– O quê? O que queres dizer com isso, Cynthia? – Perguntei totalmente confusa. O que ela queria dizer em doar parte do meu fígado para o pai?

– Alice, ligaram-me de manhã do hospital a dizer que o pai está internado com uma cirrose. Depois que a mãe o deixou, ele começou a beber. A beber muito, Alice. Eu tentei controlá-lo mas ele estava cada vez pior, não conseguia fazer nada. Agora, ele não irá conseguir sobreviver se não receber um transplante de fígado. – Explicou a Cynthia. – Eu fiz testes para ver se era compatível com ele, mal cheguei ao hospital, estive até agora para saber os resultados. Eu não sou compatível, Alice. Se eu pudesse doar uma parte do meu, nunca te pediria algo tão grande como isto. O médico também disse que poderia ser perigoso para a minha gravidez e que também não me aconselhava a doar. – Falou a Cynthia.

– Cynthia, tu tens a noção daquilo que me estás a pedir? – Perguntei meio atónica. – Estás-me a pedir para doar parte do meu fígado a uma pessoa que atormentou toda a minha infância e adolescência, a quem me chamou de puta e pôs-me para fora de casa sem dinheiro quando descobriu que eu estava grávida e sozinha. Ele magoou-me tanto, Cynthia, mais do que tu me magoaste, mais do que a mãe me magoou. – Disse-lhe um pouco alterada.

– Eu sei, Alice. Eu sei. E sei que tens todo o direito de decidires não doares parte do fígado e eu vou ter que aceitar a tua decisão porque estás no teu direito e estás a ser mais do que justa, Alice. – Disse a Cynthia, suspirando no final. – Alice, eu não consigo imaginar como te sentes em relação a isto tudo, neste momento, entendendo perfeitamente que o pai e a mãe foram mais dos que cruéis contigo. Eu culpo-me por não ter sido uma irmã melhor, por nunca te ter apoiado e por em alguns momentos ter mesmo te humilhado por saber que os pais me amavam mais. Tens todo o direito de desprezá-lo, Alice, todo o direito, isso consigo compreender, até acho que se fosse eu ficaria um pouco feliz por ele de alguma forma estar a pagar por tudo o que fez. Mas para mim é diferente, Alice, ele é meu pai. Ele esteve presente em cada momento da minha vida, levou-me a brincar para o parquinho, fez todas as minhas vontades, torceu por mim em todas as atividades em que eu participava, mesmo sendo um pouco bobas, me abraçou quando eu tive medo e sempre me ajudou, em tudo. Não achas que a Amber faria qualquer coisa para salvar o Jasper, mesmo que eles estivessem chateados? – Perguntou desesperada. – Se não conseguires fazer isto por ele, faz por mim, Alice. Estou a implorar-te. Esquece que ele é o homem que te fez tanto mal, pensa nele como um estranho. Não permitas que o meu pai morra, Alice. Nestes poucos dias, tenho convivido contigo e já consegui perceber o quão nobre e boa és para fazer isso. Eu imploro-te, Alice.

– Cynthia, o problema não é conseguir ver ele como um estranho, ele é um estranho, para mim. Eu nunca o vi como um pai. Ao longo de toda a minha vida, eu consigo contar pelos dedos das mãos as vezes que ele falou comigo e consigo afirmar com toda a certeza que todas essas vezes foram para me deitar abaixo.

– Eu sei, Alice. Mas tal como ele foi um péssimo pai para ti, ele foi ótimo para mim. Eu não sei se consegues perceber isso, mas ele é meu pai. Por mais que ele me tenha magoado, ele é meu pai e eu amo-o acima de tudo. Não quero que ele morra, quero-o bem e saudável. Por favor, Alice! – Implorou ela com algumas lágrimas a escorrerem-lhe pela face. Eu conseguia perceber o desespero e o sofrimento dela, mas eu não sabia o que fazer. Eu estava tão confusa. Ele nunca me deu nada na vida a não ser sofrimento e agora a vida dele dependia da minha. Era demasiado para mim. Eu não sabia o que fazer.

