem em seus mais doces sonhos ela iria ser sua.

O rapaz já estava fazendo o caminho de volta para casa quando ouviu passos, deteve-se e esperou pelo que ou quem estaria por vir, seus olhos resplandeceram e um enorme sorriso se abriu ao vê-la surgindo das sombras como um anjo imaculado.

___ Desculpe o atraso ___ disse ela com um tímido sorriso que fez o jovem novamente bambear as pernas.

___ Ora, não há problema algum ___ respondeu sorrindo também.

Ficaram sentados por vários minutos sobre um tronco perto do lago, o ferreiro não sabia o que dizer, pensou também que palavras não seriam necessárias, aquele momento estava magnífico como estava, poder tê-la tão perto e apenas para si durante alguns instantes era tudo que sempre sonhara.

Sentia-se nervoso junto daquela garota, a profunda sensação de dedos grossos e tão fortes apertando sua garganta, deixando-o sem ar, seu coração diminuindo de tamanho, seu sangue sendo drenado, o nervosismo o matava aos poucos, até que se tornasse apenas pele e ossos, pois até sua carne apodrecia quando no silêncio e na ansiedade ele morria.

Movia lentamente os olhos para poder observá-la, Rosalind estava com a cabeça apontada para frente, seu fino nariz indicava o brilho trêmulo da lua refletida na água cristalina, embora escura do lago, o vento suspirava em sua nuca fazendo dançar alguns fios de cabelo que perdiam o brilho afogueado para ganharem um tom azulado e noturno, em suas pequeninas mãos, luvas delicadas sendo esmagadas entre seus dedos, isto era um sinal de que também estava nervosa, mas Petrescu não sabia se este nervosismo era bom ou ruim.

___ Quem era aquele sujeito ao seu lado quando passou em frente à minha casa há duas noites?___ inquiriu a donzela iniciando um diálogo.

___ Um amigo.

___ Nunca o vi antes por aqui.

___ Ah, ele viaja muito com a família ___ mentiu ele de nada sabia sobre Grigore, muito menos sobre sua família, porém saberia que seria confuso ter de explicar à menina.

___ Entendo.

Novamente o silêncio tomou conta do lugar, todavia por pouco tempo.

___ Há tempos não conversávamos ___ disse ele um tanto empolgado por começar um assunto.

___ Nós nunca conversamos ___ retrucou ela virando a cabeça na direção do rapaz.

___ Como assim?

___ Somos amigos desde a infância, mas nunca nos conhecemos realmente, parecemos dois estranhos.

Rosalind notou que Damian franzira o cenho como se não conseguisse entender.

___ Sempre que tento falar com você alguma coisa me impede.

___ Como o que?

___ Seu pai, outras pessoas, Tristan, você...

___ Eu?___ Petrescu pareceu ainda mais confuso.

___ Está sempre divagando em seus próprios pensamentos, não sei se prestaria atenção em mim.

___ Ora, Rosalind, eu não sou assim!___ falou o adolescente um tanto ressentido pela acusação da donzela.

___ Sim, você é, Damian, sempre foi e isso não deixa-me aproximar. Seus devaneios são como uma fortaleza que lhe prendem e escondem do resto do mundo, o pior é que nem mesmo você consegue perceber isso.

___ Perdoe-me se lhe aborreço por ficar calado e não fazer nada ___ o rapaz deu de ombros.

___ É exatamente isso que me aborrece.

___ Rose, eu não estou conseguindo entender, aonde quer chegar com este assunto?

___ A lugar algum, apenas quero me aproximar de você.

___ Ora e por acaso posso saber o motivo desta aproximação tão repentina, pois meu modo de ser nunca lhe incomodara?!

___ Está enganado, o fato de nunca termos tanto contato sempre me incomodou e muito!

___ Eu não sabia... ___ confessou o garoto.

___ Como poderia saber perdido em pensamentos?

Um forçado silêncio se formou entre o casal, Damian queria dizer tantas coisas a ela, mas nada saía por sua boca, suas cordas vocais pareciam ter evaporado e fugido por seus lábios no último suspiro que exalara.

