Nascido Do Sangue

A Fome Falou Mais Alto


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Naquela noite novamente o tormento, o rapaz franzia o cenho e transpirava enquanto movia-se inquieto amassando os lençóis e até apertando-os entre seus lívidos dedos, sonhava com uma noite de tempestade, o som dos trovões e da chuva, como lágrimas, escorrendo pelo vidro de sua janela, os relâmpagos eram a única luminosidade em meio a uma incomum escuridão, esta que não sabia de onde vinha, porém sempre estava ali para cobrir seus olhos.

De dentro das trevas, novamente o brilho mórbido da formidável arma branca, o ruído da carne sendo dilacerada, um grito rasgando a noite, o sangue gotejando pequenos rubis e agora, os lancinantes olhos azuis intensos e reluzentes, a adaga refletida dentro deles e então o ferreiro desperta.

Estava esbaforido, sentou-se na cama procurando retomar a respiração ao ritmo normal, olhou em volta e sentiu-se tranquilo ao perceber que tudo mais uma vez não passou de um sonho ruim, como tantos outros que ultimamente não mais lhe deixavam ter uma noite inteiramente calma de sono.

Repassava as imagens em sua cabeça sem entendê-las não tinha certeza se era mesmo o que pareciam, pois tudo lhe era entregue em meio a uma penumbra misteriosa, às vezes conseguia captar apenas vultos voando por seu subconsciente. Todas aquelas imagens corriam rapidamente sem pausar uma única vez para que pudesse prestar atenção aos detalhes, o que aquilo significava?

Levantou-se com certa dificuldade, estava sentindo uma leve tontura e dor de cabeça, um ardor corria ligeiro por seu corpo, pensou ainda estar febril, seus passos eram incertos e lentos, caminhou em direção à porta, depois foi descendo as escadas vagarosamente apoiando-se nas paredes e no corrimão de madeira.

Ao chegar à cozinha, havia uma jarra d’água sobre a mesa, encheu um copo bebendo alguns goles que nem ao menos sentira o sabor, apesar de a água ser insípida, o primeiro gole para alguém que está morrendo de sede é tão doce e suave quanto um refinado vinho do porto, parou e colocou o copo sobre a mesa suspirando pesadamente, quando sentiu um cheiro estranho, porém bom, bom de um jeito espantoso, era doce, entretanto não se parecia com nenhum outro odor que se lembrava.

Deixou seu olfato guiá-lo para saber de onde vinha aquele cheiro tão doce e até delicioso, surpreendentemente não mais se importou com a dor de cabeça ou com a tontura, queria no momento saber de onde vinha aquele aroma que agarrava-se às suas narinas sem querer largar, e ao encontrá-lo, espantou-se.

Seus olhos não mais moveram-se para outra direção ao perceber que o cheiro vinha de uma carne crua que estava sobre a pia numa enorme tigela, estava imersa em água misturada ao sal grosso, provavelmente seria feita no dia seguinte para o almoço, o olhar fixo do rapaz fez com que ouvisse o som de seu estômago roncando.

Aproximou-se da pia olhando bem para o alimento cru, sentia fortemente o perfume que o guiava para cada vez mais perto, era doce e salgado ao mesmo tempo, assustou-se também ao poder sentir o cheiro do sangue que estava misturado à água, era fraco, pois o sal grosso encobria quase todo o aroma, seu estômago começava a incomodar, estava vazio, não comera nada o dia todo, apenas dormira, aquela fragrância suculenta o estava torturando.

Passou a língua por entre os lábios numa atitude involuntária, percebeu que começou novamente a transpirar, dessa vez não pela febre, mas pelo medo, pelo nervosismo. Medo por estar sentindo um cheiro que nunca na vida havia podido sentir e que agora era tão forte quanto um perfume usado por uma bela e jovem donzela, nervosismo por estar sendo dominado por esse odor tão peculiar, sempre acreditou que a carne crua não tivesse cheiro, mas agora seu corpo todo tremia e cada tremor era como um eco avisando-lhe de que por todos esses anos, o ferreiro estivera errado.

Levantou as mãos rumo à tigela, ainda relutando contra suas próprias ações, mas a cada ronco de seu estômago, seu cérebro esquecia-se da razão, sendo movido pelo instinto, o mais primitivo instinto já conhecido pelos homens. Mergulhou uma das mãos na água salgada e de lá retirou um pedaço, presumiu que fosse carne de vaca, aquele aroma estava acabando consigo, estava faminto. Ficou olhando para aquele alimento mole e molhado em suas mãos e a cada segundo que o cheiro suculento da carne, do sal e do sangue entranhava-se em seu pulmão como uma espécie de parasita, sua respiração se exaltava mais e mais. Estava com medo, nervoso, pensou até estar tendo um delírio por conta da febre alta, mas jurava que podia sentir o cheiro do sangue, parecia sussurrar pedindo por seus lábios, por sua língua tocando-o tão delicadamente, entrando em cada uma de suas papilas gustativas e explodindo docemente em sua boca, temia não resistir a tal qual pedido.

Fora exatamente o que aconteceu, finalmente reclinara-se, fora fraco, um tolo vencido pelos seus instintos selvagens. Abocanhou o alimento mordendo-o repetidamente, e a cada vez tentando retirar pedaços ainda maiores, mal conseguia mastigar, parecia uma fera sedenta devorando uma presa.

Pôde sentir... Era algo incomum, único, como se nunca tivesse sentido isto antes, o sabor era tão melhor do que se a carne estivesse cozida, assada ou de qualquer outra forma, estava tão deliciosa que não conseguia controlar-se, ao terminar o primeiro pedaço logo começou a devorar outro e mais outro e mais outro, não parou até notar que não havia restado nada.

O sabor era mais vivo e o comparou como um prolongado beijo repleto de calorosa paixão, a carne macia entre seus dentes era como lábios de uma garota, imaginava a figura de Andreea, pois era a única a qual havia beijado e entregado de forma tão frívola e repentina sua virgindade, pensou até ser melhor do que um beijo ou um ato de luxúria e prazer, o gosto da carne e do sangue misturado a ela dentro de sua boca fora algo único e magnífico.

Quando terminou estava esbaforido, havia até prendido a respiração para não desperdiçar nem uma fração de segundo inspirando e expirando, aproveitou cada pedaço frio e cru daquela carne sendo fatiada e triturada entre seus lívidos dentes e forçosamente saboreada por sua língua que explorava cada novo e marcante sabor.

Olhou seu reflexo na água dentro da tigela, havia um pouco de sangue em sua boca, um leve gosto salgado em seus lábios, fora uma deliciosa refeição, Damian notou que a dor de cabeça se foi levando consigo também a tontura, constatou que a febre também passara junto com a fome, estava ótimo, como se apenas o pecado da gula houvesse curado-o.

Passou novamente a língua entre os lábios e lambeu os dedos, sentiu uma estranha paz interior, um sossego incomum como se após uma terrível tempestade um arco-íris surgisse em sua cabeça e um forte sono começou a tomá-lo. Subiu novamente para o quarto caindo em sua cama, imediatamente pegou no sono.