– Cynthia, a Alice precisa de pensar, ela não vai conseguir dar uma resposta agora. Ela precisa de estar um pouco sozinha e pensar. É algo demasiado grande para ela responder por impulso, dá-lhe um tempo. – Disse o Jasper. Ele sabia sempre o que ia na minha cabeça. – E Cynthia, a Alice pode não ser compatível com ele também, tens de pensar nessa hipótese, sim? Não tenhas demasiadas esperanças, se não vai ser pior. – Advertiu o Jasper.

– Sim, Jasper, eu sei. – Respondeu ela. – Eu não te quero pressionar, Alice, mas não te posso dar muito tempo. Ele está em estado grave, precisa urgentemente do transplante.

– Eu vou pensar, Cynthia. Não te prometo nada, mas eu vou pensar. Depois digo-te alguma coisa. – Respondi.

– Obrigada, Alice. – Agradeceu sorrindo um pouco. – Vou andando, já está tarde. Falamos depois. – Disse ela beijando a minha bochecha e despedindo-se do Jasper.

– Vai com cuidado, Cynthia. – Aconselhei quando ela saiu de minha casa, ela apenas sorriu e entrou no carro, indo embora. Assim que fechei a porta principal da casa, atirei-me para os braços do Jasper. Só aí é que me iria sentir bem e segura neste momento.

– Eu não sei o que fazer! – Disse com o rosto encostado ao seu peito.

– Seja qual for a tua decisão, eu irei apoiar-te. – Tranquilizou-me, beijando-me carinhosamente na testa. – Vamos dormir. Amanhã, pensas sobre o assunto. Precisas de descansar em primeiro lugar. – Concordei com a cabeça e segui-o até ao quarto. Vestimos o pijama e depois enfiamo-nos na cama. Ele puxou-me para perto dele e eu aconcheguei-me, sentindo, imediatamente, o meu corpo a relaxar. Adormeci pouco tempo depois e tive uma noite tranquila. Quando acordei, o Jasper já não estava o meu lado, o que queria dizer que já devia ter ido trabalhar e ter levado as princesinhas para a escola. Espreguicei-me e levantei-me, indo, de seguida, até ao quarto do Will para ver se ainda se encontrava a dormir. Quando entrei no quarto, ele encontrava-se a dormir ainda, por isso, sai cuidadosamente e fui até a cozinha para tomar o pequeno-almoço.

Eu tinha que dar uma resposta à Cynthia, o mais rápido possível, mas eu não sabia o que pensar. Tudo o que sabia era que ele não merecia nada vindo de mim, nada. Ele fez-me tanto mal, mas eu não sei se conseguiria viver com a culpa de saber que foi por minha causa que ele não conseguiu sobreviver. E a Cynthia? Como reagiria se eu dissesse que não. Ela disse que compreendia mas será que compreendia mesmo? E se ela, depois de eu dizer que não, não quisesse maia nada comigo? Mesmo que ela ficasse bem comigo, será que eu conseguiria ver o sofrimento que lhe causei? Eu não sabia, realmente, o que fazer. Quando dei por mim, já tinha o telemóvel na mão e já tinha marcado o número da Rose. Eu precisava de falar com ela, precisava da ajuda dela. Carreguei no botão para ligar-lhe e fiquei à espera que ela atendesse.

– Olá, Alice. – Disse ele alegremente assim que atendeu o telemóvel.

– Rose, preciso de ti. – Disse simplesmente.

– O que se passa, Alice? Está tudo bem? – Perguntou já preocupada.

– Não, quer dizer mais ou menos. Eu preciso de falar contigo. Não sei o que fazer. – Respondi.