___ Eu... Queria lhe fazer uma pergunta ___ disse a garota novamente revivendo a conversa.

___ Pode fazer.

Alguns segundos de silêncio, como se a jovem estivesse tentando encontrar as palavras certas para moldar sua questão.

___ Gostou de seu prêmio?

___ O que?___ inquiriu o ferreiro mais uma vez confuso.

___ A viúva Voiculescu ___ explicou Rosalind ___, gostou de tê-la ganho acompanhada da vitória do esporte mais adorado entre o povo do vilarejo?

___ E por que eu não gostaria?

A moça riu, um riso aparentemente irônico e impaciente.

___ É claro! Todos os homens almejariam estar em seu lugar naquela noite.

___ Por que me fez esta pergunta?

___ Por nada, queria saber se você era como os outros.

___ Acha mesmo que sou como eles?

___ Aparentemente sim.

___ Não, não sou. Se lhe serve de consolo, não fiquei tão feliz e não me senti tão realizado.

O ferreiro não pôde notar o súbito brilho no olhar da donzela.

___ Nu?

___ Nu, eu me senti incomodado... Ah é embaraçoso para mim revelar tais coisas para uma dama como você.

___ Entendo.

___ E você?

___ O que?

___ Ficou satisfeita por ser destinada a Tristan?

Rosalind ficara sem fala, sua boca estava entreaberta, mas nenhum som era emitido, não conseguiu encontrar resposta para esta questão e temia que seus olhos revelassem algo que tentava esconder até de si mesma.

___ Não sou eu quem escolho a quem devo ser destinada, sou apenas um prêmio e nada mais.

___ Mas e se pudesse escolher... ___ falou Damian hipoteticamente.

___ Os competidores também não podem escolher ___ disse ela tentando mudar o foco do assunto.

___ O senhor Costel é quem escolhe as donzelas.

___ Gostaria que alguém em especial fosse destinada a você?

___ Como quem?

O coração da senhorita bateu mais forte, procurou agarrar com suas narinas o máximo de ar que podia para que, em seus pulmões, pudesse transformar-se em coragem para prosseguir e então conseguiu e perguntou sem pensar duas vezes, pois sabia que iria se arrepender da pergunta:

___ Gostaria que eu fosse seu prêmio?

O rapaz arregalou os olhos que eram ainda mais belos iluminados pelo luar e então inquiriu:

___ Por que está me fazendo esta pergunta?

Os olhos de Rosalind fitaram-no por alguns segundos, notava-se o esforço em ter de suportar algo que já não havia outra alternativa, sua boca novamente se entreabriu tremendo levemente como se quisesse articular alguma palavra ou formar uma frase inteira, mas o nervosismo mais uma vez a emudecia, seus olhos de mel buscavam os olhos de Damian ansiosos pela resposta que nunca iria se pronunciar, ela então o beijou.

Fora algo tão repentino que o jovem mal pôde entender o que estava se passando, suas preciosas safiras quase saltitaram com pedrinhas arremessadas na água, os lábios de Rosalind unidos aos seus num súbito movimento, alguns poucos segundos em que ambos permaneceram interligados, as mãos dela torciam as delicadas luvas enquanto as dele segurava seu corpo sobre o tronco para não cair, estava surpreso e eufórico que quase não podia crer que aquilo fosse real, todavia algo o fez desviar sua atenção, algo que o surpreendera e amedrontara.

O garoto podia jurar que era loucura, mas conseguiu ouvir atentamente as batidas do coração da bela donzela, sabia que estava nervosa e pôde ouvir o sangue dela correndo ainda mais veloz por suas veias, sentiu suas rosadas e quentes mãos atirando as luvas ao chão de terra e indo em direção ao seu semblante, aquilo era terrível, porém os sons somente o faziam querê-la ainda mais, como quando quis devorar vorazmente aqueles pedaços de carne.