– Estou a ir para tua casa, agora. Espera um pouco, sim? – Disse ela. Respondi um sim e depois de nos despedirmos, desliguei o telemóvel. Acabei de comer e fui outra vez ver do Will e ele tinha acabado de acordar. Vesti-lhe algo confortável para ele andar à vontade a brincar por casa e depois dei-lhe o pequeno-almoço. Quando ele estava prestes a acabar, tocaram à campainha. Pedi para ele ficar sossegado e fui atender a porta. Era a Rose.

– Alice, o que se passa? Deixaste-me preocupada contigo. – Disse a Rose assim que entrou para o hall.

– Já falamos, Rose. Deixa-me só ir buscar o Will à cozinha e pô-lo a brincar. – Disse-lhe. Fomos as duas em direção à cozinha e assim que o Will viu a Rose abriu um sorriso enorme. O Will era muito ligado a todas as pessoas da família.

– Tia Rose! – Exclamou ele num gritinho entusiasmado. – Já tinha saudades tuas. – Disse ele com um biquinho fofo. A Rose pegou nele ao colo e beijou-lhe a bochecha rechonchuda.

– Meu lindo! Como estás? A mamã anda a tratar bem de ti? – Perguntou ela na brincadeira

– Claro que está, tia Rose. Ela é a melhor mamã do mundo! – Respondeu ele fazendo-me sorrir bobamente. Eu adorava os meus filhos e saber que esse amor era reciproco deixava-me imensamente feliz.

– Eu sei, meu lindo. A tia está a brincar. – Disse ela sorrindo ternamente. – Porque não vais ver televisão, Will? Acho que está a dar aqueles desenhos animados que gostas de ver. A tia precisa de falar com a mãe.

– Está bem, tia. Mas depois vais ficar um pouquinho comigo, sim? – Perguntou ele, voltando a fazer biquinho

– Claro que sim, meu lindo. Vai lá, que a tia já vai ter contigo. – Respondeu a Rose, colocando o Will no chão. – Se precisares de algo, entretanto, chama. – Avisou. Assim que ouvimos o som da televisão a Rose voltou a falar. – Então, Alice, o que se passa? – Perguntou agora com a preocupação estampada no rosto.

– A Cynthia veio cá ontem e pediu-me para eu doar parte do meu fígado ao nosso pai. Eu sei que ela o ama e que ele foi um bom pai para ela, mas ele magoou-me tanto, Rose. Eu não sei o que fazer. Por um lado acho que ele não merece nada vindo de mim mas por outro acho que nunca conseguirei viver com a culpa de causar tanto sofrimento à minha irmã, ou de simplesmente ter deixado uma pessoa morrer. – Expliquei. – Eu não sei o que realmente fazer. – Disse por fim.

– Alice, tens de fazer aquilo que o teu coração quer. – Respondeu a Rose. – Eu vou ser sincera contigo. Eu odeio o teu pai, odeio do fundo do meu coração. Sei que não se deve odiar mas é tudo o que eu sinto por ele. Ele fez-te mal e eu assisti a tudo sem poder fazer nada. Ele magoou-te muito. Vi-te muitas vezes chorar por causa das coisas que ele te disse ou fez. Por mim, ele merece morrer, merece pagar por tudo o que te fez durante anos, mas eu conheço-te Lice. Tu és uma pessoa tão boa. Tu não vais conseguir viver com a culpa. Pode até parecer, que irá ficar tudo melhor quando ele morrer, mas não vai ficar. Vai destruir-te, não doares parte do teu fígado a ele. Vai arruinar-te, Alice, eu sei que sim e eu não te quero ver assim, não outra vez. Tu mereces tanto e eu só te quero ver feliz. – Disse a Rose. – Isto que eu vou dizer vai contra tudo aquilo que eu sinto, Alice, mas é por ser tua amiga que te vou dizer isto, acho que deverias doar parte do teu fígado se isso não te destruir, Alice. A culpa, tenho a certeza que te irá destruir, agora, doar o fígado, irá? – Perguntou ela.

– Não sei, Rose. Eu não sei o que pensar. Ele é um estranho, nem consigo considerá-lo um pai, ele nunca o foi. Mas eu acho que não conseguiria continuar a viver sabendo que poderia salvar alguém e não salvei. Eu sei que todos merecem novas oportunidades, mas não sei se consigo dar outra ao meu pai.

– Não precisas de dar, Alice. Não precisas de falar com ele, nem de o ver. Se aceitares, só precisas de doar a parte do teu fígado e seguires com a tua vida, normalmente. Como se não soubessem a quem irias doar o teu órgão. Apenas isso.

– Achas que poderia fazer isso? – Perguntei.

– Acho que sim. – Disse ela muito sincera. – Mas como eu disse, faz o que o teu coração te diz, isto é apenas a minha opinião, Alice. – Declarou.

– Eu sei, Rose. Muito obrigada. Ainda não decidi mas consigo ver as coisas mais claramente.

– Qualquer decisão que tomares, vou estar ao teu lado, o caminho todo. Como sempre estive, Alice. – Disse ela.

– Eu sei, Rose. Eu sei. – Respondi abraçando-a. – Adoro-te, Rose. Obrigada por tudo. – Disse beijando a sua bochecha.

– Não precisas de agradecer, és como uma irmã para mim. – Disse ela, sorrindo ternamente. – Agora, tenho que ir ter um pouco com o meu sobrinho. – Comentou ela rindo um pouco.

– Está bem, vai lá. Vou fazer o almoço, comes connosco. – Disse.

– Está bem. – Disse ela saindo da cozinha. Comecei a fazer o almoço enquanto pensava em tudo o que tinha falado com a Rose. Ela tinha razão em tudo o que disse. Ela conhecia-me demasiado bem. Assim, que acabei de fazer o almoço, comemos os três e depois a Rose teve que ir trabalhar. Por volta das três, fui buscar a Amber e a Liv da escola e depois ajudei-as a fazer os trabalhos de casa. O Jasper chegou a casa por volta das seis e veio ver logo se estava tudo bem comigo. Contei-lhe que tinha falado com a Rose e tinha pensado o dia todo sobre o assunto. Disse-lhe de seguida que já tinha tomado uma decisão.

– O que decidiste? – Perguntou ele cauteloso.

– Decidi que se for compatível, vou doar parte do meu fígado. Eu nunca conseguiria viver comigo mesma se soubesse que tinha sido responsável pela morte de alguém, mesmo que essa pessoa seja o meu pai, para não falar que nunca deixaria de me culpar pelo sofrimento que estaria a causar à minha irmã. – Respondi.

– És uma pessoa tão boa, Alice. É por isso que te amo tanto. – Disse ele beijando-me de seguida. – Agora, tens de ligar à Cynthia. – Comentou ele.

– Eu sei, só estava à espera de te contar o que tinha decidido. Se tu não concordasses, eu não faria o que tinha decidido.

– Eu disse que te apoiaria em qualquer decisão que tenhas tomado. – Disse ele sorrindo.

– Eu sei, mas eu queria contar-te primeiro à mesma. – Respondi.

Depois de jantarmos, liguei para a Cynthia. Não demorou muito para que ela atendesse o telemóvel. Ela ainda estava no hospital com o pai quando atendeu.

– Sim, Alice?

– Já tenho uma decisão, Cynthia. – Respondi. – Se eu for compatível, aceito doar parte do meu fígado. – Disse para não a fazer sofrer mais.

– Muito obrigada, Alice. Nem sabes o quanto isso significa para mim. Muito obrigada mesmo. Vou ficar a dever-te para o resto da vida. – Agradeceu ela feliz.

– Desde que sejas feliz, não me ficas a dever nada, Cynthia. – Disse-lhe. – Marca-me os exames e depois diz quando tenho de ir ao hospital, está bem?

– Está bem. Vou já tratar disso, depois digo-te alguma coisa.

Despedimo-nos e depois desliguei o telemóvel. O resto da noite passou-se num ambiente agradável. Vimos um filme e depois fui deitar os meus filhos, indo dormir, de seguida.