Assustado, Damian afastou levantando-se, sua respiração estava esbaforida, estava confuso, não conseguia entender o que acabara de acontecer, o beijo repentino seguido destas estranhas sensações, ouviu passos aproximando-se e a voz da adolescente perguntando em tom preocupado:

___ O que houve?

Aos poucos o rapaz foi se virando até poder ver o rosto da senhorita Iordache, estava confusa também, seus olhos de mel o encaravam com dúvida, espanto e um tanto de preocupação.

___ Eu não sei... ___ respondeu o garoto ___ por um minuto pensei...

Ao fitar os olhos da amada, decidiu não continuar o relato, de alguma forma, não queria assustá-la ainda mais, estava confuso e um pouco apavorado, não conseguia continuar, não podia explicar nem para si mesmo o que acabara de ocorrer.

___ Nada, não houve nada ___ dito isto, pôs-se a caminhar rumo às árvores.

___ Aonde vai?___ pergunta Rosalind desentendida.

___ Eu... Preciso ir para casa, nos vemos amanhã.

___ Damian, não pode ir agora, Damian! Damian!

O rapaz continuou caminhando, passos incertos, sua mente estava transtornada e assustada, estava nervoso, não conseguia entender o que houve, sentia-se mais intrigado ainda por ser a segunda vez que isso lhe acontecia, lembrou-se de quando estava fazendo amor com a viúva Voiculescu e pôde ouvir o sangue dela correndo, as batidas de seu coração, sentir a temperatura de seu corpo aumentar, o mesmo que ouvira e sentira há minutos com Rosalind.

O sangue tinha um som parecido como quando alguém mergulha a cabeça sob a água, todos os ruídos são distintos e abafados e o coração batendo era como o eco de um tambor ou um poderoso trovão anunciando tempestade.

Uma estranha dor de cabeça apossou-se do ferreiro, sua visão ficou embaçada, entretanto continuava andando, mesmo não sabendo mais em que direção seguir, mais árvores pareciam brotar em seu caminho, duplicavam, triplicavam, quadruplicavam tornando-se milhares, uma estranha neblina dançando envolta aos troncos adormecidos e o silêncio reinando supremo.

Petrescu apoiou-se no tronco de uma das árvores, estava com dificuldade para respirar, por um momento sentiu que não havia ar em seus pulmões, algo o sufocava, pensou que fosse o medo, mas medo de quê? Nem mesmo ele sabia responder, estava em pânico, imagens soturnas que apenas lhe assombravam ao dormir agora estavam lancinando-o, a visão nítida da adaga de prata com o gume banhado em sangue, as gotas de rubi pelo chão, os olhos azuis...

Sua cabeça pesava à medida que seu corpo flutuava, era um truque doentio de uma mágica inexplicável, quanto mais sentia-se leve, mais pendia para baixo em direção ao solo, quanto mais sua cabeça aumentava sua massa ilusoriamente, mais a sensação de suavidade enterrava-se em seu peito.

Tentou continuar seu trajeto buscando apoio nos troncos, passos lentos que faziam aumentar ainda mais sua enxaqueca, procurou não se importar, todavia estava ficando difícil, sentia que a qualquer instante iria cair e perder os sentidos, estava lutando contra si mesmo.

Chegou o momento em que não mais pôde resistir, o garoto não mais sentia o chão sob seus pés, sentiu-se caindo, porém não havia chão, parecia que havia pisado em falso em um buraco que logo se revelava um abismo, até onde iria cair? A última coisa que viu, pois fizera um enorme esforço para continuar lúcido, foram braços envolvendo-o com força o suficiente para não deixá-lo tocar o chão, após isso veio a névoa que o fez entregar-se, estava vencido!